sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Um católico pode defender o aborto?

Por Dom Henrique Soares.

De modo geral, a nossa sociedade, que idolatra a técnica, confunde o que é
possível para a ciência com aquilo que é moralmente admissível. Ora, nem tudo que é tecnicamente realizável é também moralmente aceitável. Começo por esta afirmação, porque o fato de a técnica da medicina ter a capacidade de realizar o aborto com relativa facilidade, além do elevado número de abortos, têm induzido nossa sociedade a ser tolerante com o assassinato intra-uterino. É bom recordar também que uma situação ou ação não passam a ser morais e aceitáveis do ponto de vista ético simplesmente porque tornaram-se aprovadas pela lei. Pense-se, por exemplo, na discriminação racial na África do Sul: era absolutamente legal, mas totalmente imoral!

Defende-se o aborto em nome da emancipação da mulher, que deve ter direito sobre o domínio do próprio corpo e deve ser livre para rejeitar tudo quanto possa atrapalhar seu projeto de felicidade. Então, dificuldades conjugais, despreparo para ser mãe, sentimento de cansaço, idade avançada, necessidade de continuar os estudos, exigências profissionais... tudo isso justificaria o aborto... Além do argumento da emancipação, tem-se o do aumento demográfico – o aborto seria um meio de evitar a explosão populacional. Finalmente, defende-se o aborto seletivo, para evitar o nascimento de seres que sofreriam graves deficiências... Numa sociedade que cultua a vida plena, a beleza física e a saúde, tais seres humanos, “sem beleza nem formosura”, não são bem-vindos... Note-se que tudo isso externa um profundo desprezo pela vida humana, sintoma de uma sociedade egoísta, centrada pura e simplesmente na realização do indivíduo, constituído em medida de todas as coisas, sem nenhuma outra norma moral que não o seu bem-estar e seu prazer individual. São sintomas de uma sociedade profundamente doente e leviana...

Alguns teólogos moralistas cristãos procuram justificativas para o aborto em casos que tivessem uma séria motivação. Segundo alguns, o aborto somente seria inaceitável até o sexto ou sétimo dia após a fecundação, quando o óvulo penetra o revestimento interno do útero. Isto porque, antes deste período, é grande o número de abortos espontâneos e, além, do mais, não está ainda claro se esse óvulo fecundado (zigoto) será um ou mais indivíduos... Como não há ainda uma definição quanto à individualidade, não teríamos um ser humano e o aborto, por razões sérias, não seria imoral. Outros falam ainda na possibilidade do aborto antes da formação do córtex cerebral, já que o que especifica o ser humano é a racionalidade: como o cérebro não estaria formado ainda, não poderíamos falar num ser humano. Há ainda um grupo que parte da definição da pessoa como capacidade de entrar em relação com os outros e o mundo. O ser humano não seria simplesmente uma realidade biológica, mas pessoal, social. Seria preciso, então, distinguir entre vida humana (biológica) e vida humanizada (social). Neste aspecto, um feto seria humano, mas não humanizado. Portanto, haveria possibilidade moral para o aborto.

Observe-se que todas estas abordagens são interessantes, mas todas são
arbitrárias, pois não se pode determinar o início da vida humana de modo seguro, a não ser com um critério: a vida de um ser humano começa no momento da sua fecundação. Desde este momento já se tem uma vida irrepetível e única. O zigoto e, depois, o feto não são um órgão da mãe, não pertencem à mãe nem fazem parte dela! Esta nova vidazinha é realmente uma realidade viva, biologicamente distinta do útero materno, geneticamente nova e original, biologicamente humana e individualizada. Este feto ou já é humano desde o início ou não o será nunca: desde o momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma vida que não é a do pai nem a da mãe, mas a de um novo ser humano, que começa a desenvolver-se por conta de seu próprio dinamismo. Repito: ele não se tornaria nunca humano se já não o fosse desde o primeiro instante. Irá desenvolver-se, correrá riscos de vida, irá humanizando-se... não só na fase intra-uterina, mas por toda a sua existência humana, até o fim da sua vida. Só seremos plenamente nós mesmos no momento final, no instante da nossa morte, quando tivermos vivido todas as nossas chances e possibilidades!

Quanto à Sagrada Escritura, ela não contempla diretamente a questão do aborto, mas afirma que Deus conhece e ama o ser humano desde o ventre materno (Jó 10,11; 2Mc 7,22s). Basta pensar no Salmo 138/139,14-16a: “Conhecias até o fundo do meu ser: meus ossos não te foram escondidos quando eu era feito, em segredo, tecido na terra mais profunda. Teus olhos viam o meu embrião”. Nunca se deve esquecer que toda a Escritura é um “sim” decidido de Deus em favor da vida humana e de toda criatura. Também a Tradição da Igreja foi pelo mesmo caminho. Fiel à atitude de Cristo em favor dos mais indefesos, a Igreja sempre foi contra a prática abortiva. A Didaqué,do final do século I ou início do II, já exortava: “Tu não matarás com o aborto o fruto do ventre” e Tertuliano, no século II, escrevia: O aborto é um homicídio por antecipação”. Ainda hoje, o Magistério da Igreja, no ensinamento constante e repetido dos Papas e no consenso do Episcopado, mantém firmíssima esta posição!


Diante de tudo isto, um católico não pode militar em prol do aborto sem que esteja em gravíssimo dissenso com a moral católica. Recordemos que a Igreja goza de especial assistência do Espírito de Cristo sobretudo nas questões de fé e moral. É temerário e sinal de falta de fé a teimosia em dissentir do Magistério quando este repetidamente insiste num ponto tão importante e grave! É sempre a mesma tendência humana de decidir, como se fosse Deus, o que é bem e o que é mal... Triste que, em geral, aqueles que mais defendem o aborto são os que mais lutam em defesa das árvores e dos animais... esquecendo que o ser humano é a única criatura que traz em si a imagem de Deus em Cristo Jesus...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Ação da Igreja no Brasil.


Por Dom Fernando Arêas Rifan.
Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney

Vez por outra se pergunta: “Afinal, o que faz a Igreja do Brasil, na sua ação evangelizadora, em prol da educação e da civilização?”

Em carta apresentando a Campanha de Evangelização 2013, Dom Raymundo Damasceno Assis, Cardeal Arcebispo de Aparecida e Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), explana a ação da Igreja católica no Brasil e no mundo, em sua missão e propagação do Evangelho, lembrando que no Brasil, a estrutura da Igreja Católica forma uma das maiores bases sociais para a população:

“Assim como o Apóstolo Paulo que evangelizou com amor e dedicação, somos chamados a evangelizar com esta grandiosa ação em nossas dioceses, paróquias e comunidades que promovem a fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. Nossa Igreja é formada por homens e mulheres; jovens e idosos; religiosos e religiosas; leigos e leigas. Juntos, somos a maior instituição benfeitora e promotora de caridade do Brasil. Alimentamos quem tem fome e tratamos quem procura por nossos hospitais. Ninguém distribui mais alimentos do que nossa gente, o povo de Deus!”

“Educamos mais alunos que qualquer outra instituição de ensino desse país, como as crianças em nossas creches e os idosos em nossos lares de convivência. Ninguém distribui mais bolsas para a educação do que nossos colégios e faculdades com mais de 2 milhões de alunos. Por isso, estamos presentes em todos os municípios do Brasil levando amor, unidade e esperança para todas as pessoas de fé, de todas as raças, guiados pela Boa Nova da verdade e da paz, sempre na defesa do bem e da dignidade da pessoa humana e firmes no propósito de evangelizar, como nos ordenou o Mestre”.

“Acolhemos milhões de pessoas em nossas casas, trazidas pela fé que anima a nossa Igreja. Nossos carismas são inspirados pelo Espírito Santo e estão presentes em mais de duzentas mil comunidades pregando o Evangelho, sob a intercessão e proteção de Maria, nossa Mãe e Mãe de todos os povos. Por isso, como batizados, somos convidados a favorecer cada vez mais o bem comum e colaborar com a nossa Igreja. Precisamos da sua ajuda. Venha dividir um pouco do que é só seu para multiplicar o que podemos fazer por todos”.

“Lembre-se que há mais de 500 anos evangelizamos o Brasil, guiados pela nossa profissão de fé em Cristo Jesus. Nossas missões estão nos quatro cantos do país e do mundo. Enquanto todos já se esqueceram do Haiti, nossos missionários e nossas missionárias permanecem por lá ajudando quem necessita, sob o Evangelho de Jesus Cristo. Somos mais de 130 milhões unidos em uma só família: a Igreja Católica Apostólica Romana no Brasil. Este é o sinal que nos faz criar laços de comunhão fraterna, favorecendo uma Igreja presente e atuante em nossos tempos. E todos devem conhecer e colaborar com isso. É um compromisso de solidariedade e fraternidade com os nossos irmão e irmãs em Cristo!” 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

A coerência da presidente.

Por Ives Gandra Martins

Numa real democracia, o respeito às opiniões divergentes é um direito
John Rawls
fundamental, pois, no dizer de John Rawls, "teorias não abrangentes" podem conviver, apesar de suas diferenças, o que não ocorre com as "teorias abrangentes" próprias das ditaduras, em que se impõe uma única visão política a ser seguida por todos. Não no seu mais conhecido livro (Uma Teoria da Justiça), mas na obra Direito e Democracia, desenvolveu o tema de que todas as teorias impositivas que não permitem diálogo conformam ideologias totalitárias, não são democráticas.

Respeito, como eleitor e cidadão, as posições da presidente, que na juventude foi guerrilheira na companhia de muitos outros, alguns treinados em Cuba, e mesmo terroristas, pois lançaram bombas em shoppings, matando inocentes. Um de seus amigos mais íntimos e meu amigo, apesar de nossas inconciliáveis divergências, José Dirceu declarou certa vez que se sentia mais cubano que brasileiro. Seu apoio permanente à ditadura cubana é, portanto, coerente com seu passado de lutas políticas, como o fez com relação às semiditaduras da Venezuela e da Bolívia.

O caso de Cuba, todavia, tem conotações extremamente preocupantes, na
Mais médicos cubanos.
medida em que o governo brasileiro financia, por meio da campanha Mais Médicos - que poderia também ser intitulada "Mais Médicos Cubanos" -, uma ditadura longeva, que se alicerçou num rio de sangue quando Fidel Castro assassinou, sem julgamento e sem defesa, em seus paredóns, milhares de cidadãos da ilha para instalar sua ditadura. Chegou a ser chamado por estudantes da Faculdade de Direito da USP de "Fidel Paredón Castro". Até hoje seus habitantes não têm direito a circular livremente pelo país e quando conseguem autorização para viajar ao exterior seus familiares permanecem como "reféns" para garantia de seu retorno. E a pretendida abertura econômica para comprar carros comuns por US$ 250 mil é risível para um povo que ganha - mesmo os profissionais habilitados - em média de US$ 20 a US$ 50 por mês. É o país mais atrasado economicamente das Américas.

O Estado de S. Paulo (11/1, A3) noticiou que o referido programa prevê a "importação" de 10 mil médicos de Cuba - ante pouco mais de 500 de outros países -, os quais ganharão menos que os demais estrangeiros, pois o governo brasileiro paga seu salários diretamente a Cuba, que lhes devolve "alguns tostões", apropriando-se do resto. Impressiona-me que o Ministério Público do Trabalho não tenha tomado, junto aos tribunais superiores, medida para equiparar o pagamento, no Brasil, desses cidadãos cubanos, que atuam rigorosamente da mesma forma que seus colegas de outros países, ganhando incomensuravelmente menos. Causa-me também espanto que uma pequena ilha possa enviar médicos em profusão. Talvez aí esteja a razão para que o governo brasileiro não aceite o Revalida para tais profissionais, deixando fundadas suspeitas de que tema sua reprovação, por não serem tão competentes quanto os médicos brasileiros obrigados a se submeter a esse exame para a avaliação de sua competência.

O que mais me preocupa, contudo, é que, enquanto, para meros efeitos eleitorais, o governo brande a bandeira de "Mais Médicos cubanos" financiadores da ditadura do Caribe, o SUS não é reatualizado há mais de 15 anos. Os médicos brasileiros que atendem a população nesse sistema recebem uma miséria como pagamento por consultas e cirurgias, assim como os hospitais conveniados. A não atualização dos valores pagos pelo SUS, em nível de inflação, por tão longo período tem descompensado as finanças de inúmeras instituições hospitalares privadas vinculadas a seu atendimento.

De tudo, porém, o que me parece mais absurdo é que o financiamento à ditadura cubana, calculado pelo Estado, supera US$ 500 milhões, estando a fortalecer um regime que há muito deveria ter sido combatido por todos os países da América, para que lá se implantasse a democracia. Tal amor à ditadura caribenha demonstra a monumental hipocrisia dos ataques ao Paraguai e a Honduras por terem, constitucional e democraticamente, afastado presidentes incompetentes ou violadores da ordem jurídica dominante. Assim é que o artigo 225 da Constituição paraguaia permite o impeachment por mau desempenho, como nos governos parlamentares, e o artigo 239 da Constituição hondurenha determina a cassação do presidente que pretender defender a reeleição. É que a forma como foram afastados estava prevista no texto constitucional aprovado, nessas nações, democraticamente.

Como presidente do País, Dilma Rousseff merece respeito. Dela divirjo, entretanto, desde sua luta guerrilheira, que atrasou a redemocratização do Brasil, obtida, por nós, advogados, com a melhor das armas, que é a palavra. E considero que seu permanente fascínio pelas ditaduras ou semiditaduras, como as de Cuba, Venezuela e Bolívia, é perigoso para o Brasil, principalmente quando leva à adoção de medidas como a "operação de mais médicos cubanos", pois fora de nossas tradições democráticas.


Valeria a pena a presidente refletir se tais medidas, de nítido objetivo
eleitoreiro, não poderão transformar-se ao longo da campanha em arma contra o próprio governo, mormente se os candidatos de oposição se dedicarem a explorar o fato de que o que se objetiva mesmo é financiar aquele regime totalitário. A campanha Mais Médicos poderá tornar-se o mote "mais dinheiro para a ditadura cubana", pondo em evidência não o interesse público do povo brasileiro, mas a coerência da presidente com seu passado guerrilheiro, gerando dúvidas sobre seu apreço aos ideais democráticos.

domingo, 26 de janeiro de 2014

25/01/2014 - Solenidade de conversão de São Paulo Apóstolo.Papa Francisco

CELEBRAÇÃO DAS VÉSPERAS
NA SOLENIDADE DA CONVERSÃO DE SÃO PAULO APÓSTOLO

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Paulo Extra-muros
Sábado, 25 de Janeiro de 2014

«Estará Cristo dividido?» (1 Cor 1, 13). Este repto forte, que São Paulo lança quase ao início da sua Primeira Carta aos Coríntios e que ressoou na liturgia desta tarde, foi escolhido por um grupo de irmãos cristãos do Canadá como linha de fundo para a nossa meditação durante a Semana de Oração deste ano.

Com grande tristeza, o Apóstolo soube que os cristãos de Corinto estão divididos em várias facções. Uns afirmam: «Eu sou de Paulo»; outros dizem: «Eu sou de Apolo»; e outros: «Eu sou de Cefas»; e há ainda quem sustente: «Eu sou de Cristo» (cf. 1 Cor 1, 12). Nem sequer estes que pretendem apelar-se a Cristo podem ser elogiados por Paulo, porque usam o nome do único Salvador para se distanciarem dos outros irmãos dentro da comunidade. Por outras palavras, a experiência particular de cada um, o referimento a algumas pessoas significativas da comunidade tornam-se a norma para julgar a fé dos outros.

Nesta situação de divisão Paulo, «em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo», exorta os cristãos de Corinto a serem todos unânimes no falar, para que não haja, entre eles, divisões mas perfeita união de pensar e sentir (cf. 1 Cor 1, 10). Mas a comunhão, a que chama o Apóstolo, não poderá ser fruto de estratégias humanas. De facto, a perfeita união entre os irmãos só é possível referida ao pensamento e aos sentimentos de Cristo (cf. Fil 2, 5). Nesta tarde, encontrando-nos aqui reunidos em oração, sentimos que Cristo – que não pode ser dividido – quer atrair-nos a Si, aos sentimentos do seu coração, ao seu abandono total e íntimo nas mãos do Pai, ao seu esvaziar-se radicalmente por amor da humanidade. Só Ele pode ser o princípio, a causa, o motor da nossa unidade.

Encontrando-nos na sua presença, tornamo-nos ainda mais conscientes de que não podemos considerar as divisões na Igreja como um fenómeno de certo modo natural, inevitável em toda a forma de vida associativa. As nossas divisões ferem o corpo de Cristo, ferem o testemunho que somos chamados a prestar-Lhe no mundo. O Decreto do Vaticano II sobre o ecumenismo, fazendo apelo ao texto de São Paulo que estamos a meditar, afirma significativamente: «Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja. Todavia, são numerosas as Comunhões cristãs que se apresentam aos homens como a verdadeira herança de Jesus Cristo. Todos, na verdade, se professam discípulos do Senhor, mas têm pareceres diversos e caminham por rumos diferentes, como se o próprio Cristo estivesse dividido». E, depois, acrescenta: «Esta divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo, e é escândalo para o mundo, como também prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura» (Unitatis redintegratio, 1). Todos nós fomos prejudicados pelas divisões. Nenhum de nós quer tornar-se um escândalo. E por isso todos nós caminhamos juntos, fraternalmente, pela estrada que leva à unidade, fazendo unidade com o próprio caminhar, aquela unidade que vem do Espírito Santo e conduz-nos a uma singularidade tão especial que só o Espírito Santo pode fazer: a diversidade reconciliada. O Senhor espera-nos a todos, acompanha-nos a todos, está com todos nós neste caminho da unidade.

Queridos amigos, Cristo não pode estar dividido! Esta certeza deve incentivar-nos e suster-nos a continuar, com humildade e confiança, o caminho para o restabelecimento da plena unidade visível entre todos os crentes em Cristo. Apraz-me pensar, neste momento, na obra de dois grandes Papas: os Beatos João XXIII e João Paulo II. Em ambos foi amadurecendo, ao longo do percurso de suas vidas, a consciência de como era urgente a causa da unidade e, uma vez eleitos Bispos de Roma, guiaram decididamente todo o rebanho católico pelas estradas do caminho ecuménico: o Papa João, abrindo caminhos novos e quase impensáveis antes; o Papa João Paulo, propondo o diálogo ecuménico como dimensão ordinária e imprescindível da vida de cada Igreja particular. A eles associo também o Papa Paulo VI, outro grande protagonista do diálogo: justamente nestes dias, recordamos o cinquentenário daquele seu abraço histórico, em Jerusalém, ao Patriarca de Constantinopla Atenágoras.

O obra destes meus antecessores fez com que a dimensão do diálogo ecuménico se tivesse tornado um aspecto de tal modo essencial do ministério do Bispo de Roma, que hoje não se compreenderia plenamente o serviço petrino sem incluir nele esta abertura ao diálogo com todos os crentes em Cristo. Podemos afirmar também que o caminho ecuménico permitiu aprofundar a compreensão do ministério do Sucessor de Pedro e devemos ter confiança de que vai continuar a fazê-lo também no futuro. Ao mesmo tempo que olhamos com gratidão para os passos que o Senhor nos concedeu realizar, mas sem ignorarmos as dificuldades que o diálogo ecuménico atravessa actualmente, peçamos a graça de sermos todos revestidos dos sentimentos de Cristo, para podermos caminhar para a unidade querida por Ele. E caminhar juntos já é fazer unidade!

Neste clima de oração pelo dom da unidade, quero dirigir as minhas cordiais e fraternas saudações a Sua Eminência o Metropolita Gennadios, representante do Patriarcado Ecuménico, a Sua Graça David Moxon, representante em Roma do Arcebispo de Cantuária, e a todos os representantes das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais, aqui reunidos nesta tarde. Com estes dois irmãos, em representação de todos, rezámos no Sepulcro de Paulo e dissemos entre nós: «Rezemos para que ele nos ajude nesta estrada, nesta estrada da unidade, do amor, fazendo estrada de unidade». É que a unidade não virá como um milagre no fim: a unidade vem no caminho, fá-la o Espírito Santo no caminho. Se não caminharmos juntos, se não rezarmos uns pelos outros, se não colaborarmos em tantas coisas que podemos fazer neste mundo pelo Povo de Deus, a unidade não virá! A unidade faz-se neste caminho, em cada passo, e não somos nós que a fazemos: fá-la o Espírito Santo, que vê a nossa boa vontade.


Amados irmãos e irmãs, ao Senhor Jesus, que nos tornou membros vivos do seu Corpo, peçamos que nos conserve profundamente unidos a Ele, nos ajude a superarmos os nossos conflitos, as nossas divisões, os nossos egoísmos; e lembremo-nos de que a unidade é sempre superior ao conflito! E nos ajude a vivermos unidos uns aos outros por uma única força, a do amor, que o Espírito Santo derrama nos nossos corações (cf. Rm 5, 5). Amém.

sábado, 25 de janeiro de 2014

O Mistério da Encarnação e a vida cristã – Uma primeira aproximação

Por Sávio Laet

Todos  conhecemos a história da queda dos nossos primeiros pais. Sabemos como
Adão e Eva numa pintura de 
Lucas Cranach (1513-15).
eles gozavam da intimidade com Deus antes do pecado, e como, após o pecado, eles esconderam-se do Senhor. Mas Deus os procurou, chamando-os: “Onde estás?” (Gn 3, 9). Esta voz do Senhor ressoa pelos séculos, de sorte que podemos definir a história humana como a história de Deus que procura reencontrar a sua criatura. Ora, em Cristo, Deus reencontra-a. Nosso Senhor pôde dizer ao publicano Zaqueu –  imagem do homem prevaricador – “(...) o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10). Sim, Deus veio nos procurar, veio encontrar-se conosco. A Encarnação é Deus mesmo que Se “cansa” de nos chamar de longe. A Encarnação é Deus mesmo que se “cansa” de enviar profetas para falarem em Seu nome. A Encarnação é Deus que se “cansa” de mandar recados, cartas. Ele veio pessoalmente nos visitar: “Deus visitou o seu povo” (Lc 7, 16). Ele veio falar conosco pessoalmente. O autor da Carta aos Hebreus nos fala assim:


Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o resplendor de sua glória e a expressão de sua substância. (Hb 1, 1-3).

Não mais por meio de profetas; não mais em livros, mas Deus em pessoa veio nos buscar. A teologia do Novo Testamento é, pois, a teologia do encontro, ou melhor, do reencontro de Deus com o homem no Verbo encarnado (Jo 1, 14). Na passagem em que se diz: “(...) falou-nos por meio do Filho”, no original está assim: “ἐλάλησεν ἡμῖν ἐν υἱῷ, elálēsen hēmĩn en hyiȭ”. Ora, a tradução que melhor expressa a ideia do autor é: “(...) falou-nos (em+o= no) no filho” (Hb 1, 2). Em outras palavras, Deus nos falou na pessoa de Cristo. Ele, Cristo, é a Revelação. Não fala em nome de Deus, é Deus; não anuncia uma “mensagem de paz”, é a paz (Ef 2, 14); não traz uma “mensagem de luz”, é a luz (Jo 8, 12). Não nos dá a alegria, “(...) é a nossa alegria [ipsa est et gaudium nostrum]”[1]. Não aponta um caminho, não diz uma verdade, nem nos conduz a uma vida; antes, é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6). Santo Agostinho explica este versículo assim:

É nesse sentido que o Senhor diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6), isto é, por mim se vem, por mim se chega, em mim se permanece [per me venitur, ad me pervenitur, in me permanetur].[2]

Nosso Senhor é o Α e o Ω (Apo 1, 8). Cristo não nos dá a ressurreição, é a ressurreição (Jo 11, 25). Em uma palavra, Jesus é o grande “Eu sou (ἐγὼ εἰμί, egṑ eimí)” (Jo 8, 58; Ex 3, 14), Deus conosco (Mt, 1, 23). Ele é Deus que Se revela a Si mesmo. É Deus que revela Deus. Daí Santo Agostinho dizer num Sermão: “O Senhor falou-se de si mesmo, anunciou-se a si mesmo (Seipsum quippe locutus est, seipsum annuntiavit)”[3].

Cristo é o Verbo de Deus – que é Deus – que se fez carne (Jo 1, 14), tornando-se, desta feita, uma Palavra não apenas inteligível e audível, mas também visível, tocável, sensível. Deus, em Cristo, disse-nos uma Palavra encarnada. E é esta Palavra – não outra – que a Igreja anuncia desde os primórdios:

O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam, é nosso tema: a Palavra da vida. (...) O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos também a vós (...). (I Jo 1, 1 e 3).

Em Cristo, Deus se tornou também alimento, ganhou um sabor, um gosto:

Eu sou o pão da vida. (...) Minha carne é verdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida. Quem comer a minha carne e beber meu sangue habitará em mim e eu nele. (Jo 6, 47 e 55 a 56).

Então, quem devemos anunciar e como devemos pregar? Comentando o capítulo décimo do Evangelho de São João, em que Nosso Senhor afirma ser a Porta, Santo Agostinho diz aos seus:

Procurando eu entrar em vós, no vosso coração, prego a Cristo. Se eu prego outra coisa, tentarei subir por outra parte. Cristo é pois para mim a porta por onde eu me conduzo a vós. Entrei por Cristo, não nas paredes de vossas casas, mas nos vossos corações.[4]

Alguém poderia arguir-nos: mas as Sagradas Letras são 73 livros, compostos em
épocas distintas, com diferentes gêneros literários e também por autores diversos. Sendo assim, como poderíamos nos ater a Cristo? Porque todos os seus livros – responde a Tradição –  encontram a sua unidade em Cristo. Toda Bíblia não fala doutra coisa senão de Cristo. É em Cristo que as Escrituras se unificam e tornam-se a Escritura, a Bíblia, um todo uno. E lê-la a partir de Cristo, eis o que a Igreja faz desde os primórdios. Comentando um Salmo, assevera Santo Agostinho:

Uma só é a palavra de Deus que se estende por todas as Escrituras; e através da boca de muitos santos ressoa um só Verbo, que sendo no princípio Deus junto de Deus, lá não consta de sílabas, porque está fora do tempo; e não devemos admirar que, por causa de nossa fraqueza, ele desceu até às partículas de nossos sons, quando desceu para assumir a fraqueza do nosso corpo.[5]

Mas não foi justamente isso que Nosso Senhor tentou explicar aos discípulos de Emaús? Diz o texto sacro: “E, começando por Moisés e percorrendo todos os Profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito” (Lc 24, 27). Santo Tomás, ao observar que Cristo – só depois da paixão – mostrou aos discípulos que todas as Escrituras se referem a Ele, interpreta belamente este gesto. Afirma que as Escrituras revelam o sacratíssimo coração de Nosso Senhor, bem como o santíssimo coração do Senhor revela as Escrituras. Destarte, quando o amantíssimo coração de Cristo foi aberto pela lança (Jo 19, 34), também as Escrituras foram abertas aos homens: “Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32). Em outras palavras, só à luz do mistério pascal torna-se claro que toda a Bíblia aponta unicamente para Cristo:

Pelo coração de Cristo é entendida a Sagrada Escritura, que manifesta o coração de Cristo. Este [coração] estava fechado antes da paixão, porque a Escritura era obscura. Mas aberta esta [i.é.,  a Escritura] após a paixão, os que a partir daí a compreendem, consideram e discernem de que modo as profecias devem ser interpretadas.[6] 

Somente à luz dos padres e doutores, podemos entender o dito de São Paulo aos de Corinto: “Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado” (I Cor, 2, 2).

Mister é, pois, pregar a Cristo, levá-lO aos corações! Como? Ora, o que temos a apresentar não é uma simples palavra, mas uma Pessoa, que é o Verbo feito Carne. Nem mesmo é a palavra Cristo propriamente que devemos anunciar, mas sim a pessoa de Cristo que devemos dar. O pregar com palavras é um meio – necessário por certo – pois a fé vem pelo ouvir (Rm 10, 17), mas cujo fim é Cristo nos corações. O Bispo de Hipona adverte aos de seu tempo:

Tens o nome, não tens a realidade. Cristo é um nome que exprime uma realidade. Se quiseres que te aproveite o nome, deves professar a realidade.[7]

As palavras valem por sua significação. Tira a significação à palavra, e resta somente um ruído sem importância.[8]

Como isso se dá? Tal como Deus, em Nosso Senhor, tornou-se uma Palavra encarnada, também o cristão deve tornar-se “(...) uma carta de Cristo” (II Cor 3, 3), ou seja, deve pregar a Cristo também com a palavra, mas sobretudo com a vida, com os seus membros (Rm 6, 19), com o seu corpo  (Rm 12, 1), enfim, com todo o seu ser.

Mas por que Deus, em Cristo, fez-se homem? Já sabemos que foi para revelar-Se, anunciar-Se. Todavia, foi também para se unir a nós efetivamente. O Prólogo do Evangelho de São João nos faz entrever algo do mistério. Diz-nos São João, que o Lógos que era Deus (καὶ Θεὸς ἦv ὁ λόγος, kaì Theòs n ho lógos)” (Jo 1, 1) – sem deixar de sê-lo – fez-se carne: “E o Verbo se fez carne (Καὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο, kaì Theòs ho lógos sarx egéneto) e acampou entre nós (καἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, kaì eskḗnōsen en hēmĩn)” (Jo 1, 14). Com efeito, assumindo a natureza humana – sem deixar de ser Deus – a pessoa do Lógos assuntou a nossa natureza, unindo-a a Deus. Se não, vejamos. São João nos diz que Cristo – Lógos feito carne – é o Unigênito (μονογενής, monogenḗs) do Pai (Jo 1, 18). Entretanto, acresce que, com a Sua Encarnação, Nosso Senhor – aos que O receberam – fê-los filhos de Deus (τέκνα θεοῦ γενέσθαι, tékna Theoỹ genésthai) (Jo 1, 12). Estes – continua ainda o Evangelista – nasceram de Deus (θεοἐγεννήθησαν, Theoỹ egennḗthēsan).

Agora bem, como conciliar: se Cristo é o unigênito do Pai, como os homens tornaram-se filhos de Deus, nasceram de Deus? Cristo deixou de ser o Unigênito? Decerto que não. Na verdade, os homens que aceitam a Cristo, tornam-se filhos, no Filho, pois foi o Filho que os tornou capazes de se tornarem filhos: “Mas aos que o receberam os tornou capazes de ser filhos de Deus” (Jo 1, 12). São Paulo – que escreveu antes de São João – ciente desta filiação, de Unigênito passou a chamar Cristo de Primogênito de muitos irmãos (πρωτότοκον ἐν πολλοῖς ἀδελφοῖς, prōtótokon en polloĩs ádelfoĩs) (Rm 8, 29). E o mesmo São João – como se dando conta desta filiação – celebra em sua Primeira Carta: “Vede que grande amor o Pai nos mostrou: sermos chamados Filhos de Deus (τέκνα θεοῦ κληθῶμεν, tékna Theoỹ klethȭmen) (...)” (I Jo 3, 1). Desta sorte, os primeiros cristãos celebravam não somente Deus que veio a nós, mas – precisamente em razão de Deus ter vindo a nós em Cristo – o fato de nós também termos ido a Deus. Destarte, os cristãos cantavam também a ascensão da natureza humana em Cristo. O homem feito “do pó da terra”, por Cristo, subiu ao Céu. O nosso barro, em Cristo, tornou-se sublime:

Congratulemo-nos com a natureza humana, pois foi assumida de tal sorte pelo Verbo Unigênito, que é imortal no céu! A terra tornou-se tão sublime, que o pó tornado incorruptível foi sentar-se à direita do Pai.[9]

Os padres – gregos e latinos – uníssonos celebravam esta elevação da natureza humana em Cristo. Santo Ireneu, no século II, afirmava:

Este é o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem: para que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho de Deus.[10]

 (...) o Verbo de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor, que na sua imensa caridade se fez o que nós somos para nos elevar ao que ele é.[11]

Ora, mas Cristo é Deus. Assim, se Ele se fez homem para que nos tornássemos o que Ele é, a sua Encarnação deificou o homem. A Encarnação, portanto, não é somente o mistério de Deus que se fez homem – sem deixar de ser Deus – mas do homem que, sem deixar de ser homem – em Cristo – tornou-se partícipe da natureza divina. Pelo que Santo Atanásio, no século IV, afirma: “Ele [Cristo] se fez homem para que fôssemos deificados”[12]. E Santo Tomás, no século XIII, citando uma homilia natalina de Santo Agostinho, remata de forma claríssima: “Deus se fez homem para que o homem fosse feito Deus [Factus est Deus homo, ut homo fieret Deus]”[13].

Agora bem, isto significa uma espécie de panteísmo? De forma alguma. Significa que nos unimos a Deus, como a pessoa do Verbo uniu a si a nossa natureza? Não! Somos deificados por participação. E o termo grego que expressa esta forma de participação é metékhein (μετέχειν). Este vocábulo indica um “ter com”, um “co-ter”, ou simplesmente um “ter” em oposição a “ser” (Lauand). Aplicado ao que dizemos, significa que, em virtude da nossa união com Cristo, passamos a ter uma natureza divinizada, sem sermos duma natureza divina; dito doutra forma ainda: por Cristo passamos a ter uma natureza divina, sem passarmos a ser divinos por natureza. Ora, esta deificação se realiza através dos sacramentos da Igreja, a começar pelo Batismo que nos associa a Cristo, tornando-nos consortes da natureza divina: “θείας κοινωνοὶ φύσεως, Theías koinōnoì fýseōs” (II Pe 1, 4). Temos, então, que a Encarnação é Deus que Se revela a Si mesmo em Cristo, mas que também nos busca, a fim de que voltemos a gozar da Sua intimidade – mais – a fim de que nos tornemos Seus filhos em Cristo. Santo Ireneu descreve esta “dialética” da Encarnação da seguinte forma:

Pois ele é o Verbo de Deus, que habitou no homem e se fez Filho do homem para habituar o homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o beneplácito do Pai.[14]
  
Agora, como podemos nos encontrar com Cristo, como podemos tocá-lO e ser tocados por Ele concretamente? Certa feita, muitos contemporâneos de Nosso Senhor O rodeavam e uma multidão O espremia, sem, no entanto, tocá-lO. Até que Ele próprio disse: “Quem me tocou?” (Lc 8, 45). Pedro e os discípulos – vendo que a multidão quase O esmagava – como que indignados, interpelaram-nO: “Vês a multidão que te comprime e perguntas ‘Quem me tocou’?” (Mc 5, 31). Mas Nosso Senhor insistiu: “Alguém me tocou; eu senti (...)” (Lc 8, 46). Na verdade, era uma mulher que sofria de um fluxo de sangue. E o que aconteceu neste toque? Comunicação. De Jesus, saiu uma força, anunciada por Ele próprio: “(...) senti que uma força saía de mim” (Lc 8, 46); da que sofria de hemorragia, foi a sua enfermidade que desapareceu. As Escrituras dizem: “(...) ficara instantaneamente curada” (Lc 8, 47). Mas o que a fez tocar Jesus e ser tocada por Ele, a ponto de ficar curada do seu mal? O que estabeleceu esta comunhão, este contato? O Senhor responde: “Minha filha, tua FÉ te salvou (...)” (Lc 8, 48). Na verdade, fisicamente, nem foi bem Nosso Senhor que ela “tocou”, mas a “(...) orla do manto (...)” (Mt 9, 21). Tanto que a pergunta de Cristo parece ter sido: “Quem tocou minhas roupas?” (Mc 3, 30). E, no entanto, foi a Cristo que ela tocou: “Alguém me tocou (...)” (Lc 8, 46). O que significa isso? Significa que nem todos os contemporâneos de Nosso Senhor que fisicamente “esbarravam” nEle, tocaram-nO verdadeiramente, mas somente aqueles que tinham fé! O mais das vezes, suspiramos por ter vivido no tempo de Cristo. Porém, não foi o fato de a hemorroíssa ter vivido no tempo de Cristo que possibilitou que Ela O reconhecesse como Deus, mas sim a sua fé. Aspiremos, pois, a este dom de Deus: a fé! É a fé, portanto, que nos faz tocá-lO e ser tocados por Ele. Sobre esta passagem, celebra Santo Agostinho num Sermão:

Mas aquele tocar significa a fé (Sed ille tactus fidem significat). Toca em Cristo quem crê em Cristo (Tangit Christum, qui credit in Christum). Pois também aquela mulher que padecia de um fluxo de sangue disse para si mesma: se eu tocar a orla de seu manto, eu serei salva. Tocou-a com a fé, e subsequentemente ficou sã, como havia pressuposto. Ademais, para que soubéssemos o que é verdadeiramente tocar, o Senhor disse depois a seus discípulos: “Quem me tocou?” Responderam os discípulos: “A turba te comprime e perguntas: Quem me tocou?” E ele replicou: ‘”Alguém me tocou”, quase que dizendo: “A multidão comprime, a fé toca.”[15]

Noutra Prédica, Santo Agostinho faz a mesma reflexão:

Nós não corremos para Cristo caminhando, corremos para Cristo acreditando. Não é pelo movimento do corpo que nós nos aproximamos de Cristo, é pela vontade de coração. A mulher que tocou a orla do vestido do Senhor, estabeleceu com ele um contato mais estreito do que a multidão. Por isso o Senhor perguntou: “Quem me tocou?” E os discípulos disseram admirados: ‘As multidões apertam-te e comprimem-te, e perguntas: “Quem me tocou. E Jesus disse: Alguém me tocou”. A mulher toca o Senhor, e a multidão comprime-o. Que quer dizer “tocou-o”? Quer dizer: “acreditou”.[16]

Pela fé, nós podemos estar mais próximos de Nosso Senhor do que estiveram os seus contemporâneos. Aliás, a fé – mesmo num plano natural e mais ainda no sobrenatural – abarca, essencialmente, um aproximar-se, um tornar-se próximo. Basta olharmos para a vida humana. De quem somos mais próximos? Somos mais próximos daquelas pessoas em quem acreditamos. Assim na vida espiritual, próximo do Senhor é aquele que nEle crê. Afirma Santo Agostinho que, assim como nós nos movemos para onde queremos ir por meio de nossos pés, assim a alma se move por meio da fé: “Acreditar é aproximar-se. Quem acredita aproxima-se, e quem nega afasta-se. A alma não se move por meio de pés, mas de afetos”[17]. Por isso, a fé movimenta a alma para Deus. A fé compreende um aproximar-se, que só alcança seu termo na visão, no encontro. Santo Tomás, com contundência, afirma que a fé – quando verdadeira – não termina nas fórmulas ou enunciados, mas na realidade em que se crê:

Ora, o ato do que crê não se orienta para o enunciado, mas para a coisa: não formamos enunciados a não ser para que tenhamos conhecimento das coisas, como acontece na ciência, também na fé.[18]

Na verdade, ao dizê-lo, Santo Tomás não faz senão retomar a Tradição. Santo
Agostinho já dizia que os bons espíritos têm um traço que lhes é peculiar: “Aí está um traço marcante dos bons espíritos: amar nas palavras a verdade e não as próprias palavras”[19]. São João Crisóstomo, comentando a Carta aos Romanos, diz o mesmo: “(...) o sinal é inferior à coisa significada”[20]. Pois bem, a fé – que sem dúvida passa pelo Símbolo professado –termina, contudo, no estabelecimento dum contato espiritual entre nós e o mistério professado. Em outras palavras, quando cremos, não cremos apenas em coisas futuras, mas misteriosamente já fruímos daquela Vida que confessamos ser Cristo. O autor da Carta aos Hebreus é absolutamente claro quanto a isso: “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio de conhecer realidades que não se vêem” (Hb 11, 1). Tomás, quando abre o seu Compêndio de Teologia, afirma categoricamente que a fé é um antegozo, um modo de possuir desde agora algo da bem-aventurança eterna. A fé arrasta o futuro para o presente. A fé torna presente, em mistério, o futuro. Diz o Santo Doutor:

A fé é uma certa prelibação daquele conhecimento que nos fará bem-aventurados no futuro. O Apóstolo disse que ela é a ‘substância das que se esperam’ (Hb 11, 1), fazendo existir em nós, por certa incoação, as coisas que se esperam, isto é, a felicidade futura.[21]

A bem da verdade, nem precisamos esperar os padres e doutores, quando o próprio Senhor no-lo diz: “(...) aquele que crê tem a vida eterna” (Jo 6, 46). Portanto, desde já, pela fé, inicia-se em nós a vida eterna! Daí Santo Agostinho dizer que, tal como a alma é a vida do corpo, a fé é a vida da alma: “Donde provém a morte da alma?
De não haver fé. Donde provém a morte do corpo? Da ausência da alma. Portanto a fé é a alma da alma”[22]. E quando morre a fé? Já dizíamos que a fé é um aproximar-se de Cristo. São Paulo dirá que a fé é um modo de Cristo habitar em nosso coração: “(...) que Cristo habite pela fé em vossos corações (...)” (Ef 3, 17). Sendo assim, a fé morre quando nos afastamos de Cristo, quando O deixamos de lado, quando O esquecemos. E como isso ocorre? Quando nos fiamos em qualquer outra coisa que não seja Ele. Enquanto os discípulos tentavam domar as ondas apenas com as suas próprias forças, foram tomados pelos ventos do medo e houve grande tempestade (Mt 8, 23 a 27). Com efeito, nas Escrituras, o contrário de medo não é coragem, mas fé. A fé é a nossa coragem. Tal como a alma é o princípio de movimento do corpo, assim a fé é o princípio de movimento da alma: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4, 13). Donde o Doutor de Hipona dizer acerca da cena evangélica: se pela fé Cristo habita em nossos corações, o fato de ele estar dormindo significava que a fé dos discípulos também dormia. Ao contrário, Cristo ao ser despertado, diz-nos que a fé dos discípulos tinha retornado. A grande bonança é Cristo acordado no coração do fiel:

Se no interior há fé, aí está Cristo a bramir. Se em nós há fé, está em nós Cristo. (...) A tua fé tem a sua fonte em Cristo. Cristo está no teu coração. (...) O esquecimento da fé é o sono de Cristo no teu coração. Se acordares Cristo, isto é, se despertares a fé, que te diz Cristo que já está em certo modo acordado no teu coração? (...).[23]

A exortação de São Paulo continua a ressoar pelos séculos: “Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará” (Ef 5, 14). O Apóstolo pede o despertar da fé!

A propósito, não é só o futuro que a fé – de certo modo – torna presente, mas também o passado. Sim, a fé torna presente o passado. Ou melhor, ela não permite que o passado seja passado, isto é, o que já passou e acabou. Isto acontece de forma mais solene na liturgia eucarística – grande mistério da fé – na qual o sacrifício do Calvário se perpetua. Não se repete, mas se pereniza pela ação do Espírito Santo. Não acontece de novo, mas nunca se torna passado. Jamais envelhece, pois não se encerra “num já passou”; antes, permanece sempre novo, sempre único. O mistério é celebrado por Santo Agostinho que, ao falar da paixão e ressurreição do Senhor, diz sobre a liturgia:

A verdade indica [as coisas] que foram feitas e como foram feitas. A solenidade, ao contrário, não os fazendo, mas os celebrando, não permite que os fatos pretéritos sejam preteridos.[24]

De fato, pela fé – como que ultrapassando os limites do tempo – experimentamos algo da eternidade; encontramo-nos naquele presente vivo pelo qual tornamo-nos contemporâneos dos eventos da salvação e contemporâneos da Igreja triunfante. A fé une o que o tempo separa.

Mas de qual fé estamos falando?  Sabemos que, “(...) sem a fé, é impossível
agradar a Deus” (Hb 11, 6). Porém, São Tiago nos adverte: “Tu crês que há um só Deus? Ótimo! Lembra-te, porém, que também os demônios crêem, mas estremecem” (Tg 2, 19). E conclui: “Assim também a fé, se não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2, 17). Por vezes pensamos que a fé morta da qual nos fala São Tiago é – se bem que morta – uma espécie de fé. Não, não é isto que ele nos diz. A fé morta não é fé. Não há fé quando a fé é morta! Por outro lado, não se trata de pensar que dum lado está a fé e doutro as obras; trata-se, ao contrário, de compreender que a verdadeira fé produz obras. Como um corpo vivo não pode ficar imóvel, a fé – se é fé – não pode ficar ociosa. São Tiago diz: “(...) o homem é justificado pelas obras e não simplesmente pela fé” (Tg 2, 24). É preciso ponderar. Não se trata de dizer que a fé seja estranha às obras ou as obras à fé, porque também as obras sem a fé sobrenatural nada valem na ordem da salvação. A verdade está aqui: a fé – e as obras que procedem dela – formam uma unidade; como no homem, a vida do corpo é dada pela alma, assim as obras meritórias procedem da fé que opera pela caridade. Daí São Tiago dizer: “Com efeito, como o corpo sem o sopro de vida é morto, assim também é morta a fé sem as obras” (Tg 2, 26). Santo Agostinho expressa isso da seguinte forma num Sermão: “O Senhor não separou da fé a obra; disse que a própria fé já é uma obra. Trata-se da fé que opera pela caridade (Gal 5, 6)”[25].

Todavia, a fé verdadeira possui outros “sinais”. Diz São João que Deus nos manda isso: “(...) que creiamos na pessoa de seu Filho Jesus Cristo (ἵνα πιστεύσωμεν τὀνόματι τοῦ υἱοῦ αὐτοἸησοῦ Χριστοῦ, hína pisteýsōmen tȭ onómati toỹ hyioỹ aytoỹ Iēsoỹ Khristoỹ= Que nós creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo)” (I Jo 3, 23). Já sabemos que crer implica aproximar-se, implica entregar-se. Sabemos também em quem devemos crer, a saber, em Cristo. No entanto, quantos são os que buscam Cristo, mas não por causa de Cristo e, sim, por benesses temporais. Quantos – meu Deus! – quantos O abandonam depois que recebem ou não conseguem o benefício que buscam. É preciso dizer, estes não buscam Nosso Senhor, não querem ter intimidade com Ele, procuram apenas um taumaturgo, um benfeitor. Buscam-nO, mas não por causa dEle e, sim, por causa de vantagens temporais. A fé verdadeira, a fé católica – grita Agostinho – é buscar Jesus por Jesus:

Quantos os que não procuram Jesus senão para receber benefícios de ordem temporal! Está envolvido num negócio, e procura a intervenção dos clérigos. Outro foge para a Igreja, ao ver-se oprimido por um mais poderoso. Outro quer que se interceda a seu favor junto de alguém que o tem em pouco apreço. Raras vezes se busca a Jesus por causa de Jesus (Iesus propter Iesum).[26]

Aos que O procuravam apenas por causa do pão material (Jo 6, 22 a 27), Cristo disse que deveriam buscar o Pão do Céu, o Pão da Vida, que é Ele mesmo (Jo 6, 35). Naquele episódio – comenta o Bispo de Hipona – Nosso Senhor estava a dizer: “Procurais-me por vários motivos, e deveis procurar-me por causa de mim mesmo (quaerite me propter me)”[27].

Então, qual é a fé verdadeira? A fé é um dom de Deus (Ef 2, 8). Ela não procede das obras, não é um hábito que possa ser adquirido com esforço. Antes, a fé é um presente de Deus, uma virtude infusa. E ela só é verdadeira quando brota do amor, isto é, da caridade, que também é dom de Deus; a caridade nos capacita a amar a Deus por Deus e ao próximo por Ele. A caridade nos capacita também a crermos em Cristo por amor, a crermos nEle por Ele. Só quem crê porque ama, crê verdadeiramente. Finalmente, a fé – porque procede do amor – une-nos uns aos outros, é um movimento que nos faz “abandonar” o nosso “eu” para  nos abraçarmo-nos num “nós”. Melhor, faz com que integremos o nosso “eu” num “nós”. A fé nos une a Cristo, nos faz Corpo de Cristo. Em uma palavra, a fé é, por essência, um evento eclesial. Adverte-nos Santo Agostinho que qualquer outro tipo de “crença” não é fé. Quem não crê por amor, tem uma “fé” natural que até os demônios possuem. Exorta o santo Bispo:

Que acrediteis nele, e não somente que lhe presteis crédito. Quem acredita nele, presta-lhe crédito; mas não se segue que sempre acredita nele quem lhe presta crédito. Os demônios também lhe prestavam crédito e não acreditavam nele. (...) Que é, pois, acreditar nele? É amar acreditando, dedicar-se acreditando, ir para ele acreditando, e ser incorporado nos seus membros. Tal é a fé que Deus exige de nós; mas Deus não encontra o que exige, se não der o que deseja encontrar. (...) Não se trata de qualquer fé, trata-se da fé que opera pela caridade. Haja em ti esta fé.[28]

E o que a fé nos dá? A vida eterna! Mas o que é a vida eterna? A rigor, é Deus mesmo. Porém, tentemos entender este mistério um pouco mais de perto. Afirma Nosso Senhor: “(...) a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Observemos, porém, que para um judeu piedoso, conhecer não era algo somente ou preponderantemente teórico. Na Bíblia, a palavra conhecer significa coabitar, ou seja, unir-se com aquele que se conhece. Se não há isso, não há verdadeiro conhecimento para o judeu. Ora, é justamente este conhecimento que a fé nos dá. Não somente um conhecimento de “saber acerca de”; não se trata simplesmente de um saber de “ouvir dizer”, mas sim de um saber que provém do experimentar Deus. Santo Tomás, quando fala deste conhecimento, usa um exemplo muito simples. Uma coisa é saber o que é a castidade quando se conhece, estudando, o que é o hábito da castidade; outra, é saber o que é a castidade quando se é casto. Assim, uma coisa é saber, estudando, algo de Deus; outra, é saber quem é Deus por tê-lO em nós, por nos envolvermos com Ele, por Ele ter-se tornado familiar a nós, por gozarmos da Sua intimidade. Em uma palavra, conhecemos a Deus quando nos tornamos Seus consortes. Ora, é precisamente este saber – ratificamos – que a fé inicia em nós e que se desabrocha pela caridade e que se consumará na glória. A fé não termina na confissão de fórmulas, mas nAquele que confessamos: Deus! Este é o saber que nos salva. Diz Santo Tomás:

Assim, no que diz respeito à castidade, aquele que aprendeu a ciência moral julga bem em conseqüência de uma inquirição racional; enquanto aquele que tem o hábito da castidade julga bem por uma certa conaturalidade com ela. Assim, portanto, no que diz respeito às realidades divinas, ter um julgamento correto em virtude de uma inquirição da razão pertence à sabedoria, que é uma virtude intelectual. Mas, julgar bem as coisas divinas por modo de conaturalidade pertence à sabedoria enquanto é um dom do Espírito Santo. Dionísio, falando de Hieroteo, diz que ele é perfeito no que se refere ao divino “Não somente por apreendê-lo, mas também por experimentá-lo.”[29]

Ora, este conhecimento experiencial de Deus provém do Espírito Santo. São Paulo fala sobre este conhecer aos Coríntios, explicando: “Quem, pois, dentre os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está?” (I Co 2, 11). Na sequência, ele aplica a analogia: “Da mesma forma, o que está em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus” (I Co, 2, 11). Pois bem, diz São Paulo: “Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus” (I Co 2, 12). O Apóstolo raciocina. Se quem conhece a Deus não é senão o Espírito de Deus, e se este nós O recebemos, ele no-lo foi dado “(...) a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus (I Co 2, 12). Na verdade, em virtude de estarmos unidos a Cristo como membros do Seu Corpo Místico –  e sendo Cristo Deus – de algum modo tornamo-nos “(...) participantes da natureza divina” (II Pe 1, 4), participando – decerto de modo imperfeito – também do conhecimento de Cristo: “Nós, porém, temos o pensamento de Cristo” (I Co 2, 16). Ora, é desta sabedoria que Santo Tomás fala, a saber, a que procede dum contato espiritual com Deus. Este é o conhecimento que se aprofunda nos grandes místicos, como São João da Cruz, e é diverso – nunca contrário – à sabedoria teológica.

Agora bem, como chegar a este conhecimento saboroso de Deus? Através da oração. Procuremos adentrar, por um instante, no mistério da oração cristã. No meio dum Sermão sobre o Evangelho de São João, Santo Agostinho nos dá uma pista: “Não receeis a solidão (nolite solitudinem formidare).[30] A que exatamente o Santo Doutor se refere? Na verdade, ele nota que Nosso Senhor, quando queria estar com o Pai, retirava-se. Donde advertir os seus:

É difícil ver-se Cristo quando se está no meio da multidão. O nosso espírito tem necessidade de solidão; é na concentração do espírito que se pode ver Deus, e essa é fruto da solidão. A multidão faz barulho, e a visão de Deus exige silêncio. Não procureis Jesus na multidão, porque Jesus não faz parte dela, mas passai para além de toda multidão.[31]

De fato, Nosso Senhor mesmo é o primeiro a nos testemunhar que a oração reclama, algumas vezes, que recuemos. Diz-nos São Marcos que, por ocasião do episódio da transfiguração, “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou, sozinhos, para um lugar retirado sobre a Montanha” (Mc 9, 2). E afirma que “Ali foi transfigurado diante deles” (Mc 9, 2). Ali, no lugar retirado, na solidão da Montanha, Deus mostrou-se. Noutro episódio, enquanto disse aos demais discípulos que permanecessem ali, afastou-se com os seus diletos. Disse: “‘Sentai-vos enquanto vou até ali para orar’. Levando Pedro e os dois filhos de Zebedeu” (Mt 26, 36-37). São Lucas – sempre atento à dinâmica da oração – acresce que Ele “(...) afastou-se deles mais ou menos um tiro de pedra (...)” (Lc 22, 41). E o que aconteceu naquela solidão? O Adorável Redentor revelou o seu íntimo aos seus discípulos, abriu Sua alma amantíssima. Diz o texto Sagrado: “(...) começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes: ‘Minha alma está triste até a morte’” (Mt 26, 37-38). No segredo, começou a segredar-lhes. Mas o texto de São Marcos vai mais longe, ao dizer que Nosso Senhor “(...)  indo um pouco mais adiante, caiu por terra, e orava (...)” (Mc 14, 35). São Lucas afirma ainda que algo aconteceu quando Nosso Senhor ficou absolutamente sozinho em oração: “Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava” (Lc 22, 43). O que temos aqui? O conforto de Deus dá-se na solidão. Deus também quer nos consolar, que se revelar a nós, a cada um segundo a medida da graça. No Evangelho de São Mateus, quando Nosso Senhor fala da oração, é claro quanto a isso: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora a teu Pai (...)” (Mt 6, 6). E diz mais: “(...) ora a teu Pai que está lá, no segredo; e teu Pai, que vê no segredo, te recompensará” (Mt 6, 6). Deus está no segredo, Deus vê no segredo. Deus habita no silêncio. Deus nos vê no segredo. Na solidão e no silêncio, iremos encontrar-nos com Deus, pois Ele mora por lá e nos espera. Precisamos do “ali” da oração, que se opõe ao “aqui”. A oração é um movimento da graça que, por um momento, “segrega-nos” do mundo para nos fazer encontrar com Aquele que, no secreto, deseja secretar-nos a Sua santíssima vontade. Precisamos constantemente voltar-nos àquele deserto, onde podemos ficar a sós com Deus. “Ele porém permanecia retirado em lugares desertos e orava” (Lc 5, 16). Não se trata de quietismo, pois da oração sempre saímos renovados, como veremos.

Dizíamos neste texto que devemos pregar a Cristo. Mas como anunciar a Cristo? São Paulo diz aos Coríntios: “(...) minha palavra e minha pregação nada tinham da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram uma demonstração de Espírito e poder (...)” (I Cor 2, 4).  Mas por que o Espírito Santo é necessário na pregação cristã? Porque é o Espírito quem vivifica as Escrituras e faz com que não apenas as leiamos, mas escutemos nelas a voz de Cristo. Di-lo-á o próprio Senhor:

Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesmo (...) Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vos anunciará. (...) ele receberá do que é meu. (Jo 16, 13, 14 e 15).

O que diz Nosso Senhor? Afirma que o Espírito não trará uma nova Revelação; antes, ensinará à Igreja o verdadeiro sentido da palavra de Deus. Ele dirá as palavras de Cristo. A bem da verdade, as Escrituras foram inspiradas pelo Espírito. Ora, se é Ele quem as inspirou, quem melhor do que Ele para explicá-las? Outrossim, se o Espírito – como diz o Senhor –  “(...) vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos disse (...)” (Jo 14, 26), é a voz e a doutrina de Cristo que o Espírito nos traz. Destarte, urge termos a graça do Espírito. Neste sentido, já Santo Tomás dizia que, “(...) também a letra do evangelho mataria, a não ser que estivesse presente, interiormente, a graça da fé que cura”[32]. E quem confere esta graça? Responde o mesmo Tomás: “(...) a própria graça do Espírito Santo dada interiormente”[33]. Desta sorte, pela ação do Espírito, a letra da Bíblia ganha, por assim dizer, uma voz; torna-se, então, audível, encarnada, contemporânea a nós. Daí dizer Santo Agostinho: “O Evangelho é a voz de Cristo (Os  Christi, Evangelium est. [os, oris, significa boca, fala, voz])”[34].  De mais a mais, o mesmo Bispo de Hipona dizia que, quando lia o Evangelho – ao ouvir a voz de Cristo – era tomado de santo temor. Num dos seus Sermões, chega a dizer: “O Evangelho me aterroriza [terret me evangelium]”[35].

Onde recebemos o Espírito Santo? Antes de tudo, no Batismo (Rm 6). Porém, também pela oração. Dizem as Escrituras: “(...) no momento em que Jesus, também batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele (...)” (Lc 3, 19). Obviamente que Nosso Senhor já tinha o Espírito Santo. Ele é Deus. Todavia, o mistério do Batismo de Cristo nos diz algo: a oração é sempre o momento em que o Céu se abre e recebemos o Espírito Santo.

E como dizíamos acima, a oração não nos aliena da realidade, mas nos dá força para enfrentá-la. Tentemos entender isso melhor. As Sagradas Letras dizem que “Jesus, pleno do Espírito Santo, voltou do Jordão; era conduzido pelo através do deserto, durante quarenta dias (...)” (Lc 4, 1 e 2). O que nos diz o hagiógrafo? O próprio Espírito nos impele como ao Senhor à oração no deserto. Mas o texto sacro continua: “Jesus voltou para a Galiléia, com a força do Espírito, e sua fama espalhou-se (...)” (Lc 4, 14). O que nos diz o texto? Afirma que o mesmo Espírito que nos inspira à oração impulsiona-nos à ação. No episódio da Transfiguração, o mesmo Cristo que levou os discípulos à montanha, fê-los descer dela – à revelia de Pedro (Lc 9, 34) – ao encontro da multidão: “No dia seguinte, ao descerem da montanha veio ao seu encontro grande multidão” (Lc 9, 37). A oração cristã nos leva à ação, ao encontro da multidão. Na verdade, a oração – inclusive a de intercessão – é conditio sine qua non para que haja uma pregação cristã. Assim nos ensina o Doutor de Hipona em seu manual de exegese cristã: “(...) orando por si e por aqueles a quem falará, deve ser orante, antes de ser orador”[36] . E ainda: “(...) fala após ter rezado (...)”[37].

Uma última questão – porém, a mais importante – é saber: quem deve,
prioritariamente, pregar a Cristo? Recordemos que nos capítulos do Evangelho de São João (14-16) em que Nosso Senhor fala do Espírito Santo como aquele que instrui, este discurso era destinado aos onze. E hoje, quem são os sucessores dos Apóstolos? O Papa e os Bispos a ele (i.é., ao Papa) obedientes. Portanto, foi a eles, primeiramente, que Cristo prometeu a assistência do Espírito. A eles o múnus de exercer a docência. A eles, por conseguinte, o condão de pregar a Cristo. Desta feita, os leigos só podem trazer uma palavra apostólica, quando obedientes aos sacerdotes obedientes aos Bispos, e estes, por sua vez, obedientes ao Sumo Pontífice. Encerramos este pequeno texto com a máxima agostiniana, que nos convida à unidade e à obediência à Igreja: “Eu, na verdade, não creria no Evangelho se não me impulsionasse a isto a autoridade da Igreja Católica”[38].



[1] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1952. v. IV. LXXXIII, 1.
[2] AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Paulo Bazaglia e Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2002. I, 34, 38.
[3] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1960. v. III. LIV, 6. 
[4] Idem. Ibidem. XLVII, 2.
[5] AGOSTINHO. Comentário aos Salmos. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Balboco. São Paulo: Paulus, 1998. v. III. 103, IV, 1. 
[6] TOMÁS DE AQUINO. Super Psalmo. 21,11. Disponível em: <http://www.corpusthomisticum.org/cps21.html>. Acesso em: 15/01/ 2014. (A tradução, para o português, é nossa).
[7] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida.  XLV, 5.
[8] Idem. Ibidem. 
[9] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. LXXVIII, 3. 
[10] IRENEU DE LIÃO. Contra as Heresias. 2ª ed. Trad. Lourenço Costa. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995. III, 19, 1. p. 336.
[11] Idem. Op. Cit. V, Prefácio. p. 518.
[12] ATANÁSIO. A Encarnação do Verbo. Trad. Orlando Tiago Loja Rodrigues Mendes. São Paulo: Paulus, 2002. VI, 54, 3. p. 198.
[13] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. III, 1, 2, C. 
[14] IRENEU. Op. Cit. III, 20, 2. p. 340. 
[15] AGOSTINHO. Sermo 243. 2, 2. In: Obras Completas de San Agustín XXIV: Sermones (4.ª). Trad. Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1983. p. 485. (A tradução para o português e o negrito são nossos. Como se trata de uma edição bilíngue, o mais das vezes optamos por seguir o original latino).
[16] Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. XXVI, 3.
[17] Idem. Ibidem. XLVIII, 3.
[18] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. II-II, 1, 3, ad 2. 
[19] AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. IV, 11, 26.
[20] JOÃO CRISÓSTOMO. Homilias Sobre a Carta aos Romanos. Trad. Mosteiro da Mãe do Cristo. Rev. Iranildo Bezerra Lopes. São Paulo: Paulus, 2010. Oitava Homilia. p. 148.
[21] TOMÁS DE AQUINO. Compêndio de Teologia. 2ª ed. Trad. Odilão Moura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. I, II, 1.
[22] Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. XLIX, 14. 
[23] Idem. Ibidem. XLIX, 19.
[24] AGOSTINHO. Sermo 220. 1. p. 227. In: Obras Completas de San Agustín XXIV: Sermones (4.ª). Trad. Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1983. p. 485. (A tradução para o português e os destaques são nossos. Como se trata de uma edição bilíngue, o mais das vezes optamos por seguir o original latino). 
[25] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v. II. XXV, 12. 
[26] Idem. Ibidem. XXV, 10.
[27] Idem. Ibidem.
[28] Idem. Ibidem. XXIX, 6. 
[29] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, 45, 2, C. (O negrito é nosso). 
[30] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. XCIII, 4.
[31] Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XVII, 11.
[32] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, 106, 2, C. 
[33] Idem. Ibidem.
[34] AGOSTINHO. Sermo 85. 1, 1. In: Obras Completas de San Agustín X: Sermones (2.ª). Trad. Lope Cilleruelo, Moises M.ª Campelo, Carlos Moran y Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1983. p. 498. (A tradução para o português e os destaques são nossos. Como se trata de uma edição bilíngue, o mais das vezes optamos por seguir o original latino).
[35] AGOSTINHO. Sermo 339. 4. In: Obras Completas de San Agustín XXVI: Sermones (6.ª). Trad. Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1985.  p. 9. (A tradução, para o português, é nossa).
[36] AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. IV, 16, 32.
[37] Idem. Ibidem. IV, 18, 34.
[38] AGOSTINHO. Réplica a la carta llamada «del Fundamento». 5, 6. In: Obras Completas de San Agustín XXVI: Escritos antimaniqueos (1.ª). Trad. Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1986.. p. 391. (A tradução, para o português, é nossa).