sexta-feira, 9 de maio de 2014

O Calvário de Bernardo e o meu.


Por Paul Medeiros Krause.

Em primeiro lugar, quero fazer saber ao leitor que me sinto indigno de dirigir-lhe a palavra. Se há alguém que não sabe do que fala, esse alguém sou eu. Este texto não é manifestação da minha sabedoria; ao contrário, o é da minha intemperança. Os insensatos gostam de falar do que não sabem. Falam mais por gosto do que por conhecimento ou competência. É este o caso. Eis a manifestação da minha intemperança ou verborragia incontida.

Contudo, ainda assim, gostaria de atrever-me a dirigir-lhe a palavra a propósito de algo sobre que penso algumas vezes: a dor, o sofrimento. A dor é um mistério. Por vezes, causa um incômodo inaudito, insuportável. Aparentemente, o sofrimento é um acontecimento ilógico, uma contradição da natureza, um paradoxo divino. Se Deus ama-nos e é onipotente, por que permite o sofrimento?

Há quem diga que a Igreja Católica gosta de incutir nas pessoas o sentimento de culpa. Há quem afirme que a Igreja de Roma vê mal em tudo e em todos e que seja vítima de terrível pessimismo. Ouso pensar de forma contrária. Se há algum excesso no catolicismo, é de otimismo.

A minha desconfiança, por vezes, é a de que a Igreja não nos conta toda a verdade. Ou, pelo menos, não insiste tanto nela. Não que ela, a Esposa de Jesus Cristo, seja desonesta conosco, longe disso. A minha sensação é a de que ela não quer esmagar-nos, desanimar-nos. Ela não revela logo ao doente toda a gravidade da sua doença. A minha suposição é a de que a realidade do pecado é muito mais grave, desesperadora e terrível do que imaginamos.

Somente quem não se conhece suficientemente e ignora a gravidade do que seja um simples pecado venial, pode achar que sofre injustamente. Só quem não conhece a própria malícia e não faz a ideia mais pálida que seja da pureza inconcebível de Deus pode chegar ao tresloucado e disparatado ato de dizer que sofre injustamente. Essas pessoas – e eu mesmo quando me queixo das minhas unhas encravadas! – são o mau ladrão do Evangelho, que, mesmo sendo bandido, queixa-se a Cristo por estar sendo crucificado. Aquele ladrão queixoso, que tanta revolta nos causa!, somos nós: todo murmurador é um mau ladrão! Ladrões, usurpadores da glória de Deus, todos somos pelo pecado. Mas podemos escolher ser o bom ladrão.

Quanto a isto estou plenamente convencido: não há quem sofra injustamente. A não ser Cristo e Nossa Senhora, todos pecamos. O pecado é uma realidade gravíssima. Causa uma desordem tal na nossa relação com Deus, na nossa relação com os outros homens, na nossa relação com nós mesmos e com a natureza que não somos capazes de imaginar. Basta dizer que é uma ofensa a um ser infinito, Deus. Ora, uma ofensa a um ser infinito, por imperativo de justiça, exige uma reparação infinita. Qualquer sofrimento que tenhamos, por maior que seja, é insuficiente para reparar as ofensas que fazemos a Deus. Respeito quem pense o contrário. Mas permita-me dizer-lhe que padece de uma cegueira brutal. Acredite: a realidade é que você sofre pouquíssimo, bem menos do que merece!

Assim, a primeira conclusão a que chego é a de que nenhum sofrimento é injusto. Que ninguém se atreva a queixar-se. Oferecendo o seu sofrimento a Deus como reparação dos seus pecados, você ainda é um devedor falido que não tem com que pagar a sua dívida. O Evangelho afirma isso.

O segundo ponto das minhas reflexões é: o sofrimento é um ato de confiança de Deus no homem. Ao permitir-nos sofrer, Deus mostra-nos que não somos feitos de açúcar. Mais do que isso. Ele revela-nos que somos meninos mimados, que, na verdade, são muito mais capazes de sofrer do que imaginam. O nosso limite, o limite do suportável, vai muito além do que pensamos ou do que gostaríamos. Mas é nesse muito além que brotam os atos de heroísmo.

O sofrimento do menino Bernardo.
O caso do menino Bernardo, pelo que se supõe, assassinado pelo pai e pela madrasta, em um primeiro momento, desconcerta-nos, aflige-nos, deixa-nos perplexos. O mistério da iniquidade, o mistério da maldade trava-nos o raciocínio. Quebra-nos as pernas. Corta-nos as asas. Prostra-nos.

Não há dúvida de que a história trágica, dilacerante, de Bernardo esmaga-nos. Deixa-nos moídos, despedaçados. Contudo, não me soa irrazoável supor que diante da grandeza do paraíso de que ele agora goza, e que é eterno, todo o seu mal na terra não passou de umas cócegas, de uma coceira.

Será que nós meditamos de fato no que alguns teólogos dizem: a menor pena no purgatório é maior do que o maior sofrimento da terra? Assim, não estará Deus, muitas vezes, trocando uma pena maior no purgatório por uma pena menor nesta terra? Será que temos bem presente o que dizia São Paulo, que o prêmio da vida futura não tem proporção, não tem parâmetro de comparação com os males da vida presente?

Não nos enganemos: todo pecado exige reparação. A Igreja ensina que quando recebemos a absolvição na confissão a nossa culpa é perdoada, mas não a nossa pena temporal no purgatório. Além disso, a esse mundo governado pelo egoísmo e pelo individualismo, é bom recordar: vivemos a comunhão dos santos. Uma alma que se eleva, eleva o mundo. Uma alma que cai, faz cair o mundo. Estamos ligados uns aos outros por uma espécie de comunhão ou linha invisível. Cristo poderia ter reparado todas as nossas penas no purgatório, a sua paixão era suficiente para isso, mas ele não concedeu essa graça de forma automática. É possível obter a reparação integral da pena temporal por meio das indulgências plenárias. Mas não são todos os que recorrem a esse tesouro espiritual depositado nas mãos da Igreja. Tudo indica que uns reparam pelos outros. Parece absolutamente certo que algumas pessoas reparam em lugar de outras. É bem possível que seja o caso de Bernardo. Se com Cristo foi assim, por que não seria conosco? Se Deus assumiu a condição humana, por que não assumiríamos em parte a paixão divina? Se Deus se solidarizou conosco, por que não nos solidarizaríamos com ele e com os outros homens?

Simão Cirineu
Como quer que seja, Simão Cirineu grita-nos alguma coisa. A paixão de Cristo é suficiente para eliminar toda a nossa culpa e toda a nossa pena. Mas Deus, nos insondáveis mistérios da sua Providência, quis que Simão Cirineu, na verdade, toda a humanidade, se lhe associasse, de alguma forma, no caminho do calvário. Deus quis que participássemos, de alguma maneira, do calvário. Notemos que o Cirineu não se ofereceu. Ele foi obrigado a carregar por alguns momentos a cruz de Cristo. Talvez aquela gota de água derramada no cálice de vinho do ofertório signifique a nossa minúscula participação no sofrimento redentor de Cristo.

Convido o leitor a fazer um pouco de discernimento dos espíritos. Observemos bem como são as obras de Deus: elas são como um banho frio. No começo, o banho frio é incômodo e difícil; no meio, acostumamo-nos a ele; no final e depois do final, dá mais prazer e mais duradouro do que um banho quente. As obras de Deus causam-nos um desconforto no instante inicial e uma paz longa e duradoura no final e após o final. Assim é a quaresma. Assim é a nossa vida, que é uma espécie de quaresma, de prelúdio da páscoa definitiva.

As obras do demônio funcionam de modo inverso: o prazer máximo, por curtíssimo instante, vem no começo; no meio da ação, já estamos enjoados; no final e após o final, sentimos um amargor perene. Por um prazer de cinco minutos, desgraçamos a nossa vida inteira. Assim é o pecado. Assim é a vida de pecados, a que se segue a insatisfação eterna, o inferno de tormentos.

Não sei se alguém já observou que o tempo pascal é superior em número de dias ao período da quaresma. E por ensinamento do próprio Santo Agostinho são desestimulados o jejum e as penitências corporais no período pascal, que é como que o dia de páscoa estendido até pentecostes.

Vendo por esse prisma, a quaresma, a exigência de mortificação, soa quase como uma brincadeira de Deus. Ele pede-nos uma privação de quarenta dias, para depois dar-nos um período de festa de cinquenta dias!...

Mas essa é a lógica de Deus. Atrevo-me a dizer que o sofrimento é uma brincadeira de Deus com os homens. Há uma tal desproporção entre o sofrimento e a recompensa, que diante desta aquele é uma cócega, apenas uma coceira.

Se observarmos bem, esse tempo quaresmal, com seus quarenta dias que são uma figura da nossa vida, da nossa penosa peregrinação rumo ao paraíso, é uma pausa restauradora. A Igreja em sua sabedoria demarcou um tempo nem exageradamente extenso, nem demasiadamente curto. Em quarenta dias é possível começar a arrancar os maus hábitos, a sair da má rotina, a puxar pela raiz os vícios, a dar ao corpo uma espécie de convalescença pelas surras que levou dos próprios pecados.

A nossa vida, por decreto divino, também não será excessivamente extensa nem excessivamente curta. A nossa vida, a nossa vida amarga, o nosso desterro de misérias, a nossa quaresma personalíssima prepara-nos para uma páscoa de bem mais de cinquenta dias.


Voltemos ao pensamento de São Paulo. Os sofrimentos dessa vida não têm comparação com a recompensa futura. Aguarda-nos o banquete pascal da eternidade. O sofrimento é uma brincadeira de Deus.

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