Por Sávio Laet
Partamos da experiência de Cristo, nossa
Cabeça. Quando da cura da sogra de Pedro, fala-nos o Evangelho que “Ele se
inclinou para ela [...]” [Lc 4, 39]. De fato, Nosso Senhor se inclinava para levantar os desvalidos. Na verdade, inclinou-Se
tanto, esticou-Se tanto para nos alcançar, para nos erguer, que morreu por nós.
Amou-nos até à morte: “E, inclinando a cabeça, entregou o Espírito” [Jo, 19, 30].
Ora, é deste reclinar-se do Novo Adão, que adormeceu na cruz, que nasceu a
Igreja, Sua esposa. A Igreja nasce de
Cristo morto por amor! Afirma Agostinho: “Aqui, o segundo Adão, inclinada a
cabeça, adormeceu na cruz, para que dele se lhe formasse a esposa que brotou do
lado do que dormia”[1].
Noutro passo, o Bispo de Hipona é ainda mais claro:
A Igreja havia de sair de Cristo enquanto
dormia na cruz; havia de nascer do lado de Cristo que dormia. Foi do lado de
Cristo que dormia, do seu lado aberto pela lança, que manaram os sacramentos da
Igreja. Por que me dispus eu a dizer-vos isto, irmãos? Porque é a enfermidade
de Cristo que nos torna fortes.[2]
A Igreja nasceu, pois, da fraqueza, do
esgotamento do Seu Senhor. Nasceu de Cristo dilacerado por amor a nós. A bem da
verdade, ela nasce, a cada dia, do peito do seu Salvador, do Seu coração
trespassado pela lança [Jo 19, 34] dos nossos pecados. A Nova Eva veio à luz
por aquele mesmo coração que aliviou o sofrimento de muitos, pelo mesmo coração
sobre o qual o discípulo amado recostou a sua cabeça. Foi de um coração manso e
humilde [Mt 11, 29], trespassado por nossos pecados, que saíram o sangue e a água,
símbolos dos sacramentos da iniciação Cristã. Comenta ainda Agostinho:
O Evangelista usou de uma palavra premeditada
para não dizer “feriu o seu lado” ou “atravessou”. Disse “abriu” para mostrar
de que modo se abria a porta da vida, donde emanavam os sacramentos da Igreja,
sem os quais não se entra para a vida que é vida verdadeira.[3]
Os sacramentos da Igreja nasceram de um coração aberto! |
Com efeito, os sacramentos da Igreja nasceram de um coração aberto! Nascem de um
coração manso e humilde. Por ocasião da morte de Cristo, todos os
Evangelhos sinóticos registram que, antes de morrer, Jesus deu um grande grito:
“Jesus, porém, tornando a dar um grande grito [clamans voce magna], entregou o espírito” [Mt 27, 50]. “Jesus,
então, dando um grande grito [voce magna],
expirou” [Mc 15, 37]. “Jesus deu um forte grito [clamans voce magna]. Dizendo isso, expirou” [Lc 23, 46]. Ora, um
teólogo registra de forma muito feliz: “O grito de Jesus na Cruz é o grito de
alguém que morre dando à luz uma vida”[4]. E
a vida que nasceu dali, já o sabemos, é a Sua Igreja. Na verdade, naquele
momento, cumpriu-se o dito do próprio Senhor: “Se o grão de trigo que cai na
terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muitos frutos” [Jo
12, 24]. E o fruto da Sua morte foi a Sua Igreja. Destarte, esta nasce, pois,
da suprema doação do Salvador, da Sua exaustão, das Suas forças exauridas. A gênese da Igreja é Cristo humilíssimo, consumido por amor no
acérrimo lenho da cruz.
O princípio da Igreja encontra-se na morte
cruenta do Seu Senhor. Não sem razão, pelos séculos afora, também o sangue dos
seus mártires – conforme atestou Tertuliano – continuou sendo a semente de
novos cristãos: “O sangue é semente de cristãos”[5]. Santo
Agostinho, tomando a analogia da Igreja com a videira [Jo 15, 1-17], diz-nos a
mesma coisa: a Igreja só floresceu sob a seiva do sangue dos mártires:
Tal como foi profetizado e anunciado pelo
próprio Senhor, a videira, que por toda a terra espalhava ramos cheios de
frutos, germinava tanto mais quanto era regada pelo ubérrimo sangue dos
mártires [uberiore
martyrum sanguine rigabatur].[6]
Que isto significa, senão que a Igreja só
cresce com a doação plena dos seus membros, com a entrega humilde de cada um
deles? Por isso, insta Agostinho aos que lhe foram confiados: “O teu Senhor
humilde e tu soberbo? A Cabeça humilde e um membro soberbo?”[7] E
São Bernardo é ainda mais severo: “Envergonha-te, soberba cinza [erubesce superbe cinis]: Deus se humilha
e tu te exaltas?”[8].
Nunca será demais ratificar: a Igreja nasceu humilde e cresce pela humildade.
A humildade de Cristo mostrou ao homem o próprio homem. |
A falar com exação, Cristo, ao inclinar-se até à morte,
nada mais fez do que mostrar ao homem o próprio homem, mesmo porque os termos, “Homem
[homo] e humildade [humilitas] derivam ambos do mesmo termo humus que significa terra, solo”[9].
Por isso, humilhar-se é, antes de mais, inclinar-se até o chão, até o solo, de
onde, enfim, todos viemos: “O Senhor Deus modelou o homem com o pó apanhado do
solo” [Gn 2, 7]. Destarte, “Ser humilde é humano”[10]. Ora, Cristo, sendo Deus, quis ser humilíssimo; rebaixando-se de Sua
condição divina, por obediência a Deus, foi até à morte e morte de cruz [Fl 2,
8]. Nisto, precisamente nisto, Ele foi verdadeiramente homem e mostrou ao homem
o que realmente é ser humano. Lembremo-nos da palavra de Pilatos ao apresentar
Jesus humilhado diante da multidão: “Eis o homem! [“Ecce homo!”] [Jo 19, 5]. Que nos resta, pois, a não ser concordarmos
com a máxima de um insuspeito teólogo sobre Cristo: tão humano que só podia ser Deus! A propósito, alguns hereges da
antiguidade negaram a natureza humana de Cristo. Mas, seria sem razão,
duvidar se nós – sendo homens e não Deus – somos verdadeiramente homens como
Deus o foi, quando esteve entre nós?
Nesta dinâmica, Cristo nos ensinou o caminho da
verdadeira conversão, que começa, justamente, quando o homem se torna
verdadeiramente homem! De fato, Ele, sendo Criador, ensinou à criatura o que é
ser criatura, pois ser criatura é ser humilde como Ele o foi. Sendo Deus,
fez-se homem e, assim, ensinou-nos que ser humilde implica em não querer ser
Deus e nem como Deus. Ele, sendo Deus, e não deixando de sê-lo, não Se valeu,
todavia, da Sua divindade, quando Se humanizou, quis mostrar a nós que, não
sendo deuses, quando queremos sê-lo, desumanizamo-nos. Com efeito, é nesta
tentativa de querer ser como Deus que está a raiz do pecado, a raiz da soberba.
Na verdade, foi pretensão do “[...] sereis como deuses [eritis sicut Deus]” [Gn 3, 5] que nos fez esquecer quem somos. Ora,
quem não aceita ser o que é, torna-se algo abaixo do que é. Nisto consiste a
virtude da humildade, fazer com que cada um seja o que é. De modo que a humildade nos eleva, uma vez que, por ela,
conseguimos nos tornar o que somos; na soberba, ao contrário, só conseguimos
ser menos do que somos, em verdade jamais conseguiremos ser o que não somos.
És pé e ao pó voltarás (Gn 3, 19) |
Nesta linha, Pieper diz acerca da humildade: “Aquilo que a soberba nega
e destrói, a humildade reafirma e consolida: a condição de criatura do homem [...]”[11]. E
continua dizendo sobre a humildade: “É principalmente a simples aceitação
disto: que o homem e a humanidade não são Deus, nem ‘como Deus’”[12]. Vista deste ângulo, a aparente sentença
condenatória do Gênesis, “[...] és pó e ao pó voltarás” [Gn 3, 19], já é, por
parte de Deus, um convite à conversão dirigida ao homem: volte a ser o que o era! E o “Convertei-vos” [Mt 3, 2; Mc 1,15] de
Jesus é – também ele – uma reafirmação, uma retomada do convite de Deus. Ele
pede ao homem que comece voltando a ser o que era: dependente de Deus.
Ser humilde é precisamente
isto: ser homem, e ser homem é, antes de tudo, ser criatura, e ser criatura é,
antes de qualquer coisa, reconhecer-se depentente de Deus, sujeito
espontaneamente ao seu Criador e, por isso mesmo, obediente a Ele. Em uma
palavra, a humildade consiste numa sujeição
irrestrita a Deus: “Mas a humildade [humilitas],
como virtude específica, visa, sobretudo [pracipue],
à sujeição a Deus [subiectionem ad Deum]
[...]”[13].
E ainda: “Parece, pois, que a humildade [humilitas]
implica, sobretudo [pracipue], a
sujeição do homem a Deus [subiectionem
hominis ad Deum]”[14].
Agora bem, o termo usado na citação acima por
Santo Tomás é “subiectionem”, cujo prefixo “sub” significa estar “debaixo de”.
Formado desta palavra é ainda o termo “subiectus”, que significa algo “posto
debaixo”, “colocado abaixo”. Ser humilde é, pois, colocar-se sob Deus, situar-se “abaixo” dEle ou
debaixo do Seu governo. Afinal, não é isto o que nos exorta São Pedro: “Humilhai-vos
sob a poderosa mão de Deus [...]” [I Pe. 5, 6]? Aliás, o mesmo São Pedro, na conclusão do
mesmo versículo, nos diz também que, colocando-nos em nosso lugar, ou seja, sob a poderosa mão de Deus, Deus nos
exaltará: “Humilhai-vos sob a poderosa mão de Deus, a fim de que ele vos exalte
no momento determinado” [I Pe. 5, 6]. De fato, em Cristo vimos acontecer exatamente
isto, a saber, depois da Sua suprema humilhação na cruz, “[...] Deus o exaltou
soberanamente” [Fl 2, 9]. Seguindo o dito de São Pedro, Deus quer fazer o
mesmo conosco. Outrossim, ressoa em nossos ouvidos a máxima do próprio Senhor:
“Pois todo homem que se eleva será rebaixado, mas quem se rebaixa será elevado”
[Lc 14, 11][15].
"Este é o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem: para que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho de Deus." |
E há mais. Se, pela fé e pela graça, o homem se
humilhar diante de Deus e passar a ser o que, de fato, é, vale dizer, criatura,
Deus o exaltará, tornando-o Seu filho. Afirma ousadamente Santo Ireneu: “Este é
o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem: para que o homem, unindo-se ao
Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho de Deus”[16].
E vai mais longe ainda: “[...] o Verbo de Deus, Jesus Cristo nosso Senhor, que
na sua imensa caridade se fez o que nós somos para nos elevar ao que ele é”[17].
Santo Atanásio, com destemor, também afirma: “Ele [Cristo] se fez homem para
que fôssemos deificados”[18].
Santo Tomás não é menos corajoso ao afirmar, citando um Sermão de Agostinho: “Deus se fez homem para que o homem fosse
feito Deus”[19].
Longe dos Santos Padres e dos Santos Doutores defenderem uma divinização do
homem por essência [per essentiam]. O
homem jamais formará com Deus uma única substância ou hipóstase! Isto seria
panteísmo. Eles celebram, sim, que o homem, em Cristo, tornou-se partícipe
da natureza divina e, neste sentido, foi deificado.
Trata-se de uma deificação por participação [per participationem].
Neste passo da nossa reflexão é quase
impossível não avocar o adágio latino retomado por Santo Tomás de Aquino: “[...]
a graça não suprime a natureza, mas a aperfeiçoa [gratia non tollat naturam, sed perficiat= a graça não tolhe a natureza,
mas aperfeiçoa]”[20]. Dentre
outras coisas, esta passagem está a nos dizer que, se a conversão começa com o
homem voltando a ser o que é, vale dizer, criatura de Deus, e, ipso facto, dependente e sujeito a Ele,
temos que a graça não nega a natureza, senão que a pressupõe: “[...] a graça
pressupõe a natureza [gratia praesupponit
naturam] [...]”[21]. Não
sem razão, o próprio Agostinho, em linhas gerais, já dizia a mesma coisa: “[...]
a graça não foi negada pela natureza [per naturam negata sit gratia], mas, sim, a
natureza foi restaurada pela graça [per gratiam reparata natura]”[22],
ou seja, assim como o médico não elimina o doente, mas a doença, a graça não
destrói a natureza, mas a trata, cura e aperfeiçoa. É o pecado que enfraquece a
natureza, a graça a sara: “[...] o pecado é contra a natureza e é curado pela
graça [...]”[23].
Portanto, o favor divino age de modo salubre na natureza humana. Assim, antes de querermos nos tornar “místicos”, deixemos que a graça nos
torne homens, refeitos à imagem e semelhança de Deus [Gn 1,27]. Ninguém será
“santo”, se antes não for homem. Afirma Tomás: “[...] o sujeito da graça é
exclusivamente a criatura racional”[24].
Sendo assim, a Igreja, destinada a ser consorte
da natureza divina pela graça, nasce verdadeiramente humana como Seu Divino
Mestre. Destinada a ser sobrelevada por Ele, brota humilíssima, como
humilíssimo foi Seu Adorável Redentor. A Igreja germina como serva, como servo
foi Seu Senhor: “[...] o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para
servir e dar a sua vida como resgate por muitos” [Mt 20, 28; Mc 10, 45]. Do quanto foi dito, segue-se que a grandeza da
Igreja está no servir. Nela, a medida da grandeza de alguém é medida pelo serviço
que presta: “[...] aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso
servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos”
[Mc 10, 43 e 44].
Na última ceia Jesus mostrou trazer dentro de Si um desejo ardente de Se entregar pelos que amava. |
Talvez seja propício evocarmos a
imagem da Última Ceia. Na última Páscoa
que Nosso Senhor celebrou com os que Lhe eram caros, demonstrou trazer dentro
de Si um desejo ardente de Se entregar pelos que amava: “Desejei ardentemente [Desiderio desideravi] comer esta páscoa
convosco antes de sofrer” [Lc 22, 15]. Mas o que aconteceu naquela Ceia?
Vejamos. Cristo “[...] tomou um pão, deu graças, partiu [fregid= quebrado,
fracionado] e deu-o [dedid= dado, oferecido] a eles, dizendo: ‘Isto é o meu corpo que é dado
por vós [...]’” [Lc 22, 19]. O que significa este gesto? Ele mesmo explicou:
“Isto é o meu corpo [Hoc est corpus meum]
que é dado por vós [quod pro vobis datur]”
[Lc 22, 19]. E acrescentou: “Fazei isto em minha memória[25]” [Lc
22, 19]. Depois, fez o mesmo com o vinho, afirmando sem tergiversar que este
era o Seu sangue derramado pelos seus. Na verdade, “hoc=isto” é o amor de Jesus. A par da instituição do Sublime Sacramento[26] – se bem que ambos os mistérios estejam intimamente ligados – queremos, aqui, dar ênfase ao gesto de Jesus, isto é, ao
fato de Ele partir-se por seus discípulos, de doar-se por inteiro a eles. Neste
sentido, falando da Última Ceia,
dizia Santo Efrém sobre Cristo: “[...] partiu seu corpo para os seus discípulos
[...]”[27]. Mas
há mais. Cristo pediu, com o Seu exemplo, que os seus discípulos continuassem a
fazer o mesmo, a saber, a partirem-se,
quebrarem-se, deixarem triturar-se até o derramamento de sangue – se necessário – pela salvação uns dos
outros. Já Santo Inácio de Antioquia, no século II, na iminência do seu
martírio, identificava-se com o gesto do seu Senhor, dizendo aos cristãos de
Roma: “Sou trigo de Deus, e serei moído pelos dentes das feras, para que me
apresente como trigo puro de Cristo”[28].
O “desejar ardentemente” de Lucas é expresso
pelo termo grego “epithymía” [ἐπιθυμία], que diz um desejo ardente,
abrasante, um desejo que queima, que se consome. Nosso Senhor consumia-Se por Se
consumir por Seus discípulos. O coração de Cristo era uma Sarça Ardente que, diferentemente da do Êxodo que queimava, mas não se consumia [Ex 3, 1-3], consumiu-Se
todo inteiro na Cruz por nós. Na Cruz, o amor de Jesus consumou-Se, chegando à plenitude: “Está consumado [Consummatum
est]” [ Jo 19, 30]. Foi “hoc=este”
o amor que Ele celebrou na Última Ceia.
Afirmava Santo Efrém: “Na ceia Cristo se imolou. Na cruz ele foi imolado”[29].
Na
verdade, com a consagração do vinho, que se transubstanciou em Seu sangue,
Cristo mostrou-nos que estava oferecendo a nós não somente a sua vida, mas
também a sua morte. Eis o significado de ter consagrado não apenas o pão, mas
também o vinho. O sangue [símbolo da vida]
é derramado por nós. Para Cristo, morrer é gastar a vida: “Esta taça é a Nova
aliança [novum testamentum] em meu
sangue [sanguine meo], que é
derramado por vós [qui pro vobis funditur]”
[Lc 22, 20]. O Novo Testamento que
Ele nos deixou, ei-lo: vida e morte vertidas por nós!
Jesus é o Pão da vida. |
Nosso Senhor celebrou o que viveu. Ele, que é o
Pão da Vida [Jo 6, 5], antes de Se
doar a nós no rito da Eucaristia e no
suplício da Cruz, já tinha sido esmagado e como que mastigado pela multidão que O seguia. Não sem razão, narra-nos o
Evangelho: “Ele disse aos discípulos que mantivessem um barco à disposição, para que a multidão não o esmagasse” [Mc
3, 9], e ainda: “Uma numerosa multidão o seguia e esmagava” [Mc 5, 24]. Ademais,
o senhor Jesus quis que os Seus discípulos estivessem dispostos a fazer o
mesmo, ou seja, que se deixassem moer
por amor. Por isso, Santo Inácio, que conheceu os Apóstolos, dizia de Cristo:
“Se não estamos dispostos a morrer por ele, para participar de sua paixão, a
vida dele não está em nós”[30].
Demos um passo adiante. Com efeito, foi “[...]
pelo Espírito eterno [...]” que o próprio Cristo “[...] se ofereceu a si mesmo
a Deus como vítima sem mancha” [Hb 9, 14]. Desta feita, é claro que também nos Seus esta oferenda será, antes de tudo, obra do Espírito. Também a nós o
Espírito nos impelirá a nos ofertarmos a Deus. No século III, Tertuliano
afirmava que o Espírito Santo é “[...] o treinador dos mártires”[31];
antes dele, no século II, o mesmo Santo Inácio de Antioquia, prestes a ser lançado às
feras, dizia, referindo-se ao mesmo Espírito [Jo 7, 37-39]: “Dentro de mim há
uma água viva, que murmura e diz: ‘Vem para o Pai’”[32]. No
século IV, São Cirilo de Jerusalém, numa de suas Catequeses, declarava: “Os mártires dão o seu testemunho graças à
força do Espírito Santo”[33].
A doação cristã é, pois, obra do Espírito.
Pelo que já foi dito, podemos asseverar sem
pestanejar: a essência do cristianismo é
o amor. Aliás, o mesmo Jesus, aos Seus, afirmou: “Nisso reconhecerão todos
que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” [Jo 13, 5]. Outrossim, no Sermão da Montanha, o Senhor
afirma o critério segundo o qual podemos reconhecer os seus autênticos
envidados: “É pelos seus frutos que os reconhecereis” [Mt 7, 16 e 20]. Ora,
para São Paulo, o primeiro fruto do verdadeiro cristão é o amor. Di-lo-á aos
cristãos da Galácia: “Frutus autem
Spiritus est caritas” [Portanto, o
fruto do Espírito é a caridade]” [Gl 5, 22].
Por outro lado, o mesmo Senhor que diz que os
Seus discípulos serão reconhecidos pelo amor que tiverem uns pelos outros, é
também quem afirma que não reconhecerá a ninguém por tê-lO chamado, pura e
simplesmente, de Senhor ou por haver profetizado ou mesmo feito milagres em Seu
nome. E não só. Adverte, inclusive, que muitos são os que se apresentarão a Ele
com estas pretensas credenciais: “[...] Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor,
Senhor, não foi em teu nome
que profetizamos e em teu nome que expulsamos demônios e em teu nome que
fizemos muitos milagres? Então eu lhes declararei: NUNCA VOS CONHECI [...]” [Mt
7, 22-23]. Ouçamos, agora, o que para o Senhor significam profecias, exorcismos
e milagres sem amor: “Apartai-vos de mim, vós que PRATICAIS A INIQÜIDADE” [Mt
7, 23]. Para Ele, profecias, milagres e exorcismos não são o selo de credibilidade dos Seus
seguidores. Este selo é o amor!
Retornemos, por fim, ao seguinte passo
evangélico: “Nisso [In hoc]
reconhecerão todos [cognoscent omnes]
que sois meus discípulos [quia mei
discipuli estis]: se tiverdes amor uns pelos outros [si dilectionem habueritis ad invicem]” [Jo 13, 35]. Isto se
cumpriu. Já no século III, Tertuliano [160-220 d.C] atestava que os de fora, ao
verem os cristãos, diziam: “Olha como eles se amam!”[34]. Pois bem, uma vez que a “[...] a lei de Deus é a caridade [Lex Dei est caritas]”[35],
e nada temos que não tenhamos antes recebido dEle [I Co 4, 7], peçamos ao Pai, a
quem mendigamos até o próprio pão – “Quando dizes: O Pão nosso quotidiano dá-nos hoje, confessas que és mendigo de
Deus”[36] –
o Dom de amar.
Uma palavra ainda sobre o que é o
“não amar”, em outros termos, o que é o mal. O mal é a privação de um bem
devido, diziam os melhores escolásticos. Afirmavam ainda que o mal precisa de
um sujeito onde possa subsistir. No âmbito prático, o mal acontece quando o bem
devido não é feito. Assim, fazer o mal é não fazer o bem que se deveria fazer.
E o homem mau não é outro senão aquele que não faz o bem que deveria fazer. Por
outro lado, o homem bom não é aquele que “não faz mal a ninguém”, mas aquele
que faz o bem que pode e deve fazer. Sim, o mal é banal. De fato, uma pessoa
que não faz o bem que pode e deve fazer – ainda que conserve uma feição
inofensiva – está, objetivamente, resistindo ao Espírito Santo, que nos impele
a amar. Nosso Senhor não falou do ato de amar como um “não fazer” o mal, mas
sim como algo positivo, vale dizer, fazer o bem: “Tudo aquilo, portanto, que
quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles.” [Mt 7, 12]. Sem
pretendermos nos estender mais, citemos as breves palavras com as quais Santo
Tomás define amar: “[...] amar é querer o bem de alguém [...]”[37].
Observemos apenas que amar, para Tomás, não é algo insosso, uma espécie de “não
querer mal algum a ninguém”, mas, ao contrário, algo bem positivo e específico,
a saber, querer o bem de alguém. E como indica o uso do verbo, “amare”,
trata-se de uma ação determinada.
[1]
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de
São João: Da Cruz à Glória. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra:
Gráfica Coimbra. v. 5. CXX, 2. p. 161. Para entender a analogia de Agostinho,
vide o texto de Gn 2, 21-24, cotejando-o com o de São Paulo aos Efésios [Ef 5,
31-33].
[2]
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de
João: O Verbo de Deus. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra:
Gráfica Coimbra, 1954. v. I. XV, 8. p. 391.
[3]
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de
São João: Da Cruz à Glória. CXX, 2. pp. 160 e 161.
[4] CANTALAMESSA, Raniero. 3ª ed. Nós Pregamos Cristo Crucificado. Trad. Maurício Ruffier. São Paulo:
Edições Loyola, 2000. p. 93.
[5] TERTULIANO. Apologeticum.
50. In: BERTHOLD, Altaner, ALFRED, Stuiber. Patrologia. 3ª ed. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. Honório Dalbosco:
Paulus, 2004. p. 159: “[...] semen est sanguis christianorum (...)”.
[6] AGOSTINHO. A
Instrução aos Catecúmenos. 2ª ed. Trad. Maria Glória Novak. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 2005. XXIV, 44. p. 107.
[7] AGOSTINHO. Sermo
354. 9, 9. In: CANTALAMESSA, Raniero. 3ª ed. Nós Pregamos Cristo Crucificado. Trad. Maurício Ruffier. São Paulo:
Edições Loyola, 2000. p. 82.
[8]
BERNARDO DE CLARAVAL. Louvores a Virgem.
1, 8. In: CANTALAMESSA,
Raniero. 3ª ed. Nós
Pregamos Cristo Crucificado. Trad. Maurício Ruffier. São Paulo: Edições
Loyola, 2000. p. 82.
[9]
CANTALAMESSA, Raniero. A Vida em Cristo.
2ª ed. Trad. Maurício Ruffier e Marcos Marcionilo. São Paulo: Edições Loyola,
1999. p. 190.
[11] PIEPER, Josef.
A Humildade. Disponível em:
< http://www.hottopos.com/videtur17/pieper.htm#_ftnref20>. Acesso: 14/03/2012.
[12] Idem. Op. Cit.
[13] TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom-Marie Roguet
et. al. São Paulo: Loyola, 2001. II-II,
161, 1, ad 5.
[14] Idem. Ibidem. II-II, 161, 2, ad 3. E ainda: Idem. Ibidem. II-II, 162, 5, C: “Propriamente, ela [humildade= humilitas] diz respeito à submissão do homem a Deus [subiectionem hominis ad Deum]”.
[15] E
ainda: “[...] todo o homem que se eleva será rebaixado, mas quem se rebaixa
será elevado” [Lc 18, 14].
[16] IRENEU
DE LIÃO. Contra as Heresias. 2ª ed.
Trad. Lourenço Costa. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995. III, 19, 1. p.
336.
[17] Idem. Op. Cit. V, Prefácio. p.
518.
[18]
ATANÁSIO. A Encarnação do Verbo.
Trad. Orlando Tiago Loja Rodrigues Mendes. São Paulo: Paulus, 2002. VI, 54, 3.
p. 198.
[19] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, 1, 2, C: “Factus est Deus homo, ut homo fieret
Deus”.
[22]
AGOSTINHO. O Espírito e a Letra. 2ª
ed. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. Iranildo B. Lopes. São Paulo: Paulus, 1998.
XXVII, 47. p. 70.
[23] Idem. Ibidem: “Vitium quippe contra naturam
est, quod utique sanat gratia [...]”
[24]
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, 27, 2, C.
[25] Hoc facite in meam commemorationem= fazei isto em minha memória. Cristo
pediu aos seus que fizessem aquilo que Ele fazia “co memorando”, isto é, celebrando juntos à Sua memória, vale dizer, o Seu legado,
o que Ele havia deixado como exemplo e modelo de vida.
[26] No Sublime Sacramento confessamos que, após
a consagração do pão e do vinho pelo
sacerdote, ocorre a transubstanciação dos mesmos, e Cristo passa a estar todo
inteiro, e em cada uma das partículas das espécies, verdadeira, real e
substancialmente presente: corpo, sangue, alma e divindade [Conc. De Trento: Ds 1651].
[27] EFRÉM. Com. Ao Diatess. 9, 4. In:
CANTALAMESSA, Raniero. O Mistério da Ceia. Trad. Orlando Gambi. São Paulo:
Editora Santuário, 1993. p. 13.
[28] INÁCIO
DE ANTIOQUIA. Carta aos Romanos. 3ª ed. Trad. Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. Rev. H.
Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2002. 4, 1. p. 105.
[29] EFRÉM. Hinos Sobre a Crucificação. 3, 1. In:
CANTALAMESSA, Raniero. O Mistério da Ceia. Trad. Orlando Gambi. São Paulo:
Editora Santuário, 1993. p. 13.
[30] INÁCIO
DE ANTIOQUIA. Carta aos Magnésios. 3ª
ed. Trad. Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin. Rev. H. Dalbosco. São Paulo:
Paulus, 2002. 5, 2. p. 92.
[31]
TERTULIANO. Aos Mártires. 3, 3. In:
CANTALAMESSA, Raniero. O Canto do
Espírito: Meditações Sobre o Veni Creator. Trad. Ephraim Ferreira Alves.
Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998. p. 22.
[32] INÁCIO
DE ANTIOQUIA. Carta aos Romanos. 1.
p. 107.
[33] CIRILO
DE JERUSALÉM. Catequeses. XVI, 21.
In: CANTALAMESSA, Raniero. O Canto do
Espírito: Meditações Sobre o Veni Creator. Trad. Ephraim Ferreira Alves.
Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998. p. 22.
[34]
TERTULIANO. Apologeticum. 39, 7.
Disponível em <http://www.tertullian.org/articles/manero/manero2_apologeticum.htm>
Acesso em: 28/04/2012.
[35]
AGOSTINHO. O Espírito e a Letra.
XVII, 29. p. 50.
[36]AGOSTINHO.
Sermo 56. 6, 9. Disponível em: <http://www.augustinus.it/latino/discorsi/index2.htm>. Acesso em13/03/2012: “Quando dicis: Panem nostrum
quotidianum da nobis hodie, profiteris te mendicum Dei.”
[37]
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, 20, 3, C.
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