Uma breve reflexão acerca do “γνῶθι
σεαυτόν” (gnõthi seaytón) nos parágrafos VII a XII do livro X do De Trinitate de Agostinho[1]
Por Sávio Laet.
Santo Agostinho, autor de De Trinitate. |
A
obra De Trinitate de Agostinho é
dividida em três partes. São quinze livros. Como indica o próprio nome, ela
pretende aproximar-se do mistério da Trindade. A primeira parte consiste numa demonstratio da Trindade baseada na auctoritas da Escritura (I-IV). A
segunda parte consiste na defesa – baseada, desta feita, sobre a ratio – da legitimidade daquilo que
dizemos acerca da Trindade. Trata-se também de um tratado sobre a “linguagem
teológica” no que toca aos atributos divinos (V-VII). Na terceira parte, a Trindade – em sua unidade – é
contemplada através da inteligência – em particular da mente humana –, desta
sorte considerada como imagem de Deus (VIII-XV). É a tentativa de contemplar e
compreender como a mens humana
constitui uma imagem da Trindade.
Agora
bem, dentro desta terceira parte, o livro
X tem a sua autonomia. É o livro cujo tema é o conhecimento de si mesmo. Com
efeito, se a mente é o lugar onde podemos ver um reflexo da Trindade, torna-se
essencial conhecer o que a mente é. E se nós somos a nossa mente, isto
significa que se torna essencial – para o conhecimento da Trindade – o
“conhecimento de si mesmo”. O objetivo de Agostinho é mostrar que a “cogitatio”
de si – da parte da mente – é temporária, parcial e sujeita a erro. Já a notitia acerca da própria mente – procedente
da mente mesma – é perene, total e infalível. Ora, a seção do livro X – que vai do parágrafo
VII ao parágrafo XII – concentra-se sobre o sentido do “projeto délfico”: como
posso conhecer a mim mesmo? Isto é importante porque – se o homem é sua mente –
a mente deve ter um conhecimento certo de si, a fim de que o homem viva segundo
a sua natureza.
Mas,
para Agostinho, conhecer-se e saber o que se é não é a mesma coisa. E saber o
que se é, é saber que, na hierarquia dos seres – segundo o esquema neoplatônico
– a mente não ocupa nem o vértice nem a base, mas o meio. No vértice está Deus;
na base, o mundo dos corpos. Destarte, para a mente se comportar corretamente,
deve saber que é superior aos corpos, mas inferior a Deus. Deve, pois, saber
ocupar o seu lugar na realidade. Não se trata, propriamente, de adquirir um
conhecimento do qual era privada, mas de retomar a “consciência” do que sempre
soube e habitualmente se esquece. Para isso, importa que a mente corrija o modo
pelo qual se tornou habituada a conhecer a si mesma.
A
proposta de Agostinho é que a mente – através do correto conhecimento de si
mesma – saia do estado de “inconsciência” para o de “consciência” de si mesma e,
assim, encontre um estilo de vida superior. Em outras palavras, a mente deve
habituar-se a pensar-se adequadamente.
Com
efeito, a causa do amor desordenado pelas coisas sensíveis reside no fato de a
alma crer ser um corpo (materialismo). E para corrigir isso, ela deve
acercar-se de si mesma não como se fosse ausente de si mesma, porque nada é
mais presente à mente do que a própria mente. Deve, pois, aproximar-se de si
mesma não mais se procurando nas suas “representações”, mas diretamente, e isto
acarreta que ela se destaque, distinguindo-se das imagens sensíveis que estão
na sua memória, imagens estas que o mais das vezes ela toma por ela mesma. Nós
vivemos habitualmente fora de nós mesmos, alienados de nós mesmos, ausentes de nós
mesmos. Daí a necessidade de uma metafísica da interioridade que nos coloque
frente a frente com nós mesmos, e que redunde, por isso mesmo, no amor bem
ordenado.
De
resto, não se trata de um conhecimento aditivo, mas subtrativo, isto é, a mente
deve se subtrair às imagens que a povoam. Outrossim, não se resolve o problema
dizendo que Agostinho opõe um dentro a um fora. Isto só barateia a questão. É
mais do que isso, porque as imagens também estão dentro de nós. Trata-se, na
verdade, de ir além do interior – que Agostinho identifica com a imaginação –
para o íntimo, que ele chama de inteligência.
Neste
sentido, nós vivemos habitualmente fora de nós mesmos, alienados de nós mesmos,
ausentes de nós mesmos, mesmo em nossa interioridade, mesmo em nossa vida
interior. Daí a necessidade de uma metafísica da interioridade (ir além da
própria interioridade), que nos coloque imediatamente frente a frente com nós
mesmos – a sós com nós mesmos – e que redunde, por isso mesmo, no amor bem
ordenado.
[1] Este texto não
é senão uma despretensiosa resenha e meditação sobre a fala do Prof. Giovanni
Catapano dada em 28 de fevereiro de 2013, na Sala Rossini Caffè Pedrocchi, em Padova. Trata-se da terceira
intervenção feita para a XVIII edição do projeto “Filosofia come terapia”. O
evento é promovido pela seção de Padova da “Associazione Italiana di Cultura
Classica”. Vide: CATAPANO, Giovanni. Giovanni
Catapano legge Agostino. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=hZjLNBVgX3A>. Acesso em:
25/05/2014.
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