Por Carlos Ramalhete.
As coisas mais
presentes são normalmente as mais fáceis de esquecer. Só nos damos conta de que
respiramos se prestarmos atenção, mas ai de quem parar de respirar! A mais
básica de todas essas coisas óbvias, porém esquecidas, é a vida. Quem lê um
texto no jornal está vivo. Também quem o escreve. Todos os que nos cercam,
todas as pessoas que amamos, ou mesmo quem nos são indiferentes, estão vivos.
Isso é óbvio, mas não é por ser óbvio que perde valor.
A Páscoa, celebrada
hoje, é a celebração da vida por excelência. A crença cristã de que o Cristo
hoje venceu a morte, hoje voltou à vida para dar a Vida a todos os que o
aceitarem, nos mostra a vida como uma presença, como algo que, por estar aí,
suplanta a ausência que é a morte. É como a luz, que espanta a escuridão.
Além do riquíssimo
sentido religioso desta festa, contudo, mesmo quem não compartilha das crenças
cristãs tem nela um forte motivo para celebrar: o fato de estar vivo! Os
símbolos pascais são símbolos da vida, ainda que seja fácil esquecer disto. O
coelho é um animal que tem muitos e muitos filhotes: vida. O ovo é uma coisa
dura e seca, aparentemente sem vida, de onde brota inesperadamente um animal:
vida. Mesmo o chocolate, alimento que dá energia e disposição, é algo que nos
remete a este motivo contínuo de alegria que é a vida.
Este é um dia em que
somos lembrados do valor que tem a vida, para celebrá-la. É um dia em que,
quando nos encontramos à mesa com toda a família, nos lembramos de celebrar a
vida que continua, com uma geração vindo após a outra, com os idosos e as
crianças, que um dia serão também pais e avós. É um dia em que vemos as árvores
que crescem e nos dão sombra e fruto, em que vemos os pássaros que cantam e
enfeitam a nossa vida, em que somos lembrados, chamados, cutucados, para que
não nos esqueçamos da beleza deste fenômeno tão corriqueiro que é comum
esquecermos que está além do alcance da ciência: a vida.
É óbvio, é evidente,
é corriqueiro. Como é óbvio que respiramos. Contudo, assim como conseguimos nos
dar conta de que respiramos, do ritmo e da profundidade da nossa respiração, também
convém que consigamos nos dar conta do valor enorme de estarmos vivos, de
termos ao nosso lado (vivas!) pessoas que amamos.
Tudo o que nos
acontece de bom só pode nos acontecer por estarmos vivos. Mesmo os sofrimentos,
mesmo as tragédias – como as que infelizmente tantas vezes têm ocupado as
primeiras páginas dos jornais –, são trágicos por atentarem contra esta
riqueza, tão básica que tudo o mais é construído em torno dela: a vida.
Vale a pena, assim,
fazer este pequeno esforço, e – neste dia em que a cultura que, como a vida,
herdamos dos nossos ancestrais, celebra a vitória da vida – prestar atenção à
vida, como quem presta atenção à respiração. Começar neste dia um hábito, de
certa maneira semelhante ao dos atletas e cantores que procuram perceber sempre
o ritmo e a profundidade da respiração, de valorizar a vida que está presente
por toda parte. Se alguém nos incomoda, quanto mais nos incomodaria estar em um
deserto vazio e sem vida? Se alguém não nos dá o que achamos que merecemos,
como seria pior se não houvesse quem nos desse nada, se não tivéssemos o amor,
o carinho, o olhar e o toque de outro ser vivo ao nosso lado.
Vamos tentar, neste
dia, seguir as pistas que ainda nos restam nos símbolos pascais que não foram
totalmente substituídos pelo mais vazio consumismo: vejamos no coelho a
fecundidade, no ovo a geração da vida, no chocolate a sua manutenção.
Celebremos a vida.
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