quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Retiro quaresmal - Quinta-feira da I semana.


Por Dom Henrique Soares

Escute esta exortação:

"Expia teus pecados e injustiça com esmolas e obras de misericórdia em favor dos pobres; assim terás longa prosperidade" (Dn 4,24b).

Assim, entramos noutro tema próprio deste sagrado tempo: a esmola.

Não restrinjamos a esmola ao dar uma ajuda material a algum necessitado. É esmola qualquer obra de misericórdia. A tradição da Igreja as sistematiza em quatorze.

Sete delas são chamadas corporais:
Dar de comer a quem tem fome;
Dar de beber a quem tem sede;
Vestir os nus;
Dar abrigo aos peregrinos;
Assistir aos enfermos;
Visitar os presos;
Enterrar os mortos.
As sete outras são chamadas espirituais:
instruir;
aconselhar,
consolar,
confortar,
perdoar,
suportar com paciência,
rezar pelos vivos e pelos mortos.

Alarguemos ainda mais: esmola é todo bem, toda abertura, todo gesto de amor e serviço e cuidado em relação aos próximos; esmola é qualquer aproximação dos distantes para ajudá-los por amor de Cristo.

A Palavra de Deus nos exorta, portanto, a que saiamos de nós e vamos em direção aos outros para ajudá-los. E isto por amor de Cristo, que veio em nossa ajuda, fazendo-Se homem por nós, por nós tomando a condição humana, fazendo-Se servo da nossa salvação: "Conheceis o exemplo de Jesus Cristo que sendo rico, Se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza!" (2Cor 8,9)

Portanto, neste dia quaresmal, diante do Senhor, perguntemo-nos pela realidade e pela qualidade da nossa relação com os irmãos: em casa, no trabalho ou na escola, na sociedade em geral, no círculo de amizade e conhecimento...

Sair em direção ao outro, para um cristão, não deveria ser simplesmente questão de simpatia ou conveniência, mas realmente um sair de si, um esquecer-se dos próprios interesses para fazer o bem a outros...

E qual a motivação? O amor de Cristo: "A Mim o fizestes!"

O texto de Daniel, acima citado, fala em expiar os pecados com a esmola e em ter prosperidade... Compreendamos bem!

Expiar os pecados. A esmola por amor de Cristo abre o meu coração para o irmão, que é imagem viva de Deus. Servindo o irmão desinteressadamente é ao Senhor que estarei servindo. Saindo de mim em direção aos outros por amor ao Senhor, vou curando meu fechamento, pondo medicina no meu egoísmo, vou aprendendo a não me colocar no centro de tudo. Assim, abrindo-me, vou deixando Deus entrar na minha vida e vou pondo remédio à minha pecaminosa tendência ao fechamento em mim mesmo, tudo colocando a meu serviço.

A esmola me corrige, a esmola torna o meu amor concreto, efetivo, a esmola mostra a veracidade da minha fé no Senhor. Mais: a esmola, pelo trabalho de sair de mim mesmo, expia, corrige, o meu pecaminoso egoísmo! Por isso ela expia os pecados, põe neles remédio!

Ter longa prosperidade. Aqui não temos nada a ver com a maldita, pagã, satânica e mentirosa teologia da prosperidade, que é serviço ao deus Mamon, Príncipe deste mundo.

A verdadeira prosperidade é uma vida na sabedoria, isto é, uma vida vivida segundo o Senhor Deus e, portanto, vida no Shalom, na paz verdadeira, que somente o Senhor pode dar - e não a dá como o mundo dá!

Shalom: paz, prosperidade de uma existência sadia, realizada, é a harmonia, a comunhão com o Senhor Deus que gera harmonia interior consigo mesmo, comunhão com os outros e com toda a criação. Eis uma vida próspera na perspectiva de Deus: uma vida cheia de sentido, uma vida vivida na perspectiva da Eternidade.

A esmola, abrindo-nos para os outros por amor de Deus, traz-nos maturidade, capacidade de comunhão com o Senhor é com todas as Suas criaturas.

Pense nestas realidades.


Reze o Salmo 39/40

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Retiro quaresmal - Quarta-feira da I semana.

Por Dom Henrique Soares

Naquele tempo, disse Jesus aos Seus discípulos: 7“Quando orardes, não useis muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por força das muitas palavras.

8Não sejais como eles, pois vosso Pai sabe do que precisais, muito antes que vós o peçais.
9Vós deveis rezar assim: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o Teu Nome;
10venha o Teu Reino; seja feita a Tua vontade, assim na terra como nos céus.
11O pão nosso de cada dia dá-nos hoje.
12Perdoa as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido,
13e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal.
14De fato, se vós perdoardes aos homens as faltas que eles cometeram, vosso Pai que está nos céus também vos perdoará.
15Mas, se vós não perdoardes aos homens, vosso Pai também não perdoará as faltas que vós cometestes” (Mt 6,7-15).

A oração é uma das observâncias do santo tempo da Quaresma.

Quantas vezes, nos santos evangelhos, o Senhor não manda rezar!

Pois eu lhe digo, caro Irmão:

Quem reza se salva,

Quem não reza é ateu!

Quem reza se salva porque a oração nos abre para o Senhor Deus. Quem reza experimenta de verdade que Deus é o Tudo da sua vida. A oração vai nos fazendo perceber que o Senhor não é algo, mas Alguém, pessoal, amoroso, concreto, atuante!

Assim, a oração nos salva do fechamento para o Senhor Deus, tira-nos da ilusão de pensar que nós nos bastamos e que a vida é nossa e dela fazemos o que bem quisermos...

Quem reza se salva porque se salva de si próprio!

Quem não reza é ateu!

Mesmo que diga que crê, vive, na prática, como se Deus não existisse, pois vive se colocando como centro, fazendo sua própria vontade.

Quem não reza vai, pouco a pouco, criando uma ilusão, a ilusão de ser seu próprio Deus!

Por isso mesmo, ao nos ensinar a rezar, o Senhor nos faz primeiro que tudo entrar na Sua relação de amor e intimidade, de abertura e confiança em relação ao Seu Deus: dá-nos a graça de chamar a Deus com a mesma intimidade, com a qual Ele O chama: Pai, Papai 

Em Jesus, esta expressão significa total entrega nas mãos benditas do Deus Santo! 

Portanto, para um cristão, rezar é primeiramente ser totalmente aberto para o Senhor, em total atitude filial, em Jesus é como Jesus.

Por outro lado, esse Pai tão próximo não é nosso parceiro, não é nosso amiguinho: Ele é o Santo, o totalmente Outro: estás nos céus!

Por isso a súplica: que o Teu Nome seja santificado na minha vida, que eu, com minha pobre vida Te santifique, honrando-Te, dando Glória ao Teu Nome!

É como posso fazer isto? Fazendo a Tua santa vontade sempre é em tudo!

Quando santificamos o santo Nome do Senhor, quando vivemos na Sua santa vontade, então o Seu Reino torna-se presente em nós e, através de nós, no mundo!

Assim, caro Irmão, neste dia de Quaresma, sugiro que você se pergunte por sua vida de oração:

- tem realmente dedicado tempo para o Senhor?
- sua oração tem sido abertura para o Senhor Deus?
- você tem deixado que Deus seja Deus na sua vida?
- quem é o Senhor, quem é o critério da sua existência: Deus ou você mesmo?
- sua oração tem sido real procura de escutar o Senhor é fazer Sua santa vontade?
- sua oração influencia a sua vida?
- em que você precisa melhorar na vida de oração?

Pense nisto!

Reze o Salmo 4


Deus é um seio – Narrativas evangélicas.


 Por Sávio Laet


“Deus é um seio” e reclinado a este seio – diz São João no Prólogo do seu Evangelho – está o Filho: “O Filho unigênito, que está no seio do Pai” (Jo 1, 18). Segundo o mesmo evangelista, é por estar recostado no seio do Pai, que Ele – o Unigênito – pôde no-lO revelar: “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho unigênito, que está no seio do Pai [qui est in sinum Patris], Este O deu a conhecer” (Jo 1, 18).

Com efeito, Cristo saiu do regaço do Pai, para nos dar a conhecê-lO; fazendo-Se homem (Jo 1, 14), como que deixou de ter onde reclinar a cabeça [Filius hominis non habet, ubi caput reclinet] (Mt 8, 20), a fim de que conhecêssemos que o Pai é um seio. Deixou o seio do Pai, para ser Ele próprio o seio onde pudéssemos reclinar a nossa cabeça. E reclinamos a nossa cabeça em Cristo na Eucaristia. De fato, conforme atesta São João, foi durante a Ceia que, a pedido de Pedro, “Ele (João), então, reclinando-se sobre o peito de Jesus [supra pectus Iesu]” (Jo 13, 25), abriu-lhe o coração e Este lhe revelou quem seria o Seu traidor. Sim, assim como Cristo pôde revelar-nos o Pai, porque estava reclinado em Seu seio, assim, quem melhor nos pode revelar Cristo é aquele que se reclinou sobre o Seu peito: João. Por isso, já Orígenes dizia: “A flor dos evangelhos é o evangelho de João (...)”[1]. Depois dele, Agostinho, citando Simpliciano – Bispo de Milão – afirmou acerca do Prólogo do quarto Evangelho:

O princípio desse Evangelho, intitulado segundo João, certo platônico, como costumávamos ouvir da boca do santo ancião Simpliciano, mais tarde bispo da Igreja de Milão, dizia dever ser escrito com letras de ouro [aureis litteris] e pregado por todas as igrejas nos lugares mais destacados.[2]

Agora bem, como tão preclaro arauto da Encarnação definiu Deus? Definiu-o com estas breves palavras: “Deus caritas est”, “Deus é amor” (I Jo 4, 8)


E como era o coração manso e humilde (Mt 11, 29) de Cristo – Deus humanado – que João nos deu a conhecer? Basta lançarmos um olhar sobre os Evangelhos e testificaremos que o coração de Nosso Senhor era um coração, de fato, amoroso, que não se prendia a rituais. Na cura daquele que era paralítico, por exemplo, Jesus se encontrava pregando. Havia ali uma espécie de “liturgia da palavra”, mas que foi interrompida subitamente, quando quatro homens – decerto desconhecidos – abrindo o teto, desceram aquele doente, que jazia num catre. Qual a reação de Nosso Senhor? Disse ele, como vocês ousam me interromper enquanto estou pregando? Não! Antes, narra-nos o evangelho: “Jesus, vendo sua fé [videns Iesus fidem], disse ao paralítico: ‘Tem ânimo, meu filho; os teus pecados te são perdoados’ (Mt 9, 2). Na verdade,  Cristo parou o que estava fazendo para ver a fé daqueles homens; e, ao desconhecido que padecia, comunicou uma confiança filial [Confide, fili: confia, filho]. Perdoou-lhe os pecados e curou-o. A liturgia fora interrompida? Também não. Foi transformada.

Na primeira multiplicação dos pães, Nosso Senhor havia-se retirado para um lugar deserto, a fim de descansar. Entretanto, quando surpreendido por uma multidão que o seguira, tomou-se de ira contra eles? Não! Ao contrário, “(...) viu e ficou tomado de compaixão por eles (...)” (Mc 6, 34). Novamente, o olhar de Jesus ultrapassou as circunstâncias, venceu o cansaço e gerou nEle compaixão. Nosso Senhor reagiu com amor. Deu-se, então, a liturgia da multiplicação dos pães, cujo termo foi o homem saciado. O amor de Jesus era um amor que tirava o medo. A mulher que sofrera do fluxo de sangue, trêmula de medo por haver quebrado uma lei da pureza judaica, Cristo não a lançou fora, quando esta se apresentou ante a Sua indagação – “Quem me tocou?”; antes, acolheu-a cordialmente: “Minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz [...]” (Mc 5, 14).

A segunda multiplicação dos pães também diz-nos algo. Cristo tinha um juízo prudencial destacado; sabia que podiam desfalecer pelo caminho os que o seguiam. Acerca da multidão, disse aos discípulos: “Não quero despedi-la em jejum, porque receio de que possa desfalecer pelo caminho” (Mt 15, 32). Nosso Senhor não olvidava a carestia dos que O seguiam; compadecido, ocupava-se de provê-los: “Tenho compaixão da multidão, porque já faz três dias que está comigo e não tem o que comer” (Mt 15, 32). Destarte, o divino Mestre não era um “espiritualista desencarnado”.

Anunciar a boa nova é necessário,
mas se retirar espiritualmente é essencial.
Ao devolver à vida a menina de Jairo, aos responsáveis por ela, não deu novas instruções, senão apenas “[...] mandou que lhe dessem de comer [iussit illi dari manducare]” (Mc 8, 55). Não era tampouco insensível à fadiga que sobrevinha aos seus próprios discípulos depois de uma jornada de trabalho; ao contrário, convidava-lhes ao afastamento para um momento de descanso: “Vinde vós, sozinhos, a um lugar deserto e descansai um pouco” (Mc 6, 31). Aliás, o próprio Senhor sentia cansaço, a ponto de, certa feita, na barca com os seus discípulos, ter Ele dormindo e não ter acordado sequer com uma tempestade e com a ameaça de a barca afundar-se... Diz o texto de Marcos: “Sobreveio uma grande tempestade de vento [procella magna venti= procela de vento forte], e as ondas se jogavam para dentro do barco e o barco já estava se enchendo. Ele estava na popa, dormindo sobre um travesseiro [supra cervical dormiens]” (Mc 4, 37-38).

Jesus abraçava [complexus= aperto, abraço] as crianças (Mc 9, 36; 10, 16), e parecia, outrossim, possuir uma visão periférica aguçada, pois não deixava ninguém à margem; por ocasião da cura do homem de mão atrofiada, o Evangelho acena-nos para o Seu olhar apurado e para a Sua tristeza pela dureza dos corações reticentes. Assim, diz-nos a narrativa: “Repassando sobre eles um olhar[3] de indignação [cum ira= com ira] e entristecido pela dureza do coração deles[4] [...]” (Mc 3, 5). Percebamos que, neste passo, Nosso Senhor revela um prognóstico bizarro: mais doente do que o homem de mão atrofiada são os que repelem o bem da sua cura em nome de uma ritualística, a saber, a guarda do sábado. Doentes são os que não sabem amar!

"O amor interrompe o luto!"
Ante o enterro de um menino – filho único de uma mãe viúva – Cristo vê a dor daquela mãe que ficara sozinha e comove-Se. Ora, comovendo-se, diz à mãe para parar de chorar. O Amor interrompe o luto! Afirma o Evangelho: “O senhor, ao vê-la [a mãe viúva], ficou comovido e disse-lhe: ‘Não chores” (Lc 7, 13). O termo latino para “não chores” é “non flere”. Agora bem, a palavra “flere” evoca choro, lamento. Dela também vem o adjetivo “flebilis”, que indica algo lastimável, doloroso, triste, que nos entrecorta a voz por nos fazer debulhar em lágrimas. Provavelmente aquela viúva estava soluçando, ou seja, fracionando as frases por causa dos soluços de dor. Pois bem, Nosso Senhor, ao ver aquela mãe, naquele estado, já sem voz por causa das lágrimas, compadece-se; ao pedir para ela parar de chorar, demonstra, sem mais, que não queria que ela permanecesse assim. O amor refrigera a dor que pesa. Cristo não ficou indiferente àquele fato, não continuou a Sua caminhada como se nada estivesse acontecendo. Antes, parou diante daquele acontecimento triste e daquela mãe que se lamentava, tirando-a daquela situação. O amor para, para amar.

Observemos mais de perto o que diz o referido texto: “Seus discípulos e numerosa multidão caminhavam com ele” (Lc 7, 11). Todavia, aproximando-se daquela cidade, ao deparar-Se com aquele cortejo e ao saber do drama daquela mãe, o texto frisa que, “ao vê-la”, Jesus comoveu-Se, ou seja, perturbou-Se, agitou-Se com aquela situação. Não ficou indiferente à dor, nem insensível àqueles que estavam passando por ela. Não ignorou o sofrimento atroz daquela mulher. A expressão traduzida por “ficou comovido” é “misericordia motus”, a qual indica que Nosso Senhor interrompeu a sua trajetória, “quebrou o protocolo”, porque se deixou mover por Seu coração. O amor pelo miserável era o móvel da Sua vontade; a sua força motriz era o amor. Diante da miséria humana, o caminho de Jesus era traçado pelo Seu coração. Além disso, ainda na sobredita página, olhar e sentimento se intercalam; entrelaçam-se porque Nosso Senhor via com os olhos do coração! A propósito, havia tanta coisa para Ele olhar naquela circunstância: uma numerosa multidão à Sua volta, um caminho todo pela frente. No entanto – compadecido pela miséria humana – manifestada no pranto daquela viúva, parou diante daquele acontecimento trágico. A sua força motora – ratificamos – era o amor!

Coragem, pois Deus nunca te desanima.
O Senhor era movido pelo seu coração; Seu olhar penetrava o íntimo da pessoa! Amor que encoraja[5], Deus nunca nos desanima. Cristo não participava da conversa dos que disseram a Jairo: “Tua filha morreu; não perturbes mais o Mestre” (Lc 8, 49). Contudo, de ouvido seletivo aos que podiam desanimar-se diante de uma notícia que parecia definitiva, narra-nos São Lucas que, “Jesus, que havia escutado, disse-lhe: ‘Não temas, crê somente, e ela será salva” (Lc 8, 49 e 50). Na verdade, Ele antecipou-se a Jairo, que, ao saber da morte da filha – alquebrado – poderia mesmo dispensá-lO da caminhada e desfalecer pela descrença. Mas o que Ele haveria de fazer por Pedro – “[...] orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça [...]” (Lc 22, 32) – Ele fez, antes, por Jairo. Doravante, também Jairo poderia confirmar os irmãos, anunciando que Jesus não para nem diante da morte, nem a morte O detém. Como disse a Pedro, certamente deve ter dito a Jairo: “Quando, porém, te converteres, confirma teus irmãos” (Lc 22, 32). 

Seu amor era, por fim, exigente; dizia tudo e francamente. Primeiro, porém, sempre amava. NEle a palavra era fruto do amor. Foi assim com o homem rico. Antes de exigir-lhe abrir mão de todas as suas posses para segui-lO, relata-nos o Evangelho que, “Fitando-o”[6], Jesus o amou [...]” (Mc 10, 21). Provavelmente Cristo viu de antemão que ele iria recuar frente à radicalidade do Seu chamado; contudo, ainda assim, “dilexit=amou-o”. E só depois de amá-lo,“dixi=disse” (Mc 10, 21) algo.

Nosso Senhor nunca se recusava a amar. Ao contrário, primeiro amava e só depois falava! Sabia chorar pelos que amava. Por ocasião da morte do amigo Lázaro, quando lhe disseram onde o haviam sepultado, “Jesus CHOROU [Lacrimatus est Iesus= Jesus derramou lágrimas]” (Jo 11, 35). E os transeuntes daquele lugar não pestanejaram em dizer: “Vede como ele o amava [Ecce quomodo amabat eum= Vede de que modo amava ele]” (Jo 11, 36). O final da história já conhecemos. O choro e o amor de Jesus abriram o túmulo de Lázaro, colocaram-no para fora, pois o amor não é somente forte como a morte (Ct 8, 6), senão que é mais forte do que ela, é imortal, jamais se extinguirá: “A caridade jamais passará [Caritas numquam excidit= a caridade nunca morrerá]” (I Co 13, 8). Já dizia São João Crisóstomo: “Nada existe, certamente nada, que o amor não possa vencer”[7].

Ora, é com este amor que Nosso Senhor nos ama, com um amor sublime, que quer levantar-nos; vencendo o poder da morte em nós, deseja fazer-nos voltar a viver: “O amor de Deus, de fato, é o mais sublime que existe”[8]. Abramo-nos a este amor e deixemo-nos amar por Deus.


[1] ORÍGENES. Comentário a João. I, 6, 23. In: CANTALEMESSA, Raniero. O Mistério da Transfiguração. Trad. Alda da Anunciação Machado. Rev. Maurício B. Leal. São Paulo: Edições Loyola, 2001. p. 64.
[2] AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 7ª ed. Trad. Oscar Paes Leme. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. X, XXIX, 2. p. 407. 
[3] O termo latino usado no texto “circumspiciens” (circumspetare) evoca um olhar em roda, um olhar em torno, no sentido de examinar, considerar e perceber o que está à sua volta. É um olhar atento ao que está em torno de. Circum: em volta de, em roda de; specio: olhar, mirar. Lembremos, por fim, que “respectus” – respeito – é, antes de tudo, um voltar o olhar com atenção: respectus ad aliquem: atenção para com alguém. O mesmo termo – “circumspiciens” – ocorre quando Jesus reconhece a sua verdadeira família como sendo aqueles que fazem a vontade de Seu Pai que está nos céus (Mt 12, 49).
[4] Contristatus super caecitate cordis eorum= contristado pela demasiada cegueira do coração deles
[5] Encorajar é levar uma pessoa a agir com coragem, isto é, a agir com o coração. Só um corajoso pode encorajar. Jesus era corajoso, agia com o coração, e, por isso, conseguia levar as pessoas que estavam com Ele a agir de coração. O amor nos encoraja, nos dá coragem!
[6] O termo latino é intuitio expressa o olhar em oposição ao simples ver ou a um mero passar com os olhos. “Intuitos”, portanto, é um olhar com atenção, com respeito; um olhar que considera, um olhar que examina. “Intus” é um advérbio que indica “no interior”, “dentro”, “interiormente”. Assim, por exemplo, “intus agere” significa um conduzir para dentro e “intus legere” [inteligência] um ler o interior. “Intuitus”, por conseguinte, significa um olhar para dentro, um olhar que penetra para além da superficialidade, que alcança e perscruta o “intimus”. Ora, “intimus” expressa, aqui, o superlativo de “intus”, que significa “um estar dentro de”, porquanto quer exprimir o que há no mais recôndito de alguém. Ademais, “intuitos” expressa ainda algo de imediato, sem intermediário. Neste sentido, o texto parece designar que Nosso Senhor, ao olhar para o homem rico, foi ao seu íntimo, direto ao seu coração: “[...] o Senhor vê o coração” (I Sm 16, 7).
[7] JOÃO CRISÓSTOMO. Homilias sobre a Carta aos Romanos. Trad. Mosteiro de Maria Mãe do Cristo. Rev. Iranildo Bezerra Lopes. São Paulo: Paulus, 2010. 9, 11. p. 176.
[8] Idem. Op. Cit

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Retiro Quaresmal - Terça-feira da I Semana da Quaresma.


Por Dom Henrique Soares.

"Pela misericórdia de Deus, eu vos exorto, irmãos, a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: Este é o vosso culto racional.

Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom, o que Lhe agrada, o que é perfeito" (Rm 12,1-2).

Eis aqui um texto que calha muito bem neste início de caminho quaresmal! Trata-se de um apelo que engloba e compromete toda a existência cristã...

"Pela misericórdia de Deus", começa o Apóstolo...

Veja, Irmão, que a misericórdia do Senhor não justifica malandragem espiritual, não serve para encobrir comodismo, não acoberta a permanência num estado de pecado! Antes, a misericórdia do Senhor compromete, exige: "O amor de Cristo nos impele", nos compromete a aderir verdadeiramente à Sua santa vontade!

Pela misericórdia de Deus, porque Ele Se revelou tão compassivo, tão amável, tão disposto ao perdão, tão desejoso de caminhar convosco, "eu vos exorto"!

Atenção, que pela boca do Seu Apóstolo, o Senhor mesmo nos exorta, nos ordens, nos impele!

Qual é a exortação? Do que se trata?

"Eu vos exorto a vos oferecerdes em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus!" Oferecer-se em sacrifício, isto é, fazer de si próprio um sacrum-facere, um fazer sagrado, uma entrega santa, uma oferta sagrada a Deus!

O Senhor nosso Deus não quer primeiro nossos bens, nosso fazer, nossas obras! O primeiro e essencial que Ele pede de nós é nossa própria vida, nosso afeto, nosso coração, em uma palavra: Ele nos quer totalmente, Ele quer nosso amor, Ele quer a nossa vida! Nunca esqueça: o nosso Deus é o Deus das primícias, Deus ciumento, que não aceita suborno!

"... vós oferecerdes em sacrifício..." Como não recordar Aquele que Se ofereceu a Si mesmo ao Pai por toda a humanidade? Nosso sacrifício é vivo porque é sacrifício da nossa vida, é sacrifício de nós mesmos e, por isso, nos custa tanto! Mas, além de vivo é santo, porque é imitação e participação no sacrifício de Cristo Jesus! E, por isso mesmo, é agradável a Deus, o Pai.

Pense um pouco: fazer de você, de toda a sua vida uma oferta ao Senhor, com Cristo, como Cristo e por Cristo! Não é pouco! É demais! Custa! É viver não para si, mas para o Senhor; é ter como centro, como critério não a você mesmo, mas o Deus Santo e a Sua vontade; é dizer com Jesus é como Jesus: "Eu venho, ó Pai, para fazer a Tua vontade!"

Insisto, meu Irmão querido no Senhor: o Senhor Deus que por você entregou Seu próprio Filho, espera que você faça da sua existência inteira uma entrega sacrifical a Ele: Cristo, "um só, morreu por todos, para os que vivem já não vivam para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou!"

Tenho eu esta coragem, de viver e morrer para o Cristo de Deus? Tem você esta coragem? Viver assim, até dizer com toda verdade: "Para mim, viver é Cristo"? É este, precisamente, o culto que Deus deseja de nós, de você: uma vida inteira feita sacrifício, fazer sagrado!

"Este é o vosso culto racional", isto é, um culto consciente, livre, feito entrega, às vezes tão dolorosa, tão custosa, de toda a nossa vida! Tudo bem diferente das vítimas irracionais oferecidas nos sacrifícios judaicos! Exatamente porque "culto racional", "lógico", é tão custoso é tão preciso. Afinal, é livre de verdade quem, livre e conscientemente, oferece a Deus a sua liberdade, tornando-se livre de si mesmo, livre de sua auto-escravidão!

Quem vive assim, vive em êxodo, saindo de si mesmo, de seu modo de ver e de suas vontades, migrando sempre em direção do modo de pensar de Deus e da Sua santa vontade! Por isso, o Apóstolo continua, na sua exortação: "Não vos conformeis com o mundo!" Con-formar, tomar a forma! Não tomeis a forma do mundo: não tenhais o modo de pensar, de falar, de fazer, de viver do mundo! Ah, como é difícil: vivemos no mundo, nascemos neste mundo, convivemos neste mundo... E o Senhor nos manda que não nos conformemos com ele!

Então, a quem devemos nos conformar? A Cristo Jesus, o homem perfeito! Por isso mesmo, a Escritura ordena: "Tende em vós os mesmos sentimentos do Cristo Jesus!" Con-formados a Cristo, Cristo formado em nós! Que sonho! Que luta! Sair de mim do meu jeito é ir para mim do jeito de Cristo! "Transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar!"

Peça, Irmão, está graça! É a maior da vida! Já pensou: ter uma existência toda cristiforme, toda conformada a Cristo, por Ele plasmada?
Quem vive assim alcança a sabedoria divina, pois vê e julga tudo segundo o Coração de Deus; vive, pois, na verdade: "... para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, isto é, o que é bom, o que Lhe agrada, o que é perfeito".

Mas, para chegar a este estado de perfeição, é necessário primeiro o combate espiritual, que me faz ir domando minha vontade é meus instintos e, assim, iluminando em Cristo meu entendimento, minha razão, meus sentimentos... Mas, além do combate, é indispensável o socorro dos sacramentos, que me dão o Espírito de Cristo como vida, como força, como amor que se Imola, como perdão e cura, como santificação!

Está aí o tanto de caminho quaresmal!

Pense nestas coisas! Olhe a sua vida!

Suplique ao Senhor que o renove, que lhe dê coragem e força para combater o que precisar ser combatido e mudar o que necessitar ser mudado!

Que a santa Páscoa nos encontre menos conformes ao mundo é mais conformes ao homem perfeito, Jesus, nosso Senhor, para a glória do Pai!


Reze o Salmo 17/18

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Retiro Quaresmal – Segunda-feira da I Semana


Por Dom Henrique Soares

Tomemos a leitura da Missa de hoje:

1O Senhor falou a Moisés, dizendo:
2“Fala a toda a Comunidade dos filhos de Israel, e dize-lhes: Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou Santo.
11Não furteis, não digais mentiras, nem vos enganeis uns aos outros.
12Não jureis falso por Meu Nome, profanando o Nome do Senhor teu Deus. Eu sou o Senhor.
13Não explores o teu próximo nem pratiques extorsão contra ele. Não retenhas contigo a diária do assalariado até o dia seguinte.
14Não amaldiçoes o surdo, nem ponhas tropeço diante do cego, mas temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor.
15Não cometas injustiças no exercício da justiça; não favoreças o pobre nem prestigieis o poderoso. Julga teu próximo conforme a justiça.
16Não sejas um maldizente entre o teu povo. Não conspires, caluniando-o, contra a vida do teu próximo. Eu sou o Senhor.
17Não tenhas no coração ódio contra teu irmão. Repreende o teu próximo, para não te tornares culpado de pecado por causa dele.
18Não procures vingança, nem guardes rancor aos teus compatriotas. Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor” (Lv 19,1-2.11-18).

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Observe, caro Irmão, a insistência deste texto sobre o monoteísmo radical da fé de Israel: “Eu sou o Senhor!” Quatro vezes aparece esta solene exclamação neste breve trecho!

“Eu sou o Senhor!” exprime a grandeza do Senhor Deus, expressa Seu absoluto senhorio sobre Israel como um todo e sobre a vida de cada membro do povo da aliança. “Eu sou o Senhor!” exprime a unicidade absoluta do Deus vivo e santo: só Ele é Deus, para além Dele não há Deus, nada é Deus além Dele!

Assim, neste primeiro momento, convido-o a escutar com o coração a solene declaração do Eterno: “Eu sou o Senhor!”

Você vive, realmente, sua vida centrado no Senhor, Nele alicerçado? Ele é realmente o seu Senhor? Para saber se Ele é o seu Deus, observe se não outros senhores, que dominam sua existência, suas ações, seu modo de viver...

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Agora, num segundo momento, escute ainda o Senhor: “Eu, o Senhor vosso Deus, sou Santo!”
Santo, kadosh, isto é, o que é único, além de tudo, o que não tem comparação, o que é totalmente diferente de tudo quanto se possa imaginar, o Imenso, o Infinito, o Incomensurável, o Incompreensível, o que é o Outro e, por isso mesmo, absolutamente livre, absolutamente reto, absolutamente fiel a Si próprio: “Eu sou o que sou!”

Pare ainda diante do Senhor! Deixe-se tocar pelo sentimento da Sua presença, da Sua soberania, da Sua santidade única, incomparável, incompreensível!
Basta repetir calmamente diante Dele: Tu és o Santo, Tu és o Senhor, Tu és o Único! Tu és o meu Deus!”
Repita calmamente, deixando que o Espírito do Senhor, que ora nos cristãos, encha da Sua doce e forte presença essas palavras...

Reze o Salmo 98/99: aí três vezes se exclama: “Santo é o Senhor!”

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Demos um passo a mais: o Deus que é Único, absolutamente Único, o Deus que é Santo, totalmente Santo, ordena-nos: “Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou Santo!”

Como é possível isto? Nunca poderemos ser santos na medida do Eterno; mas, podemos participar da santidade Dele: “Sede santos na Minha santidade! Sede santos, participando da Minha santidade, acolhendo na vossa vida a santidade que brota de Mim e que Eu derramo em vós!” – eis o sentido deste preceito, desta exortação, deste desafio!

Nós, cristãos, sabemos que a Santidade pessoal de Deus é o Seu Espírito, chamado “Santo” por antonomásia: Ele é o Santificador, o Santificante! É o Espírito que o “Pai Santo” derramou sobre o Filho Jesus na Sua ressurreição, e Jesus no-Lo dá nos sacramentos para nos santificar da santidade de Deus!

Somente no Espírito podemos ser santificados, pois é o Espírito Quem nos faz agir com o sentimentos de Cristo e as atitudes de Cristo. É no Espírito que podemos cumprir o preceito do Senhor Deus de Israel: “Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou Santo!”

Suplique, portanto:

“Senhor Jesus, derrama novamente no meu coração, no coração da minha vida, o Teu Espírito santificador!

Onde está o Espírito que recebeste do Pai e sobre nós derramaste, aí está a Vida do Pai, a Santidade do Pai, a Energia do Pai, a Glória do Pai! Tudo isto recebeste do Pai na Tua santíssima humanidade quando da ressurreição; recebeste e derramaste e derramas sobre nós nos santos sacramentos que instituíste!

Unge-nos, ó Cristo-Ungido,
Unge-nos com a unção que é o Teu Santo Espírito santificador,
para que nós sejamos santificados e vivamos santamente,
ó Tu que vives e reinas para sempre
e de Eternidade em Eternidade és Deus com o Pai e o Santo Espírito. Amém.

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Agora, um último passo.

Essa comovente e absoluta unicidade do Senhor e Sua santidade, nós a acolhemos e proclamamos quando, com santo temor e tremor, honramos a imagem sagrada do Deus Santo!

Que imagem é esta? O próximo, sobretudo o mais necessitado!

O próximo é Adão – bicho frágil, feito da terra, da adamah!

Mas, ele, tão frágil, traz em si o sopro do Eterno: ele é imagem do Deus Único e Santo!

Crês que o Senhor é Único, que Ele é o teu Senhor?
Não furtes, não mintas ao próximo, não enganes, não roubes o teu irmão!
Confessas de todo o coração que o Senhor é Santo?
Então, mostra isto na tua vida, com teus atos: não pratiques extorsão contra o teu próximo, não amaldiçoes o surdo, que não ouve e não pode te responder; não ponhas tropeços ao cego, que não enxerga e não pode se livrar; não sejas injusto com o teu próximo, não o calunies, não o difames, não alimente nunca e sob pretexto algum ódio e malquerer contra o teu próximo!

Que coisa impressionante: o Deus verdadeiro somente pode ser honrado verdadeiramente quando honramos a Sua imagem: o homem criado por Ele! Atenção: não somente os irmãos em Cristo, mas todo e cada ser humano, pelo simples fato de ser humano, imagem de Deus!

Pense nisto e faça um sério exame de consciência sobre o modo como você tem tratado as pessoas... Você as honra como imagem do Deus único e santo ou, ao invés, procura as utilizar como objetos, usá-las em seu proveito ou descartá-las e desprezá-las porque não lhe são úteis?


São coisas a serem pensadas com muita seriedade!

Diário de um pároco de aldeia.


Por Paul Medeiros Krause.

Uma das minhas melhores leituras dos últimos e de todos os tempos é certamente "Diário de um pároco de aldeia", do grande escritor francês, católico, Georges Bernanos, que curiosamente viveu um tempo no Brasil, na cidade de Barbacena, Minas Gerais, distante 170 km de Belo Horizonte. O livro, da É Realizações, conta com a primorosa tradução de Edgar de Godói da Mata Machado, saudoso professor de Introdução ao Estudo de Direito, neotomista, da Faculdade de Direito da UFMG, que possui um primoroso "Elementos de Teoria Geral do Direito".

Muito me agradaram as figuras utilizadas por Bernanos e seu estilo ácido, sincero e preciso. O seu diagnóstico sobre o cansaço, a mediocridade e o tédio do mundo burguês parece-me único. Não creio ter lido ainda coisa tão milimetricamente acertada.

Outra obra prima de Bernanos é o famoso "Sob o sol de Satã", que já adquiri, mas ainda não comecei a ler. Preferi seguir por "Joana, relapsa e santa", menorzinho, um opúsculo.

Há no "Diário" trechos verdadeiramente antológicos, impagáveis, terrivelmente precisos. Deixo-lhes uma pequena amostra, para abrir-lhes o apetite. Assim começa, magistralmente, a meu sentir:

"Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje, naturalmente. Ontem, eu dizia ao vigário de Norenfontes: o bem e o mal devem equilibrar-se numa paróquia, só que o centro de gravidade é colocado embaixo, muito embaixo. Ou, se se prefere, um e outro se sobrepõem, sem misturarem-se, como dois líquidos de densidade diferente. O padre riu em minha cara. É um bom cura, muito benevolente, muito paternal e que passa mesmo, no arcebispado, por um espírito forte, um tanto perigoso. Suas troças fazem a alegria dos presbitérios e ele as apoia com um olhar que desejaria vivo, mas que eu acho, no fundo, tão gasto, tão cansado, que me dá vontade de chorar.

Minha paróquia é devorada pelo tédio, eis a palavra. Como tantas outras paróquias! O tédio as devora sob nossa vista e nada podemos fazer. Um dia, talvez, o contágio tomará conta de nós, descobriremos em nós esse câncer. Pode-se viver muito tempo com isso.

A ideia me veio, ontem, na estrada. Caía uma dessas chuvas finas que nos penetram os pulmões inteiros e descem até o ventre. Do lado de Saint-Waast, a aldeia surgiu-me bruscamente, tão confusa, tão miserável sob o horrível céu de novembro! Vapores de água subiam, como fumo, de todas as partes e ela parecia ter-se deitado, ali, na relva húmida, como um pobre animal cansado. Que coisa pequena, uma aldeia! E essa aldeia era minha paróquia. Era minha paróquia e eu nada podia fazer por ela; via-a tristemente mergulhar na noite, desaparecer... Mais alguns momentos e já não enxergava minha paróquia. Nunca havia sentido tão cruelmente sua solidão e a minha. Pensava no gado que ouvia mugir em meio à cerração e que o vaqueirinho, de volta da escola, maleta debaixo do braço, ia conduzindo, através do pasto úmido, para o estábulo quente, cheiroso... E ela, a pequena aldeia, parecia aguardar também -- sem grande esperança --, depois de tantas noites passadas na lama, um dono que a conduzisse para algum lugar improvável, algum inimaginável asilo.

Oh! bem sei que tudo isso são ideias loucas, que não posso tomá-las inteiramente a sério, sonhos apenas!... As aldeias não se levantam, à voz de um aluno de grupo escolar, como os bois. Não importa! Na tarde de ontem, acho que um santo a tinha chamado."

Aqui, caro leitor, logo na sequência, vem o diagnóstico terrível, o mais perfeito que julgo ter lido:

"Dizia a mim mesmo que o mundo é devorado pelo tédio. Naturalmente, é preciso refletir um pouco para dar-se conta disso; não é fato que se apreenda assim, de relance. É uma espécie de pó. A gente vai e volta sem o ver, respira-o, come-o, bebe-o; é tão tênue, tão fino, que nem ao menos range sob os dentes. Mas se a gente para um segundo, ei-lo que cobre nosso rosto, nossa mão. Temos de nos sacudir, sem cessar, para libertar-nos dessa chuva de cinza. Daí por que o mundo tanto se agita."

Prossegue o formidável autor:

"Dir-se-á talvez que, há muito, o mundo se familiarizou com o tédio, que o tédio é a verdadeira condição do homem. É possível que a semente espalhada por toda a parte germinasse, aqui e ali, em terreno favorável. Pergunto, porém, se os homens conheceram algum dia esse contágio do tédio, essa lepra! Um desespero malogrado, uma forma torpe de desespero que é, sem dúvida, como que a fermentação de um cristianismo desfigurado."


Fica aqui a dica ao amável leitor, recomendando-lhe que não demore a dar-se o prazer da leitura.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Escolas de samba: a inegável simbiose com a criminalidade e a imoralidade.


Por Paulo Henrique Cremoneze.

Eu nunca comento nada sobre carnaval e desfiles de escolas de samba porque não curto um e acho muito chato e sem graça os outros.

Limito-me a respeitar o gosto alheio, por mais que não comungue dele, afinal não tenho a primazia do bom gosto e a acidez nesse quesito nada mais seria do que um esnobismo arrogante eivado de tosco sentimento de pseudo superioridade cultural.

Mas, abro exceção.

Isso porque muita gente demonstra indignação pelo fato de a escola vencedora deste ano ter sido patrocinado por um ditador africano.

Lembro que, anos antes, salvo engano, Chavez também patrocinou uma escola de samba.

Lembro que TODAS as escolas têm em seus quadros, oficial ou oficiosamente, benfeitores vinculados ao narcotráfico, ao contrabando de armas de fogo e ao jogo do bicho.

Lembro que muitos dos seus membros são membros de organizações criminosas.

Lembro que as "comunidades" que as compõem não se pautam exatamente pelos valores morais fundamentais e não são exemplares e retas suas condutas cotidianas.

Ditador Africano acompanhando desfile das Escolas de Samba.
Lembro que todas recebem subsídios dos Poderes federal, estadual e municipal (os dois últimos do Rio de Janeiro), supostamente por atraírem recursos turísticos, sendo que as contas precisas do suposto retorno nunca foi exibida ao público em geral.

Lembro que alguns comportamentos imorais reverberados na sociedade em geral nasceram nos desfiles de escolas de samba, fomentadoras que são da vulgaridade populista, tão sequiosamente desejada pelos políticos venais.

Lembro que quase todos seus membros são favelados e parecem não se incomodar com isso. Se os recursos e os esforços despendidos ao longo do ano para um mero desfile de samba (sempre de gosto duvidoso e nenhum retorno cultural, salvo a "glória do efêmero") fossem empregados nos redesenhos das favelas, essas chagas expostas do caldeirão urbano carioca seriam cicatrizadas e o conceito de "comunidade" deixaria de ser mero eufemismo para ser algo concreto, aí sim alçando o Rio de Janeiro à condição (por enquanto um "ufanismo de oportunidade") de uma das vinte cidades grandes mais bonitas do mundo. Nenhuma cidade com tantas favelas pode ser realmente bela, seja aos olhos, seja ao plano moral.

Enfim, com tantas lembranças, há o que se espantar no patrocínio de um ditador sangrento e de viés socialista?


Imoralidade atrai imoralidade, simples assim!