Por Sávio Laet de Barros Campos.
Introdução
São Gregório Nazianzeno. |
São Gregório
Nazianzeno nasceu entre os anos de 329 e 330 da nossa era, em Nazianzo. Seu pai,
convertido por sua piedosa mãe, acabou por tornar-se Bispo de Nazianzo. Educado
pela mãe, Gregório estudou retórica em Cesaréia e só recebeu o Batismo,
conforme o costume da época, em idade adulta (30 anos). Amigo de São Basílio até
a morte, o jovem Gregório também estudou em Alexandria, onde, instruído por
Dídimo, familiarizou-se com o pensamento origineano. Concluiu os seus estudos
em Atenas; lá, ao lado de Basílio, aprofundou os seus conhecimentos nos clássicos
da filosofia. Isolou-se por um tempo às margens do rio Iris, no Ponto. Voltando
a Nazianzo, foi ordenado, a contragosto, sacerdote por seu próprio pai. Revoltado,
deixou a cidade, mas para se justificar, escreveu um tratado sobre a dignidade
do sacerdócio. Voltando uma vez mais a Nazianzo, ajudou o seu pai na
administração da Diocese.
Em 372, foi
sagrado Bispo de Sasima por Basílio. Entretanto, não chegou a exercer o
episcopado nesta Diocese. Com a morte do pai, assumiu as funções de Bispo em
Nazianzo e, para restabelecer a fé ortodoxa, aceitou administrar a sede
episcopal de Constantinopla, à qual, no entanto, renunciou para evitar rixas.
Voltou novamente a Nazianzo, onde continuou ajudando na Diocese. Optou pela
solidão, e viveu os últimos anos de sua vida, dedicando-se à ascese e ao trabalho
literário. Morreu em 390. Na controvérsia com os eunomianos, que afirmavam que a essência
divina, por ser ingênita, era inteiramente inteligível, Gregório afirmou a
total impossibilidade de conhecermos o que Deus é em si mesmo. Alguns
estudiosos asseveram que, em Gregório, já se começa a delinear o conceito de analogia, que será de uma
importância capital para a teologia cristã posterior.
Neste
pequeno artigo, falaremos acerca da teologia natural de Gregório. Arrolaremos
as razões pelas quais julga ser incognoscível a essência divina, ao mesmo tempo
que defende a cognoscibilidade da existência de Deus pela ordem do mundo.
Arrazoaremos sobre a predominância da teologia negativa em sua obra, e como,
mesmo quando afirma algo positivo acerca de Deus – por exemplo, como quando diz
que Deus é – está, na verdade,
negando qualquer possibilidade de defini-lo, pois o puro ser não conhece
limitações, é infinito e, por isso mesmo, indefinível.
Servir-nos-á de aporte teórico
para esta abordagem, o clássico de Étienne Gilson em parceria com Philotheus
Boehner: História da Filosofia Cristã.
Desde as Origens até Nicolau de Cusa (1951) ––, trazida ao vernáculo pelo
Prof. Raimundo Vier, em 1970,
a partir da edição alemã: Christliche Philosophie – von ihren Anfaengen bis Nikolaus von Cues (1952 a 1954).
Passemos a coligir as razões
pelas quais Gregório defende a incognoscibilidade da essência divina e a
cognoscibilidade da existência de Deus.
1. A incognoscibilidade da essência divina e a
cognoscibilidade da existência de Deus
Platão. |
Platão afirma no Timeu que é difícil conhecer a Deus e
impossível enunciá-lo por palavras. Gregório inverte a ordem: é impossível
enunciar algo sobre Ele e mais ainda conhecê-lo.[1]
Contudo, ele não é um agnóstico. O que diz que desconhecemos de Deus é a sua essência, pois a
sua existência, na sua percepção, permanece-nos cognoscível: “Antes de mais
nada, não é a existência de Deus que é incognoscível, mas tão somente a sua
natureza e essência”[2].
Agora bem, a razão pela qual não
podemos conhecer positivamente a essência divina é evidente: Deus é puramente
espiritual[3]
e nós, mesmo tendo uma alma espiritual, encontramo-nos presos às coisas
sensíveis por nosso corpo. Destarte, por mais que nos desprendamos das coisas
corporais e nos apliquemos às espirituais, os nossos conceitos estarão sempre
presos ao dado sensível. Desta sorte, por não sermos seres puramente
espirituais, não podemos – mesmo tendo algum parentesco com os seres puramente
espirituais pela nossa alma – alcançá-los em sua essência.[4]
De resto, a impossibilidade de conhecermos a Deus de forma clara e distinta,
acaba-se revertendo em nosso próprio benefício. Sem embargo, todo conhecimento
– precisamente enquanto se apresenta como mais difícil de conquistar-se – é sempre
mais ardentemente desejado e procurado. Desta feita, o fato de crermos em Deus
sem, porém, podermos conhecê-lo em si mesmo, além de nos incitar a buscá-lo com
maior afinco, supõe uma imensurável recompensa no além, que é quando o
conheceremos mais perfeitamente.[5]
Como diz o ditado, ninguém salta por cima da sua sombra. Como o olho precisa de
luz e ar para ver, e o peixe da água para poder nadar, “(...) assim também nós
não podemos chegar a Deus senão através das coisas corporais e sensíveis”[6].
Vê-se que, para Gregório, incognoscibilidade
não é sinônimo de agnosticismo. Se Deus em si mesmo é incognoscível por não
podermos alcançar um conceito puramente espiritual dEle[7],
isto não nos impede de conhecermos a sua existência. Passemos, então, a
compilar os argumentos pelos quais pretende Gregório provar a existência de
Deus.
2. As provas da existência de Deus
De fato, com um simples olhar
para a criação podemos perceber que ela não encontra em si mesma a razão da sua
existência.[8]
Quem é o autor de tamanha ordem e harmonia que impera no universo? Como
explicar a reunião de tantos elementos que possibilitam esta harmonia de que
gozam as coisas criadas? Donde provém este logos,
que rege por suas leis todas as coisas e pelo qual elas não caem no nada, antes,
conservam-se numa unidade e beldade admiráveis? Será o universo obra do acaso?
Se admitirmos que sim, como podemos explicar que o acaso, além de criar tal
ordem, a mantém e sustenta?[9]
Ora, é evidente que não podemos retroceder indefinidamente, atribuindo tudo ao
acaso; pelo que devemos admitir a existência de um soberano governador do
universo, o qual chamamos de Deus.[10]
Daí que, por meio da lei e da ordem – entranhadas na natureza das coisas – chegamos
com certeza a conhecer a existência de Deus.[11]
Entretanto, este argumento – não tarda em esclarecer Gregório
– não nos fornece nenhum conhecimento da essência divina.[12]
Passemos à análise de alguns
pontos da sua teologia apofática.
4. O conhecimento
negativo da essência divina
Todavia, se não podemos conhecer
o que Deus é, podemos ao menos saber o que Ele não é. Antes de tudo, devemos saber que Deus não é um corpo. Os seus
atributos mais essenciais nos atestam isto: imensidade, infinitude, inacessibilidade,
invisibilidade. Com efeito, todos eles repugnam qualquer propriedade corporal.[13]
Ademais, onde há matéria, há composição e onde há composição, há luta, e onde há
luta, há dissolução. Ora, a dissolução é incompatível com Deus. Destarte, Deus não poder ser um
corpo.[14]
Importa notar, ademais, que Deus
está em todo lugar e esta afirmação já nos bastaria para provarmos a sua
imaterialidade.[15]
A menos que concebamos que Deus se misture às coisas corpóreas – tal como a
água ao vinho – numa espécie de fragmentação de sua substância – o que seria de
todo um absurdo –, não poderemos afirmar que Deus esteja em todo lugar e ao
mesmo tempo e ainda assim seja um corpo.[16]
Além disso, se Deus fosse um corpo que preenchesse todo o universo, não haveria
lugar para as outras coisas.[17]
No entanto, surge a questão se seria legítimo atribuir a Deus um corpo sutil;
tal como dizem os peripatéticos, não seria Deus o quinto elemento, dotado de
movimento circular? Ora, Gregório elimina esta possibilidade a partir do
próprio conceito de movimento tomado de Aristóteles. De fato, supondo que
exista uma substância quase incorporal que se movimente como as outras coisas,
esta mesma substância teria que ter o seu movimento derivado de uma outra
substância que, por sua vez, seria ou não incorporal, e assim retrocederíamos
ao infinito, o que é impossível. Daí que, “Na opinião de Gregório o movimento
corporal se reduz, forçosamente, a algo incorporal”[18].
Logo, Deus é totalmente incorpóreo.
Destarte, nenhum conceito que
formamos a partir das coisas sensíveis nos patenteia o que Deus é, mas tão somente
o que Ele não é. O próprio fato de dizermos que Deus é incorpóreo, “não-gerado”,
eterno[19],
luz, sabedoria, justiça, razão e intelecto[20],
nada nos diz quanto à sua essência em si mesma que, então, nos permanece
velada. Sem embargo, quem de nós é capaz de compreender um espírito sem
movimento e absolutamente despojado de matéria? Como podemos imaginar uma luz
que não se misture ao ar? Ninguém pode imaginar o que seja um fogo sem matéria
e desligado de toda corporeidade. Nem a razão de Deus é da mesma ordem que a
nossa. Ademais, a nossa noção de justiça, sabedoria e inteligência também não
está totalmente despida de imagens corpóreas. Donde por ela não podermos chegar
a conhecer a Deus em si mesmo, que é espírito puro.[21]
Luz inacessível. |
Com efeito, o Deus de Gregório
habita em luz inacessível e nem mesmo os bem-aventurados o apreendem
exaustivamente. Por conseguinte, ao mesmo tempo em que está presente no mundo,
transcende-o. Embora seja a suma beleza, excede também a toda beleza. Deus
ilumina o espírito, mas este, na mesma medida em que O conhece, desconhece-O.
Trata-se, na verdade, de uma dialética do amor, pois quanto mais O conhece,
mais deseja conhecê-lo, ao mesmo tempo que forçosamente tem que reconhecer que
ainda não chegou a conhecê-lo verdadeiramente.[22]
Uma aparente aporia surge na filosofia
do Nazianzeno, a saber, ele parece nomear Deus, positivamente, quando O chama
de ser. Mas esta aporia é, de fato,
apenas aparente, pois não contradiz, antes, justifica o fundamento da teologia
apofática de Gregório. Sim, Deus é o próprio ser, e este ensinamento nós o colhemos
da revelação que o próprio Deus fez a Moisés. Quando este lhe perguntou o seu
nome, Ele lhe respondeu: Eu sou aquele
que é. Contudo, exatamente por ser Aquele que compreende em si a plenitude
do ser, Deus não tem princípio e nem fim. Por conseguinte, é imensurável e ilimitado em sua própria substância.
Na verdade, sendo Deus o próprio ser, não possui nenhuma limitação, é infinito:
Deus é o ser infinito; por isso,
ao perguntar-Lhe Moisés pelo nome, Ele respondeu, simplesmente: Eu sou aquele
que é. De fato, Deus compreende em si a plenitude do ser, e por esta razão
carece de princípio e de fim; antes, Deus é o seu próprio ser: um oceano
imensurável e ilimitado de substância. [23]
Agora bem, exatamente por isto
Ele permanece incompreensível a nós, espíritos finitos. Finalmente, da imensidade de Deus, oriunda da sua
carência de limites, compreendemos que Ele excede todo espaço e todo tempo, aos
quais estão sujeitos somente os seres que estão no espaço, a saber, os seres
corporais. Sem embargo, Ele excede todo espaço
por ser incorpóreo e excede todo tempo porque não foi e nem será, mas é, e possui todo o seu ser no presente. Em uma palavra: Deus é eterno.[24]
Passemos às considerações finais
deste artigo.
Conclusão
Por ser Deus puramente
espiritual, Ele não pode ser conhecido em si mesmo por nós outros. O homem é,
por natureza, corpo e alma. Desta feita, por mais que se esforce, nunca
conseguirá desprender-se totalmente dos dados da sensibilidade. Sendo assim, os
conceitos que forma sempre estarão de algum modo ligados aos dados sensíveis.
Por isso, por mais abstratos que sejam, os seus conceitos jamais poderão ser
aplicados a Deus, ao menos univocamente. Destarte, em si mesmo, Deus permanece
para nós incognoscível. Isso não significa, no entanto, que não podemos chegar
a saber que Ele existe. Com efeito, a natureza se nos demonstra uma harmonia
admirável, a qual não se explicaria senão pela presença de um logos que a governa. Nem é válida a
objeção que recorre ao acaso. Ainda quando supomos que tal ordem admirável
tenha a sua origem no acaso, nada pode explicar que ela se mantenha senão pela
presença de um governo inteligente. Desta sorte, atestamos pela ordem do mundo
a existência de um Deus soberano que o governa e sustenta.
De Deus podemos saber apenas o
que Ele não é. Antes de tudo, sabemos que Ele não é um corpo. Todo corpo
implica matéria e onde há matéria há dissolução. Ora, a dissolução é
incompatível com a divindade. Ademais, o próprio fato de a ordem do mundo
atestar que Deus está presente em todas as coisas, evidencia a sua
imaterialidade. De fato, a menos que suponhamos que a sua substância se
fragmente nas coisas, o que não se coaduna com a sua natureza, forçoso é
reconhecer que Ele está em todo lugar, enquanto sobrepuja a todo limite
corporal.
Qual é, pois, a natureza divina?
A Moisés Deus se revela como o ser supremo, o próprio ser. Ora, longe de este
nome nos desnudar a natureza de Deus de forma positiva, ele a oculta ainda
mais. Deus é o próprio ser e, como tal, não possui limites. Não é isto nem
aquilo, mas simplesmente é, e
possuindo limites, é infinito. Sendo infinito, é indefinível aos nossos
espíritos finitos. Sendo infinito, é ainda imenso. Sendo imenso, excede a todo
espaço. Excedendo a todo espaço, é imaterial e, por conseguinte, não está
sujeito à corrupção. Outrossim, sendo o próprio ser, subtrai-se ao tempo, pois
não foi nem será, mas simplesmente é
a plenitude do ser. Em uma palavra, Deus, sendo o próprio ser, é infinito,
imaterial, imenso e eterno.
BIBLIOGRAFIA
BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da
Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a
ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000. pp. 80 a 86.
[1]
BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da
Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed.
Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000. p. 81.
[2] Idem. Op. Cit.
[3] Idem. Op. Cit: “Não possuímos um conhecimento distinto e positivo da
essência divina, visto ser ela puramente espiritual.”
[4] Idem. Op. Cit: “(...) por mais que nos concentremos sobre nós mesmos e
por grande que seja o nosso desprendimento das coisas sensíveis, os nossos
conceitos sempre incluirão algum elemento corporal; e isto nos proíbe o acesso
às realidades puramente espirituais e à Divindade, a despeito dos laços de
parentesco que a ela nos prendem.”
[5] Idem. Op. Cit.
[6] Idem. Op. Cit.
[7] Idem. Op. Cit. p. 82.
[8] Idem. Op. Cit: “Um simples olhar para a criação nos convencerá de que não
é nela mesma, e sim em algo transcendente, que devemos buscar-lhe a razão de
ser.”
[9] Idem. Op. Cit: “Suponhamos, com efeito, que as coisas sejam um produto do
acaso. (...) Tal hipótese, porém, não suprime a questão de sabermos quem conserva
e mantém aquela ordem.”
[10] Idem. Op. Cit.
[11] Idem. Op. Cit.
[12] Idem. Op. Cit. p. 83.
[13] Idem. Op. Cit.
[14] Idem. Op. Cit.
[15] Idem. Op. Cit.
[16] Idem. Op. Cit.
[17] Idem. Op. Cit.
[18] Idem. Op. Cit.
[19] Idem. Op. Cit. p. 84.
[20] Idem. Op. Cit.
[21] Idem. Op. Cit.
[22] Idem. Op. Cit.
[23] Idem. Op. Cit. p. 85.
[24] Idem. Op. Cit.
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