quarta-feira, 30 de julho de 2014

“Culturas”


Dom Fernando Arêas Rifan
Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney

Cultura é uma palavra oriunda do latim – colere, cultivar –  usada para várias acepções, podendo significar um complexo de conhecimento, culto, crenças, artes, moral e costumes de uma sociedade, geralmente associada ao conceito de civilização, incluindo todas as áreas do comportamento humano.

Santo Agostinho, na célebre obra sobre as civilizações - “A Cidade de Deus” – resume a História do mundo na notável frase: “Dois amores fundaram duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo de Deus, construiu a cidade terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, construiu a cidade celestial” (A Cidade de Deus, XIV, 28).

Seguindo a diretiva de São Paulo – “Não vos conformeis com este mundo” (Rm 12,2) - o Papa Francisco tem falado nas “culturas” que caracterizam a civilização atual, com as quais não devemos nos conformar. “Tenham a coragem de ir ‘contra a corrente’”. Hoje domina a “cultura do provisório, do relativo, onde muitos pregam que o importante é ‘curtir’ o momento, que não vale a pena comprometer-se por toda a vida, fazer escolhas definitivas, ‘para sempre’... Deus chama para escolhas definitivas, Ele tem um projeto para cada um: descobri-lo, responder à própria vocação é caminhar para a realização feliz de si mesmo... Alguns são chamados a se santificar constituindo uma família por meio do sacramento do matrimônio. Há quem diga que hoje o casamento está ‘fora de moda’... O Senhor chama alguns ao sacerdócio, outros para servir os demais na vida religiosa, nos mosteiros, dedicando-se à oração pelo bem do mundo...” (JMJ Rio, 28/7/2013). Compromissos definitivos! 

“A civilização mundial ultrapassou os limites porque criou tal culto do deus dinheiro, que estamos na presença de uma filosofia e uma prática de exclusão dos dois polos da vida que constituem as promessas dos povos. A exclusão dos idosos... a exclusão dos jovens” (JMJ Rio, 25/7/2013). 

Contra a cultura do descartável, da exclusão, do individualismo, devemos promover a cultura do encontro: “Hoje vivemos em um mundo que está se tornando cada vez menor... Os progressos dos transportes e das tecnologias de comunicação deixam-nos mais próximos... Todavia, dentro da humanidade, permanecem divisões...”. A cultura do encontro requer acolhida e amor ao próximo (Mensagem para o dia mundial das comunicações, 24/1/2014).


Assim, contra a cultura do egoísmo, promovamos a cultura da caridade. Contra a cultura do interesse, a cultura da gratuidade e do amor. Contra a cultura do barulho e da velocidade, a do silêncio, da serenidade e da oração. Contra a cultura da violência e da guerra, a cultura da paz. Contra a cultura da malandragem e da esperteza, a cultura do estudo, da disciplina, do empenho e do esforço. Contra a cultura do desleixo e da sujeira, a cultura do capricho e da limpeza. Contra a cultura do feio, a cultura da beleza. Contra a cultura do protecionismo, do populismo e da demagogia, a cultura do mérito, do bem comum e da caridade social.     

terça-feira, 29 de julho de 2014

A perfeição cristã a partir da vida espiritual.


Autor: Ivanildo Oliveira.
Revisão: Igson Mendes da Silva

Estarei repassando de forma dinâmica (Perguntas e Respostas) uma síntese a respeito da obra de Santiago Judermans que nos mostra a respeito do tema proposto de modo simples e objetivo, contribuindo em alguns momentos oportunos para o melhor entendimento do leitor de maneira que, cada um possa tomar tais conhecimentos para si e posteriormente ao seu exercícios também multiplica-los.

O que é Ascética?

É a ciência da vida espiritual que ensina a chegar ao pleno desenvolvimento da vida espiritual, é a ciência que trata da vida cristã. É eminentemente a prática que ensina o exercício e a prática das virtudes.

O que é Vida Espiritual?

Significa vida sobrenatural, distinta da vida natural e superior a ela. É infundida na alma pelo Batismo.

Desta forma o batismo também ganha o âmbito de renascimento, ou seja, infundi no ser humano uma participação na vida divina da Trindade.

Não basta a vida natural?

Para santifica-se e, consequentemente, salvar-se não basta a vida natural, porque a salvação e santificação são obras superiores às forças naturais dos homens. A vida sobrenatural é chamada de vida da graça, alcança o completo e o definitivo desenvolvimento na glória do céu.

Fazendo uma analogia podemos dizer que a vida da graça tem para salvação eterna a mesma função das sementes para as plantas.

Que é Graça Santificante?

É um dom sobrenatural e gratuito que o Espírito Santo Infunde nas Almas, para fazer-nos justos e santos, filhos de Deus e herdeiros da glória celeste. É um dom divino que compenetra e santifica a alma, apagando a mancha do pecado e comunicando uma dignidade sobre-humana.

Como se reconhece a vida da Graça na Alma?

Por meio das virtudes infusas, especialmente a fé, a esperança e a caridade. A graça santificante eleva as virtudes naturais, fazendo que se tornem sobrenaturais e meritórias para vida eterna.

Em que consiste a Perfeição Cristã?

Consiste no pleno desenvolvimento da vida espiritual, isto é no desenvolvimento das virtudes infusas, e em sua prática constante e fervorosa.

Por que devemos buscar a Perfeição?

Pela grandeza e beleza desta missão, que é a maior e mais excelsa de todas que o homem pode realizar; Também por causa da consoladora segurança da salvação; E principalmente por causa do amor a Deus.

Quais os principais meios de Perfeição?

Segundo os grandes mestres espirituais: vontade e decisão, direção espiritual, oração, meditação, leitura espiritual, exercício da presença de Deus, exame de consciência, frequência dos sacramentos.

Quais são os graus de Perfeição?

Santo Tomás de Aquino compara a vida espiritual com na vida natural, como na vida natural há três idades: infância juventude e maturidade, assim também há três idades na vida espiritual: via purgativa, via iluminativa e via unitiva.

No primeiro Grau, via Purgativa, a alma ainda se encontra dividida entre Deus e os falsos atrativos; as paixões são vivas e impetuosas; a prática da virtude é penosa. A principal tarefa neste estágio é remover os obstáculos da caridade, que são as paixões desordenadas. Mortificando as paixões, se purifica o coração.

No segundo grau, via iluminativa, as paixões já estão mais acalmadas e submetidas ao império da razão, as virtudes são praticadas com mais facilidade, o perigo de cair em pecado mortal é menor e mesmo o pecado venial é evitado com mais frequência. A alma se encontra mais iluminada a respeito de Deus e dos deveres cristãos.


No terceiro graus, via unitiva, é o estágio dos perfeitos, as paixões estão dominadas deixando de ser obstáculo para prática da caridade. Praticam-se as virtudes todas com facilidade notável. Os pecados são evitados e busca-se eliminar-se as menores imperfeições. A união com Deus se torna cada vez mais intensa e contínua.

domingo, 27 de julho de 2014

Adorar imagens?


Por Rodrigo Pedroso.

Uma das mais frequentes acusações que nós, católicos, sofremos de nossos irmãos protestantes, é a de praticar a "idolatria", porque, segundo eles, "adoramos" imagens. Trata-se de uma acusação absolutamente sem fundamento, que somente se explica pelo desconhecimento da Palavra de Deus. Com efeito, os protestantes falam esse tipo de coisa dos católicos, muitas vezes com violência e de modo agressivo, simplesmente porque não sabem o que é idolatria.

Idolatria não é o uso de imagens no culto divino, mas prestar a uma criatura o culto de adoração que devemos exclusivamente a Deus. É por isso que São Paulo Apóstolo nos adverte que a avareza é uma idolatria (cf. Col 3,5), uma vez que o avarento coloca o dinheiro no lugar de Deus, como o valor supremo de sua vida.

Todo o comportamento humano depende de valores: é em vista de um determinado valor que escolhemos agir de um modo ou de outro. Se, por exemplo, preferimos gastar nosso tempo dando catequese para crianças, é porque essa opção nos pareceu mais valiosa do que outras.

Assim sendo, a forma como ordenamos as nossas ações vai depender de como hierarquizamos os valores que adotamos para reger nossas vidas. Se colocamos como valor supremo o prazer da vida corporal, certamente não poderemos levar uma vida de pureza e abnegação. Todavia, a forma como hierarquizamos esses valores, em nossa subjetividade, deve coincidir com a hierarquia objetiva dos valores presente no universo. Se isto não se der, haverá uma distorção entre a forma com que vemos o mundo e o próprio mundo.

Repetindo: a nossa hierarquia subjetiva de valores deve coincidir com a ordem objetiva de valores presente no cosmos. Se não for assim, estaremos dando a certas coisas mais importância do que elas merecem, enquanto a outras não prestamos o devido valor. Isto é introduzir a desordem em nossa alma, é quebrar a harmonia que deve existir em nosso interior.

Ora, o que há de mais importante no universo é Deus, pois é Ele quem o criou e sustenta no ser. Todo o cosmos depende de Deus para existir. Logo, também em nossa hierarquia de valores, Deus deve ocupar o primeiro lugar, como valor supremo. Todos os demais valores e ideais devem submeter-se a ele. Quando colocamos outro bem, valor ou ideal no lugar que é exclusivo de Deus, destoamos da ordem do cosmos e caímos na idolatria. Afinal de contas, todo o universo canta a glória de Deus (cf. Sl 18,2). Diz o salmista: "Louve a Deus tudo o que vive e que respira, / tudo cante os louvores do Senhor!" (Sl 150,5).

Deus como bem supremo da vida.
Quem, portanto, não coloca a Deus como valor supremo de sua vida, não apenas nega a adoração exclusivamente a Ele devida, como também prejudica a si próprio. Por isso Deus ordenou no primeiro mandamento de sua Lei: "Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim" (Ex 20,2-3). Do mesmo modo o Senhor Jesus, quando repeliu o demônio que o tentava, repetiu o preceito: "Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás" (Mt 4,10).

Todavia, se devemos adorar somente a Deus, isso não significa que não devemos honrar e invocar seus santos e anjos. O mesmo Deus que ordenou que adorássemos só a Deus, também mandou honrar os pais (cf. Ex 20,12), as autoridades públicas (cf. Rm 13) os nossos superiores e as pessoas mais idosas. Prestar honra a essas pessoas, simples criaturas, em nada prejudica a adoração devida exclusivamente ao Criador.

Se devemos honrar os governantes deste mundo, quanto mais os anjos, de cujo ministério Deus se serve para governar não só a Igreja, como também todas as coisas criadas. Foi por isso que Abraão prostrou-se diante dos três anjos que lhe apareceram em forma humana, para anunciar o nascimento de seu filho Isaac (cf. Gn 18,2).

Ensina a Igreja e a Sagrada Escritura que desde o início até a morte a vida humana é cercada pela proteção e intercessão do anjo da guarda: "Eis que eu enviarei o meu anjo, que vá adiante de ti, e te guarde pelo caminho" (Ex 23,20). Pela invisível assistência dos anjos, somos quotidianamente preservados dos maiores perigos, tanto da alma como do corpo. Com a maior boa vontade, patrocinam a nossa salvação e oferecem a Deus as nossas orações e nossas lágrimas. O Senhor Jesus advertiu que não se devia dar escândalo aos pequeninos, porque "seus anjos nos céus vêem incessantemente a face de seu Pai, que está nos céus" (cf. Mt 18,10). Se os anjos contemplam a Deus sem cessar, por que não seriam merecedores de grande honra?

Também o culto aos santos, longe de diminuir a glória de Deus, lhe dá o maior incremento possível. Canta a Virgem Maria no Magníficat que "o Poderoso fez em mim maravilhas" (Lc 1,49). Quando honramos retamente um santo, proclamamos as maravilhas que a graça de Deus operou na vida dele. Como se diz no Prefácio dos Santos, "na assembléia dos santos vós sois glorificado e, coroando seus méritos, exaltai vossos próprios dons". A santidade que veneramos nos homens santos é dom do único Santo. Honrando os santos, glorificamos a Deus que os santificou.

Deus é um Pai amoroso, a quem muito agrada ver seus filhos intercedendo uns pelos outros. Ademais, quis associar suas criaturas na obtenção e distribuição de suas graças. Muitas coisas Deus não as concede, se não houver a intervenção de um intercessor. Para que os amigos de Jó fossem perdoados, por exemplo, foi necessária a sua intercessão: "O meu servo Jó orará por vós; admitirei propício a sua intercessão para que se não vos impute esta estultícia, porque vós não falastes de mim o que era reto" (Jó 42,8). Também não é sinal de falta de fé em Deus, recorrermos à intercessão dos santos em nossas orações. O centurião, por exemplo, recorreu à intercessão dos anciãos dos judeus (cf. Lc 7,3) para que Jesus curasse seu servo, mas nem por isso o Senhor deixou de enaltecer sua fé com os maiores elogios: "Em verdade vos digo que não encontrei tanta fé em Israel" (Lc 7,9).

É verdade que temos um único Mediador na pessoa de Jesus Cristo Nosso Senhor. Só Ele nos reconciliou com o Pai pelo oferecimento de seu precioso sangue, entrando uma só vez no Santo dos Santos, consumou uma Redenção eterna (cf. Heb 9,11-12) e não cessa de interceder por nós (cf. Heb 7,25). Todavia, o fato de termos um único Mediador de Redenção, não significa que não podemos ter junto dele outros mediadores de intercessão. Se recorrer à intercessão dos santos prejudicasse a glória devida unicamente a Cristo Mediador, o Apóstolo Paulo não pediria, com tanta insistência, que seus irmãos rezassem por ele: "Rogo-vos, pois, irmãos, por Nosso Senhor Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo, que me ajudeis com as vossas orações por mim a Deus" (Rm 15,30). "Se vós nos ajudardes também, orando por nós..." (2Cor 1,11). Se as orações dos que vivem nesta terra são úteis e eficazes para que sejamos ouvidos por Deus, quem dirá as orações daqueles que já estão em glória, contemplando a Deus face a face.

No livro dos Atos dos Apóstolos, conta-se que "Deus fazia milagres não vulgares por mão de Paulo, de tal modo que até, sendo aplicados aos enfermos os lenços e aventais que tinham tocado no seu corpo, não só saiam deles as doenças, mas também os espíritos malignos se retiravam" (At 19,11-12). E também que "traziam os doentes para as ruas e punham-nos em leitos e enxergões, a fim de que, ao passar Pedro, cobrisse ao menos a sua sombra algum deles" (At 5,15). Se as vestes, os lenços e a sombra dos santos, já antes de sua morte, removiam doenças e expulsavam demônios, quem será louco de dizer que Deus não possa fazer os mesmos milagres por intermédio deles, depois de mortos? E também disso as Sagradas Escrituras dão testemunho, quando se narra o episódio do cadáver lançado na sepultura do profeta Eliseu: "Logo que o cadáver tocou os ossos de Eliseu, o homem ressuscitou e levantou-se sobre os seus pés" (2Rs 13,21).

Todavia, se devemos honrar e venerar os santos e anjos como fiéis servidores do Senhor, é gravíssimo pecado colocá-los no lugar de Deus, prestando-lhes culto de adoração. Este abuso é estranho a verdadeira doutrina católica.

Quanto às imagens, é verdade que o Antigo Testamento proibia que fossem feitas: "Não farás para ti imagem alguma do que há em cima no céu, e do que há embaixo na terra, nem do que há nas águas debaixo da terra" (Ex 20,4). Todavia, precisamos compreender a razão desta proibição.

Os hebreus viviam no meio de povos idólatras, cujos deuses eram concebidos como tendo formas visíveis, muitas vezes com figura de animais. Para ressaltar a transcendência e a espiritualidade do Deus verdadeiro, este preceito proibia que os israelitas representassem a divindade com imagens. Com efeito, Deus em si mesmo não está ao alcance da nossa vista: é um ser puramente espiritual, não tem corpo, não cabe nos limites do espaço, nem pode ser representado por nenhuma figura. "Não vistes figura alguma no dia em que o Senhor vos falou sobre o Horeb do meio do fogo" (Dt 4,15).

Todavia, a encarnação do Filho de Deus superou a proibição de se fazer imagens. Isso porque, quando "o Verbo se fez carne, / e habitou entre nós" (Jo 1,14), Ele se tornou visível a nós como homem. Invisível em sua divindade, Deus se tornou visível na humanidade de nossa carne. Como diz o Prefácio do Natal do Senhor, "reconhecendo a Jesus como Deus visível a nossos olhos, aprendemos a amar nele a divindade que não vemos".

O nosso Deus se fez homem. Essa é a grande diferença
do cristianismo para as demais religiões.
A diferença do cristianismo com todas as outras as religiões é que o nosso Deus se fez homem. O centro da Fé cristã é o mistério de Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro. Perfeitamente homem, sem deixar de ser Deus. Mesmo depois da Ressurreição, o Cristo manteve a sua natureza humana na sua integridade e perfeição, como fez questão de sublinhar aos Apóstolos: "Olhai para as minhas mãos e pés, porque sou eu mesmo; apalpai, e vede, porque um espírito não tem carne, nem ossos, como vós vedes que eu tenho" (Lc 24,39). Até hoje, no Céu, dentro do peito de Jesus bate incessantemente um coração de carne, em suas veias corre sangue verdadeiramente humano.

Jesus Cristo é "a imagem visível de Deus invisível" (cf. Cl 1,15). Se antes eu não podia fazer imagens de Deus, pois enquanto tal Ele é invisível; após a Encarnação do Verbo eu não apenas posso como devo fazer imagens, para atestar que Deus se fez visível aos olhos dos homens. Ensina São João Damasceno: "Quando virmos aquele que não tem corpo tornar-se homem por nossa causa, então poderemos executar a representação de seu aspecto humano. Quando o Invisível, revestido de carne, torna-se visível, então representa a imagem daquele que apareceu..."

Assim sendo, toda vez que honramos uma imagem sagrada, damos testemunho da nossa Fé no mistério da Encarnação do Filho de Deus. Portanto, quem renega as imagens, de certo modo atenta contra a fé nesse mistério. Este foi o critério que São João propôs para discernir o anticristo: "Todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio na carne, é de Deus; todo espírito que divide Jesus, não é de Deus, mas é um anticristo, do qual vós ouvistes que vem, e agora está já no mundo" (1Jo 4,2-3).

Rejeitar as imagens sagradas é voltar à Antiga Lei, quando Deus ainda não tinha se feito homem. Quem defende isso, para ser coerente, deve também praticar a circuncisão e guardar o sábado, como é prescrito na Lei de Moisés. Para essas pessoas, o Cristo não veio ainda.

Portanto, beijar uma imagem ou acender diante dela uma vela não são práticas idolátricas, mas atos de piedade. Somente pessoas ignorantes, que não compreendem os dogmas da Fé em seu verdadeiro sentido, podem ter a audácia de chamar de idolatria essas práticas.

Quem venera uma imagem, venera a pessoa que nela está representada. Aquilo que a Bíblia nos ensina com palavras, as imagens nos anunciam com figuras visíveis. A imagem re+presenta, ou seja, torna presente a pessoa simbolizada. Por isso podemos rezar diante das imagens como se estivéssemos diante das personagens que elas representam. Todavia, não podemos confundir essa presença, que é meramente uma presença simbólica, com a presença real de Nosso Senhor no Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Na imagem Jesus está presente como em um símbolo, na Eucaristia como realidade substancial. Por isso, diante do Santíssimo Sacramento fazemos genuflexão, diante de uma imagem fazemos o sinal-da-cruz ou uma simples reverência de cabeça.

Prefácio dos Santos, I
(Missal Romano)

Na verdade, é justo e necessário,
é  nosso dever e salvação dar-vos graças,
sempre e em todo lugar,
Senhor, Pai santo,
Deus eterno e todo-poderoso.

Na assembléia dos santos vós sois glorificado
e, coroando seus méritos, exaltai vossos próprios dons.
Nos vossos santos ofereceis
um exemplo para a nossa vida
a comunhão que nos une,
a intercessão que nos ajuda.
Assistidos por tão grandes testemunhas,
possamos correr, com perseverança,
no certame que nos é proposto
e receber com eles a coroa imperecível,
por Cristo, Senhor Nosso.

Enquanto esperamos a glória eterna,
com os anjos e todos os santos,
nós vos aclamamos,
cantando a uma só voz:

Santo, Santo, Santo, Senhor Deus do universo.
O céu e a terra proclamam a vossa glória.
Hosana nas alturas!
Bendito o que vem em nome do Senhor.
Hosana nas alturas!

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Gregório de Nazianzo: Deus é o ser infinito.


Por Sávio Laet de Barros Campos.

Introdução

São Gregório Nazianzeno.
São Gregório Nazianzeno nasceu entre os anos de 329 e 330 da nossa era, em Nazianzo. Seu pai, convertido por sua piedosa mãe, acabou por tornar-se Bispo de Nazianzo. Educado pela mãe, Gregório estudou retórica em Cesaréia e só recebeu o Batismo, conforme o costume da época, em idade adulta (30 anos). Amigo de São Basílio até a morte, o jovem Gregório também estudou em Alexandria, onde, instruído por Dídimo, familiarizou-se com o pensamento origineano. Concluiu os seus estudos em Atenas; lá, ao lado de Basílio, aprofundou os seus conhecimentos nos clássicos da filosofia. Isolou-se por um tempo às margens do rio Iris, no Ponto. Voltando a Nazianzo, foi ordenado, a contragosto, sacerdote por seu próprio pai. Revoltado, deixou a cidade, mas para se justificar, escreveu um tratado sobre a dignidade do sacerdócio. Voltando uma vez mais a Nazianzo, ajudou o seu pai na administração da Diocese.

Em 372, foi sagrado Bispo de Sasima por Basílio. Entretanto, não chegou a exercer o episcopado nesta Diocese. Com a morte do pai, assumiu as funções de Bispo em Nazianzo e, para restabelecer a fé ortodoxa, aceitou administrar a sede episcopal de Constantinopla, à qual, no entanto, renunciou para evitar rixas. Voltou novamente a Nazianzo, onde continuou ajudando na Diocese. Optou pela solidão, e viveu os últimos anos de sua vida, dedicando-se à ascese e ao trabalho literário. Morreu em 390.  Na controvérsia com os eunomianos, que afirmavam que a essência divina, por ser ingênita, era inteiramente inteligível, Gregório afirmou a total impossibilidade de conhecermos o que Deus é em si mesmo. Alguns estudiosos asseveram que, em Gregório, já se começa a delinear o conceito de analogia, que será de uma importância capital para a teologia cristã posterior.

Neste pequeno artigo, falaremos acerca da teologia natural de Gregório. Arrolaremos as razões pelas quais julga ser incognoscível a essência divina, ao mesmo tempo que defende a cognoscibilidade da existência de Deus pela ordem do mundo. Arrazoaremos sobre a predominância da teologia negativa em sua obra, e como, mesmo quando afirma algo positivo acerca de Deus – por exemplo, como quando diz que Deus é – está, na verdade, negando qualquer possibilidade de defini-lo, pois o puro ser não conhece limitações, é infinito e, por isso mesmo, indefinível.

Servir-nos-á de aporte teórico para esta abordagem, o clássico de Étienne Gilson em parceria com Philotheus Boehner: História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa (1951) ––, trazida ao vernáculo pelo Prof. Raimundo Vier, em 1970, a partir da edição alemã: Christliche Philosophie – von ihren Anfaengen bis Nikolaus von  Cues (1952 a 1954).

Passemos a coligir as razões pelas quais Gregório defende a incognoscibilidade da essência divina e a cognoscibilidade da existência de Deus.

1.  A incognoscibilidade da essência divina e a cognoscibilidade da existência de Deus

Platão.
Platão afirma no Timeu que é difícil conhecer a Deus e impossível enunciá-lo por palavras. Gregório inverte a ordem: é impossível enunciar algo sobre Ele e mais ainda conhecê-lo.[1] Contudo, ele não é um agnóstico. O que diz que  desconhecemos de Deus é a sua essência, pois a sua existência, na sua percepção, permanece-nos cognoscível: “Antes de mais nada, não é a existência de Deus que é incognoscível, mas tão somente a sua natureza e essência”[2].

Agora bem, a razão pela qual não podemos conhecer positivamente a essência divina é evidente: Deus é puramente espiritual[3] e nós, mesmo tendo uma alma espiritual, encontramo-nos presos às coisas sensíveis por nosso corpo. Destarte, por mais que nos desprendamos das coisas corporais e nos apliquemos às espirituais, os nossos conceitos estarão sempre presos ao dado sensível. Desta sorte, por não sermos seres puramente espirituais, não podemos – mesmo tendo algum parentesco com os seres puramente espirituais pela nossa alma – alcançá-los em sua essência.[4] De resto, a impossibilidade de conhecermos a Deus de forma clara e distinta, acaba-se revertendo em nosso próprio benefício. Sem embargo, todo conhecimento – precisamente enquanto se apresenta como mais difícil de conquistar-se – é sempre mais ardentemente desejado e procurado. Desta feita, o fato de crermos em Deus sem, porém, podermos conhecê-lo em si mesmo, além de nos incitar a buscá-lo com maior afinco, supõe uma imensurável recompensa no além, que é quando o conheceremos mais perfeitamente.[5] Como diz o ditado, ninguém salta por cima da sua sombra. Como o olho precisa de luz e ar para ver, e o peixe da água para poder nadar, “(...) assim também nós não podemos chegar a Deus senão através das coisas corporais e sensíveis”[6].

Vê-se que, para Gregório, incognoscibilidade não é sinônimo de agnosticismo. Se Deus em si mesmo é incognoscível por não podermos alcançar um conceito puramente espiritual dEle[7], isto não nos impede de conhecermos a sua existência. Passemos, então, a compilar os argumentos pelos quais pretende Gregório provar a existência de Deus.

2.  As provas da existência de Deus

De fato, com um simples olhar para a criação podemos perceber que ela não encontra em si mesma a razão da sua existência.[8] Quem é o autor de tamanha ordem e harmonia que impera no universo? Como explicar a reunião de tantos elementos que possibilitam esta harmonia de que gozam as coisas criadas? Donde provém este logos, que rege por suas leis todas as coisas e pelo qual elas não caem no nada, antes, conservam-se numa unidade e beldade admiráveis? Será o universo obra do acaso? Se admitirmos que sim, como podemos explicar que o acaso, além de criar tal ordem, a mantém e sustenta?[9] Ora, é evidente que não podemos retroceder indefinidamente, atribuindo tudo ao acaso; pelo que devemos admitir a existência de um soberano governador do universo, o qual chamamos de Deus.[10] Daí que, por meio da lei e da ordem – entranhadas na natureza das coisas – chegamos com certeza a conhecer a existência de Deus.[11] Entretanto, este argumento – não tarda em esclarecer Gregório – não nos fornece nenhum conhecimento da essência divina.[12]

Passemos à análise de alguns pontos da sua teologia apofática.

4. O conhecimento negativo da essência divina

Todavia, se não podemos conhecer o que Deus é, podemos ao menos saber o que Ele não é. Antes de tudo, devemos saber que Deus não é um corpo. Os seus atributos mais essenciais nos atestam isto: imensidade, infinitude, inacessibilidade, invisibilidade. Com efeito, todos eles repugnam qualquer propriedade corporal.[13] Ademais, onde há matéria, há composição e onde há composição, há luta, e onde há luta, há dissolução. Ora, a dissolução é incompatível  com Deus. Destarte, Deus não poder ser um corpo.[14]

Importa notar, ademais, que Deus está em todo lugar e esta afirmação já nos bastaria para provarmos a sua imaterialidade.[15] A menos que concebamos que Deus se misture às coisas corpóreas – tal como a água ao vinho – numa espécie de fragmentação de sua substância – o que seria de todo um absurdo –, não poderemos afirmar que Deus esteja em todo lugar e ao mesmo tempo e ainda assim seja um corpo.[16] Além disso, se Deus fosse um corpo que preenchesse todo o universo, não haveria lugar para as outras coisas.[17] No entanto, surge a questão se seria legítimo atribuir a Deus um corpo sutil; tal como dizem os peripatéticos, não seria Deus o quinto elemento, dotado de movimento circular? Ora, Gregório elimina esta possibilidade a partir do próprio conceito de movimento tomado de Aristóteles. De fato, supondo que exista uma substância quase incorporal que se movimente como as outras coisas, esta mesma substância teria que ter o seu movimento derivado de uma outra substância que, por sua vez, seria ou não incorporal, e assim retrocederíamos ao infinito, o que é impossível. Daí que, “Na opinião de Gregório o movimento corporal se reduz, forçosamente, a algo incorporal”[18]. Logo, Deus é totalmente incorpóreo.

Destarte, nenhum conceito que formamos a partir das coisas sensíveis nos patenteia o que Deus é, mas tão somente o que Ele não é. O próprio fato de dizermos que Deus é incorpóreo, “não-gerado”, eterno[19], luz, sabedoria, justiça, razão e intelecto[20], nada nos diz quanto à sua essência em si mesma que, então, nos permanece velada. Sem embargo, quem de nós é capaz de compreender um espírito sem movimento e absolutamente despojado de matéria? Como podemos imaginar uma luz que não se misture ao ar? Ninguém pode imaginar o que seja um fogo sem matéria e desligado de toda corporeidade. Nem a razão de Deus é da mesma ordem que a nossa. Ademais, a nossa noção de justiça, sabedoria e inteligência também não está totalmente despida de imagens corpóreas. Donde por ela não podermos chegar a conhecer a Deus em si mesmo, que é espírito puro.[21]

Luz inacessível.
Com efeito, o Deus de Gregório habita em luz inacessível e nem mesmo os bem-aventurados o apreendem exaustivamente. Por conseguinte, ao mesmo tempo em que está presente no mundo, transcende-o. Embora seja a suma beleza, excede também a toda beleza. Deus ilumina o espírito, mas este, na mesma medida em que O conhece, desconhece-O. Trata-se, na verdade, de uma dialética do amor, pois quanto mais O conhece, mais deseja conhecê-lo, ao mesmo tempo que forçosamente tem que reconhecer que ainda não chegou a conhecê-lo verdadeiramente.[22]

Uma aparente aporia surge na filosofia do Nazianzeno, a saber, ele parece nomear Deus, positivamente, quando O chama de ser. Mas esta aporia é, de fato, apenas aparente, pois não contradiz, antes, justifica o fundamento da teologia apofática de Gregório. Sim, Deus é o próprio ser, e este ensinamento nós o colhemos da revelação que o próprio Deus fez a Moisés. Quando este lhe perguntou o seu nome, Ele lhe respondeu: Eu sou aquele que é. Contudo, exatamente por ser Aquele que compreende em si a plenitude do ser, Deus não tem princípio e nem fim. Por conseguinte, é imensurável e ilimitado em sua própria substância. Na verdade, sendo Deus o próprio ser, não possui nenhuma limitação, é infinito:

Deus é o ser infinito; por isso, ao perguntar-Lhe Moisés pelo nome, Ele respondeu, simplesmente: Eu sou aquele que é. De fato, Deus compreende em si a plenitude do ser, e por esta razão carece de princípio e de fim; antes, Deus é o seu próprio ser: um oceano imensurável e ilimitado de substância. [23]

Agora bem, exatamente por isto Ele permanece incompreensível a nós, espíritos finitos. Finalmente, da imensidade de Deus, oriunda da sua carência de limites, compreendemos que Ele excede todo espaço e todo tempo, aos quais estão sujeitos somente os seres que estão no espaço, a saber, os seres corporais. Sem embargo, Ele excede todo espaço por ser incorpóreo e excede todo tempo porque não foi e nem será, mas é, e possui todo o seu ser no presente. Em uma palavra: Deus é eterno.[24]

Passemos às considerações finais deste artigo.

Conclusão

Por ser Deus puramente espiritual, Ele não pode ser conhecido em si mesmo por nós outros. O homem é, por natureza, corpo e alma. Desta feita, por mais que se esforce, nunca conseguirá desprender-se totalmente dos dados da sensibilidade. Sendo assim, os conceitos que forma sempre estarão de algum modo ligados aos dados sensíveis. Por isso, por mais abstratos que sejam, os seus conceitos jamais poderão ser aplicados a Deus, ao menos univocamente. Destarte, em si mesmo, Deus permanece para nós incognoscível. Isso não significa, no entanto, que não podemos chegar a saber que Ele existe. Com efeito, a natureza se nos demonstra uma harmonia admirável, a qual não se explicaria senão pela presença de um logos que a governa. Nem é válida a objeção que recorre ao acaso. Ainda quando supomos que tal ordem admirável tenha a sua origem no acaso, nada pode explicar que ela se mantenha senão pela presença de um governo inteligente. Desta sorte, atestamos pela ordem do mundo a existência de um Deus soberano que o governa e sustenta.

De Deus podemos saber apenas o que Ele não é. Antes de tudo, sabemos que Ele não é um corpo. Todo corpo implica matéria e onde há matéria há dissolução. Ora, a dissolução é incompatível com a divindade. Ademais, o próprio fato de a ordem do mundo atestar que Deus está presente em todas as coisas, evidencia a sua imaterialidade. De fato, a menos que suponhamos que a sua substância se fragmente nas coisas, o que não se coaduna com a sua natureza, forçoso é reconhecer que Ele está em todo lugar, enquanto sobrepuja a todo limite corporal.

Qual é, pois, a natureza divina? A Moisés Deus se revela como o ser supremo, o próprio ser. Ora, longe de este nome nos desnudar a natureza de Deus de forma positiva, ele a oculta ainda mais. Deus é o próprio ser e, como tal, não possui limites. Não é isto nem aquilo, mas simplesmente é, e possuindo limites, é infinito. Sendo infinito, é indefinível aos nossos espíritos finitos. Sendo infinito, é ainda imenso. Sendo imenso, excede a todo espaço. Excedendo a todo espaço, é imaterial e, por conseguinte, não está sujeito à corrupção. Outrossim, sendo o próprio ser, subtrai-se ao tempo, pois não foi nem será, mas simplesmente é a plenitude do ser. Em uma palavra, Deus, sendo o próprio ser, é infinito, imaterial, imenso e eterno.

BIBLIOGRAFIA

BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000.  pp. 80 a 86.




[1] BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000. p. 81.
[2] Idem. Op. Cit.
[3] Idem. Op. Cit: “Não possuímos um conhecimento distinto e positivo da essência divina, visto ser ela puramente espiritual.” 
[4] Idem. Op. Cit: “(...) por mais que nos concentremos sobre nós mesmos e por grande que seja o nosso desprendimento das coisas sensíveis, os nossos conceitos sempre incluirão algum elemento corporal; e isto nos proíbe o acesso às realidades puramente espirituais e à Divindade, a despeito dos laços de parentesco que a ela nos prendem.”
[5] Idem. Op. Cit.
[6] Idem. Op. Cit.
[7] Idem. Op. Cit. p. 82.
[8] Idem. Op. Cit: “Um simples olhar para a criação nos convencerá de que não é nela mesma, e sim em algo transcendente, que devemos buscar-lhe a razão de ser.”
[9] Idem. Op. Cit: “Suponhamos, com efeito, que as coisas sejam um produto do acaso. (...) Tal hipótese, porém, não suprime a questão de sabermos quem conserva e mantém aquela ordem.”
[10] Idem. Op. Cit.
[11] Idem. Op. Cit.
[12] Idem. Op. Cit. p. 83.
[13] Idem. Op. Cit.
[14] Idem. Op. Cit.
[15] Idem. Op. Cit.
[16] Idem. Op. Cit.
[17] Idem. Op. Cit.
[18] Idem. Op. Cit
[19] Idem. Op. Cit. p. 84.
[20] Idem. Op. Cit.
[21] Idem. Op. Cit.
[22] Idem. Op. Cit. 
[23] Idem. Op. Cit. p. 85.
[24] Idem. Op. Cit.

A propriedade privada como Direito Natural na Encíclica Rerum Novarum.


Por Emanuel Jr.

Conceber o direito a propriedade sem entender profundamente o que vem a ser direito natural, é como tentar entender o universo através de jornais televisivos, a confusão é total e inerente.

O início do número 5 da Encíclica Rerum Novarum aborda o tema com clareza, contudo é preciso que certos conceitos estejam muito bem delineados e suas fronteiras precisam estar em perfeita consonância com o que se fala e se entende, caso contrário vai ser como entender o mundo através do jornal televisivo.

Marx, em seus devaneios sobre a propriedade, gostava de dizer que se o direito natural sobre a terra existe é porque iniciou-se em algum momento e que esse momento foi o instante da conquista dessa terra. Se o direito natural pertence à humanidade, como de fato pertence, seria apenas uma questão de tempo para que os que ficaram sem esse direito natural reconquistassem esse direito. A forma de reconquista? A força.

Como humanitário que Marx era (se achava assim), obviamente que entendeu que a força não seria o melhor meio, portanto alguma outra forma deveria existir. A forma encontrada por ele é que ninguém deveria lutar por terra alguma, o direito natural de propriedade não existe e o Estado deve tomar conta de tudo para prover da melhor forma tudo e todos. Em rasas palavras é essa a bela tese de Karl Marx enfocando o direito natural à propriedade privada.

Parece ter ficado claro que Marx não entendeu absolutamente nada de direito natural ou deturpou seu aprendizado.

O direito natural não é conquistado como se conquista uma trincheira em uma guerra. O direito natural é como o nome diz: natural. Ele está fundado na natureza a que se dedica. Para que não só minhas palavras ressoem nesse sentido, vejamos o que é mencionado em outros livros, dicionários e autores:

“O conceito de direito natural traduz-se na existência de um direito fundado na natureza das coisas e, em último tempo, na vontade divina, no direito justo, denominando-se por concessão jusnaturalista (do jusnaturalismo).”

Obviamente que a natureza divina nesse contexto marxista não existe, o que faz confundir ainda mais a cabeça dos adeptos e coaduna ainda mais a posição da Igreja de que não é possível ser marxista e católico (religioso) ao mesmo tempo, são posições paradoxais.

Direito natural é a ideia abstrata do Direito, o ordenamento ideal, correspondente a uma justiça superior e anterior – a chamada norma jurídica hipotética e fundamental
(Teoria Geral do Estado - Hans Kelsen)

Os conceitos de direito natural sempre vão terminar se deparando com a origem divina. Tanto em Kelsen quanto em Aristóteles, Cícero ou qualquer pensador sério, o conceito se deparará com sua origem: Deus. Por esse fato é tão difícil ser entendido dentro de Estados socialistas ou com tendências a esse sistema. Deus não pode fazer parte do socialismo porque destruiria as bases do sistema. O sistema socialista/comunista, portanto, é fundado em conceitos contrários ao Direito Natural. Abaixo veremos mais um conceito assim delineado:

Direito natural é o que emana da própria natureza, independente da natureza do homem (Cicero). É invariável no espaço e no tempo, insuscetível de variação pelas opiniões individuais ou pela vontade do Estado (Aristóteles).Ele reflete a natureza como foi criada. É anterior e superior ao Estado , portanto, conceituado como de origem divina.
(TEORIA GERAL DO ESTADO- Maluf, Sahid. pag 23)

É por esses motivos que o Papa Leão XIII em sua encíclica Rerum Novarum, começa o número 5 da referida encíclica, afirmando que o remédio que o socialismo propões está em confronto com o direito natural:

5. (...) o remédio proposto está em oposição flagrante com a justiça, porque a propriedade particular e pessoal é, para o homem, de direito natural.

Não se trata de algo de altíssimo grau intelectual e, portanto, de difícil alcance, entender que devemos praticar o bem e evitar o mal. Nossos pais, muitas vezes sem entender isso, nos ensinaram assim. Os pais deles, nossos avós, já foram ensinados assim. Provavelmente a maioria deles sequer tem noção do que é direito natural, contudo a prática é comum justamente por ser natural. Ele é inerente ao ser humano que já nasce com essa lei natural inscrita em sua mente, em sua alma.

O direito de propriedade decorre dessa mesma lei natural que nos impulsiona a lutar pela própria vida e a não fazer aos demais o que não queremos que façam conosco (Tb 4, 16). Essa máxima é bíblica, contudo somente reflete o que está no homem desde que esse existe. A Bíblia apenas refletiu o que já existia.

A propriedade privada é de direito natural pelo simples fato de que é a expressão da pessoa humana. É fruto do seu trabalho ou do de seus antepassados. É o espelho do indivíduo, que precisa de um aconchego preservado pela privacidade, onde pode ser ele mesmo, cercado dos sinais que identificam o seu eu. Ela estimula o trabalho, sendo o homem atraído espontaneamente pela perspectiva da recompensa direta e pessoal de seus esforços. E isso de importância extrema.

Mais ainda que isso, a propriedade é a lógica de uma sociedade articulada e organizada, ao contrário da meramente coletiva que é pregada por socialistas de todas as correntes, que tem por consequência uma sociedade massificada, sem diversificação nem liberdade.

Defendendo a propriedade privada como faz a Igreja e como todo Católico Apostólico Romano deve fazer, estamos defendendo a liberdade individual em contraposição à massificação social pela cultura, costumes, atitudes e omissões, reações, palavras e dons pessoais.

“A propriedade faz parte da natureza do homem e da natureza das coisas. Como o trabalho, ela encerra um mistério – é a projeção da personalidade humana sobre as coisas. A pessoa tende à propriedade por um impulso instintivo, do mesmo modo que a nossa natureza animal tende ao alimento. O apetite da propriedade é tão natural à nossa espécie como a fome e a sede; apenas é de notar que estes são apetites da nossa natureza inferior, ao passo que aquele procede da nossa natureza superior. Todo o homem tem alma de proprietário, mesmo os que se julgam seus inimigos. É isto que se entende quando se afirma que a propriedade decorre do direito natural” (R.G. Renard, L’Église et la Question Sociale, p. 137 et seq.).

Em igual prisma, a propriedade faz parte da dignidade da pessoa humana e está intimamente ligada a essa dignidade. Senhor dos seus atos, para agir com toda a independência, o homem tem necessidade de poder apropriar-se exclusivamente de certos bens, para orientar sua atividade segundo suas aspirações e seus gostos e trabalhar, sem coação, no desenvolvimento de sua personalidade.


Enfim, entendendo a propriedade privada como algo inerente ao ser humano e não como algo que deve ser conquistado, como pensava Marx, temos a propriedade como direito natural e não como conquista pessoal que deve ser violenta ou intelectualmente retirado de outrem. Todos temos inclinação a proprietários e sob essa base é concebida a Encíclica Rerum Novarum.