sexta-feira, 25 de julho de 2014

Gregório de Nazianzo: Deus é o ser infinito.


Por Sávio Laet de Barros Campos.

Introdução

São Gregório Nazianzeno.
São Gregório Nazianzeno nasceu entre os anos de 329 e 330 da nossa era, em Nazianzo. Seu pai, convertido por sua piedosa mãe, acabou por tornar-se Bispo de Nazianzo. Educado pela mãe, Gregório estudou retórica em Cesaréia e só recebeu o Batismo, conforme o costume da época, em idade adulta (30 anos). Amigo de São Basílio até a morte, o jovem Gregório também estudou em Alexandria, onde, instruído por Dídimo, familiarizou-se com o pensamento origineano. Concluiu os seus estudos em Atenas; lá, ao lado de Basílio, aprofundou os seus conhecimentos nos clássicos da filosofia. Isolou-se por um tempo às margens do rio Iris, no Ponto. Voltando a Nazianzo, foi ordenado, a contragosto, sacerdote por seu próprio pai. Revoltado, deixou a cidade, mas para se justificar, escreveu um tratado sobre a dignidade do sacerdócio. Voltando uma vez mais a Nazianzo, ajudou o seu pai na administração da Diocese.

Em 372, foi sagrado Bispo de Sasima por Basílio. Entretanto, não chegou a exercer o episcopado nesta Diocese. Com a morte do pai, assumiu as funções de Bispo em Nazianzo e, para restabelecer a fé ortodoxa, aceitou administrar a sede episcopal de Constantinopla, à qual, no entanto, renunciou para evitar rixas. Voltou novamente a Nazianzo, onde continuou ajudando na Diocese. Optou pela solidão, e viveu os últimos anos de sua vida, dedicando-se à ascese e ao trabalho literário. Morreu em 390.  Na controvérsia com os eunomianos, que afirmavam que a essência divina, por ser ingênita, era inteiramente inteligível, Gregório afirmou a total impossibilidade de conhecermos o que Deus é em si mesmo. Alguns estudiosos asseveram que, em Gregório, já se começa a delinear o conceito de analogia, que será de uma importância capital para a teologia cristã posterior.

Neste pequeno artigo, falaremos acerca da teologia natural de Gregório. Arrolaremos as razões pelas quais julga ser incognoscível a essência divina, ao mesmo tempo que defende a cognoscibilidade da existência de Deus pela ordem do mundo. Arrazoaremos sobre a predominância da teologia negativa em sua obra, e como, mesmo quando afirma algo positivo acerca de Deus – por exemplo, como quando diz que Deus é – está, na verdade, negando qualquer possibilidade de defini-lo, pois o puro ser não conhece limitações, é infinito e, por isso mesmo, indefinível.

Servir-nos-á de aporte teórico para esta abordagem, o clássico de Étienne Gilson em parceria com Philotheus Boehner: História da Filosofia Cristã. Desde as Origens até Nicolau de Cusa (1951) ––, trazida ao vernáculo pelo Prof. Raimundo Vier, em 1970, a partir da edição alemã: Christliche Philosophie – von ihren Anfaengen bis Nikolaus von  Cues (1952 a 1954).

Passemos a coligir as razões pelas quais Gregório defende a incognoscibilidade da essência divina e a cognoscibilidade da existência de Deus.

1.  A incognoscibilidade da essência divina e a cognoscibilidade da existência de Deus

Platão.
Platão afirma no Timeu que é difícil conhecer a Deus e impossível enunciá-lo por palavras. Gregório inverte a ordem: é impossível enunciar algo sobre Ele e mais ainda conhecê-lo.[1] Contudo, ele não é um agnóstico. O que diz que  desconhecemos de Deus é a sua essência, pois a sua existência, na sua percepção, permanece-nos cognoscível: “Antes de mais nada, não é a existência de Deus que é incognoscível, mas tão somente a sua natureza e essência”[2].

Agora bem, a razão pela qual não podemos conhecer positivamente a essência divina é evidente: Deus é puramente espiritual[3] e nós, mesmo tendo uma alma espiritual, encontramo-nos presos às coisas sensíveis por nosso corpo. Destarte, por mais que nos desprendamos das coisas corporais e nos apliquemos às espirituais, os nossos conceitos estarão sempre presos ao dado sensível. Desta sorte, por não sermos seres puramente espirituais, não podemos – mesmo tendo algum parentesco com os seres puramente espirituais pela nossa alma – alcançá-los em sua essência.[4] De resto, a impossibilidade de conhecermos a Deus de forma clara e distinta, acaba-se revertendo em nosso próprio benefício. Sem embargo, todo conhecimento – precisamente enquanto se apresenta como mais difícil de conquistar-se – é sempre mais ardentemente desejado e procurado. Desta feita, o fato de crermos em Deus sem, porém, podermos conhecê-lo em si mesmo, além de nos incitar a buscá-lo com maior afinco, supõe uma imensurável recompensa no além, que é quando o conheceremos mais perfeitamente.[5] Como diz o ditado, ninguém salta por cima da sua sombra. Como o olho precisa de luz e ar para ver, e o peixe da água para poder nadar, “(...) assim também nós não podemos chegar a Deus senão através das coisas corporais e sensíveis”[6].

Vê-se que, para Gregório, incognoscibilidade não é sinônimo de agnosticismo. Se Deus em si mesmo é incognoscível por não podermos alcançar um conceito puramente espiritual dEle[7], isto não nos impede de conhecermos a sua existência. Passemos, então, a compilar os argumentos pelos quais pretende Gregório provar a existência de Deus.

2.  As provas da existência de Deus

De fato, com um simples olhar para a criação podemos perceber que ela não encontra em si mesma a razão da sua existência.[8] Quem é o autor de tamanha ordem e harmonia que impera no universo? Como explicar a reunião de tantos elementos que possibilitam esta harmonia de que gozam as coisas criadas? Donde provém este logos, que rege por suas leis todas as coisas e pelo qual elas não caem no nada, antes, conservam-se numa unidade e beldade admiráveis? Será o universo obra do acaso? Se admitirmos que sim, como podemos explicar que o acaso, além de criar tal ordem, a mantém e sustenta?[9] Ora, é evidente que não podemos retroceder indefinidamente, atribuindo tudo ao acaso; pelo que devemos admitir a existência de um soberano governador do universo, o qual chamamos de Deus.[10] Daí que, por meio da lei e da ordem – entranhadas na natureza das coisas – chegamos com certeza a conhecer a existência de Deus.[11] Entretanto, este argumento – não tarda em esclarecer Gregório – não nos fornece nenhum conhecimento da essência divina.[12]

Passemos à análise de alguns pontos da sua teologia apofática.

4. O conhecimento negativo da essência divina

Todavia, se não podemos conhecer o que Deus é, podemos ao menos saber o que Ele não é. Antes de tudo, devemos saber que Deus não é um corpo. Os seus atributos mais essenciais nos atestam isto: imensidade, infinitude, inacessibilidade, invisibilidade. Com efeito, todos eles repugnam qualquer propriedade corporal.[13] Ademais, onde há matéria, há composição e onde há composição, há luta, e onde há luta, há dissolução. Ora, a dissolução é incompatível  com Deus. Destarte, Deus não poder ser um corpo.[14]

Importa notar, ademais, que Deus está em todo lugar e esta afirmação já nos bastaria para provarmos a sua imaterialidade.[15] A menos que concebamos que Deus se misture às coisas corpóreas – tal como a água ao vinho – numa espécie de fragmentação de sua substância – o que seria de todo um absurdo –, não poderemos afirmar que Deus esteja em todo lugar e ao mesmo tempo e ainda assim seja um corpo.[16] Além disso, se Deus fosse um corpo que preenchesse todo o universo, não haveria lugar para as outras coisas.[17] No entanto, surge a questão se seria legítimo atribuir a Deus um corpo sutil; tal como dizem os peripatéticos, não seria Deus o quinto elemento, dotado de movimento circular? Ora, Gregório elimina esta possibilidade a partir do próprio conceito de movimento tomado de Aristóteles. De fato, supondo que exista uma substância quase incorporal que se movimente como as outras coisas, esta mesma substância teria que ter o seu movimento derivado de uma outra substância que, por sua vez, seria ou não incorporal, e assim retrocederíamos ao infinito, o que é impossível. Daí que, “Na opinião de Gregório o movimento corporal se reduz, forçosamente, a algo incorporal”[18]. Logo, Deus é totalmente incorpóreo.

Destarte, nenhum conceito que formamos a partir das coisas sensíveis nos patenteia o que Deus é, mas tão somente o que Ele não é. O próprio fato de dizermos que Deus é incorpóreo, “não-gerado”, eterno[19], luz, sabedoria, justiça, razão e intelecto[20], nada nos diz quanto à sua essência em si mesma que, então, nos permanece velada. Sem embargo, quem de nós é capaz de compreender um espírito sem movimento e absolutamente despojado de matéria? Como podemos imaginar uma luz que não se misture ao ar? Ninguém pode imaginar o que seja um fogo sem matéria e desligado de toda corporeidade. Nem a razão de Deus é da mesma ordem que a nossa. Ademais, a nossa noção de justiça, sabedoria e inteligência também não está totalmente despida de imagens corpóreas. Donde por ela não podermos chegar a conhecer a Deus em si mesmo, que é espírito puro.[21]

Luz inacessível.
Com efeito, o Deus de Gregório habita em luz inacessível e nem mesmo os bem-aventurados o apreendem exaustivamente. Por conseguinte, ao mesmo tempo em que está presente no mundo, transcende-o. Embora seja a suma beleza, excede também a toda beleza. Deus ilumina o espírito, mas este, na mesma medida em que O conhece, desconhece-O. Trata-se, na verdade, de uma dialética do amor, pois quanto mais O conhece, mais deseja conhecê-lo, ao mesmo tempo que forçosamente tem que reconhecer que ainda não chegou a conhecê-lo verdadeiramente.[22]

Uma aparente aporia surge na filosofia do Nazianzeno, a saber, ele parece nomear Deus, positivamente, quando O chama de ser. Mas esta aporia é, de fato, apenas aparente, pois não contradiz, antes, justifica o fundamento da teologia apofática de Gregório. Sim, Deus é o próprio ser, e este ensinamento nós o colhemos da revelação que o próprio Deus fez a Moisés. Quando este lhe perguntou o seu nome, Ele lhe respondeu: Eu sou aquele que é. Contudo, exatamente por ser Aquele que compreende em si a plenitude do ser, Deus não tem princípio e nem fim. Por conseguinte, é imensurável e ilimitado em sua própria substância. Na verdade, sendo Deus o próprio ser, não possui nenhuma limitação, é infinito:

Deus é o ser infinito; por isso, ao perguntar-Lhe Moisés pelo nome, Ele respondeu, simplesmente: Eu sou aquele que é. De fato, Deus compreende em si a plenitude do ser, e por esta razão carece de princípio e de fim; antes, Deus é o seu próprio ser: um oceano imensurável e ilimitado de substância. [23]

Agora bem, exatamente por isto Ele permanece incompreensível a nós, espíritos finitos. Finalmente, da imensidade de Deus, oriunda da sua carência de limites, compreendemos que Ele excede todo espaço e todo tempo, aos quais estão sujeitos somente os seres que estão no espaço, a saber, os seres corporais. Sem embargo, Ele excede todo espaço por ser incorpóreo e excede todo tempo porque não foi e nem será, mas é, e possui todo o seu ser no presente. Em uma palavra: Deus é eterno.[24]

Passemos às considerações finais deste artigo.

Conclusão

Por ser Deus puramente espiritual, Ele não pode ser conhecido em si mesmo por nós outros. O homem é, por natureza, corpo e alma. Desta feita, por mais que se esforce, nunca conseguirá desprender-se totalmente dos dados da sensibilidade. Sendo assim, os conceitos que forma sempre estarão de algum modo ligados aos dados sensíveis. Por isso, por mais abstratos que sejam, os seus conceitos jamais poderão ser aplicados a Deus, ao menos univocamente. Destarte, em si mesmo, Deus permanece para nós incognoscível. Isso não significa, no entanto, que não podemos chegar a saber que Ele existe. Com efeito, a natureza se nos demonstra uma harmonia admirável, a qual não se explicaria senão pela presença de um logos que a governa. Nem é válida a objeção que recorre ao acaso. Ainda quando supomos que tal ordem admirável tenha a sua origem no acaso, nada pode explicar que ela se mantenha senão pela presença de um governo inteligente. Desta sorte, atestamos pela ordem do mundo a existência de um Deus soberano que o governa e sustenta.

De Deus podemos saber apenas o que Ele não é. Antes de tudo, sabemos que Ele não é um corpo. Todo corpo implica matéria e onde há matéria há dissolução. Ora, a dissolução é incompatível com a divindade. Ademais, o próprio fato de a ordem do mundo atestar que Deus está presente em todas as coisas, evidencia a sua imaterialidade. De fato, a menos que suponhamos que a sua substância se fragmente nas coisas, o que não se coaduna com a sua natureza, forçoso é reconhecer que Ele está em todo lugar, enquanto sobrepuja a todo limite corporal.

Qual é, pois, a natureza divina? A Moisés Deus se revela como o ser supremo, o próprio ser. Ora, longe de este nome nos desnudar a natureza de Deus de forma positiva, ele a oculta ainda mais. Deus é o próprio ser e, como tal, não possui limites. Não é isto nem aquilo, mas simplesmente é, e possuindo limites, é infinito. Sendo infinito, é indefinível aos nossos espíritos finitos. Sendo infinito, é ainda imenso. Sendo imenso, excede a todo espaço. Excedendo a todo espaço, é imaterial e, por conseguinte, não está sujeito à corrupção. Outrossim, sendo o próprio ser, subtrai-se ao tempo, pois não foi nem será, mas simplesmente é a plenitude do ser. Em uma palavra, Deus, sendo o próprio ser, é infinito, imaterial, imenso e eterno.

BIBLIOGRAFIA

BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000.  pp. 80 a 86.




[1] BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000. p. 81.
[2] Idem. Op. Cit.
[3] Idem. Op. Cit: “Não possuímos um conhecimento distinto e positivo da essência divina, visto ser ela puramente espiritual.” 
[4] Idem. Op. Cit: “(...) por mais que nos concentremos sobre nós mesmos e por grande que seja o nosso desprendimento das coisas sensíveis, os nossos conceitos sempre incluirão algum elemento corporal; e isto nos proíbe o acesso às realidades puramente espirituais e à Divindade, a despeito dos laços de parentesco que a ela nos prendem.”
[5] Idem. Op. Cit.
[6] Idem. Op. Cit.
[7] Idem. Op. Cit. p. 82.
[8] Idem. Op. Cit: “Um simples olhar para a criação nos convencerá de que não é nela mesma, e sim em algo transcendente, que devemos buscar-lhe a razão de ser.”
[9] Idem. Op. Cit: “Suponhamos, com efeito, que as coisas sejam um produto do acaso. (...) Tal hipótese, porém, não suprime a questão de sabermos quem conserva e mantém aquela ordem.”
[10] Idem. Op. Cit.
[11] Idem. Op. Cit.
[12] Idem. Op. Cit. p. 83.
[13] Idem. Op. Cit.
[14] Idem. Op. Cit.
[15] Idem. Op. Cit.
[16] Idem. Op. Cit.
[17] Idem. Op. Cit.
[18] Idem. Op. Cit
[19] Idem. Op. Cit. p. 84.
[20] Idem. Op. Cit.
[21] Idem. Op. Cit.
[22] Idem. Op. Cit. 
[23] Idem. Op. Cit. p. 85.
[24] Idem. Op. Cit.

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