(toda a Igreja espera a palavra do Papa
sobre a família)
Por Pe. Luiz Carlos Lodi
A controvérsia sobre a
circuncisão
O Concílio de Jerusalém. |
Paulo e Barnabé estavam em
Antioquia da Síria quando chegaram alguns vindos da Judeia (conhecidos como
judaizantes) e disseram aos cristãos não judeus: “se não vos circuncidardes
segundo a norma de Moisés, não podereis salvar-vos” (At 15,1). Houve então uma
grande controvérsia, e todos resolveram dirigir-se a Jerusalém onde, na época,
estava Simão Pedro. Diante da discussão acesa da assembleia, Pedro levantou-se
e fez um discurso argumentando que não é pela circuncisão, mas “pela graça do
Senhor Jesus que nós [judeus] cremos ser salvos, da mesma forma como também
eles [os gentios]” (At 15,11). A Escritura prossegue dizendo: “Então, toda a
assembleia silenciou” (At 15,12). A palavra de Pedro, a quem Jesus deu o poder
e missão de confirmar seus irmãos na fé (cf. Lc 22,32) pôs fim a uma discussão
que parecia interminável.
A controvérsia sobre a
anticoncepção
Concílio Vaticano II. |
O Concílio Vaticano II
(1963-1965) estava trabalhando na elaboração da Constituição Gaudium et
spes (sobre a Igreja no mundo de hoje), quando surgiu entre os Bispos uma
discussão acesa sobre a licitude do uso de meios anticoncepcionais (em
particular, a pílula recém-inventada) para regular a procriação. O Papa Beato
Paulo VI resolveu então chamar a si a questão, tirando-a do debate conciliar.
Segundo nota de rodapé colocada na própria Gaudium et spes,
“algumas questões, que necessitam de investigações mais aprofundadas, foram por
ordem do Sumo Pontífice confiadas à Comissão para o estudo da população,
família e natalidade, para que, terminados os estudos, o próprio Papa decida”[1].
Corria o ano 1964 quando o Beato Paulo VI chamou a si o estudo da matéria. Em
dezembro de 1965, o Concílio terminou, sem que o assunto fosse resolvido. Em
fins de 1966, o relatório da Comissão foi posto nas mãos do Papa, mas seus
membros não haviam chegado a um consenso. Foi somente em 25 de julho de 1968
(quatro anos, portanto, após o Papa ter chamado a si a questão) que foi
publicada a belíssima encíclica Humanae vitae sobre a
regulação da procriação. Como era de se esperar, o documento não modificava a
doutrina moral da Igreja, mas reafirmava o que já havia dito Pio XI na
encíclica Casti conubii, ou seja, que “qualquer ato
matrimonial [quilibet matrimonii usus] deve permanecer aberto à
transmissão da vida”[2].
A anticoncepção foi, portanto, explicitamente condenada como meio de regular a
procriação.
No entanto, os quatro anos
de silêncio do Beato Paulo VI causaram um enorme dano ao mundo cristão.
Enquanto Pedro silenciava, falsos profetas alardeavam que a doutrina da Igreja
já havia mudado ou estava para mudar, e já davam, “antecipadamente”, permissão
para os casais fazerem uso da pílula anticoncepcional. Quando finalmente Pedro
falou por meio da Humanae vitae, a mentalidade contraceptiva
já se havia espalhado entre os cristãos. Houve uma rebelião por parte de
teólogos, bispos e até de episcopados inteiros contra o ensinamento perene do
Magistério. E até hoje sentimos os efeitos do prolongado silêncio de Pedro
sobre esse tema da moral conjugal.
A controvérsia sobre os
divorciados “recasados”
Em 2013, o Papa Francisco
resolveu convocar duas assembleias do Sínodo dos Bispos: uma extraordinária
entre 5 e 19 de outubro de 2014 e outra ordinária entre 4 e 25 de outubro de
2015. O objetivo era discutir Os desafios pastorais da família no
contexto da evangelização. Na verdade, trata-se de um Sínodo sobre a
família dividido em duas fases com a distância de um ano.
Sínodo dos Bispos sobre a Família - 2014. |
A Assembleia de 2014 foi
marcada por uma grande tensão. O relator geral do Sínodo, Cardeal Péter Erdö,
no dia 13/10/2014, leu um relatório intermediário (Relatio post
disceptationem) que continha várias ideias estranhas à doutrina da Igreja,
incluindo o acesso dos divorciados em segunda união (“recasados”) ao Sacramento
da Comunhão. Essa tese havia sido apresentada pelo Cardeal Walter Kasper no
consistório de cardeais realizado em fevereiro de 2014. No entanto, em setembro
de 2014, cinco cardeais[3] se uniram para publicar o livro Permanecendo
na verdade de Cristo: Matrimônio e comunhão na Igreja Católica[4]refutando
os argumentos de Kasper. Em 13/10/2014, quando a tese de Kasper apareceu no
relatório do Cardeal Péter Erdö, houve uma grande reação entre os Padres Sinodais.
Estes então se dividiram, por idioma, em dez círculos de trabalho e alteraram
profundamente o texto inicial. Acrescentaram três tópicos dogmáticos sobre “A
família no desígnio salvífico de Deus”, “A família nos documentos da Igreja” e
“A indissolubilidade do matrimônio e a alegria de viver juntos”. Ao falar da
misericórdia, não deixaram de falar da verdade, uma vez que ambas “convergem em
Cristo”. No documento final (Relatio synodi), publicado em 18/10/2014,
pôde-se ver o quanto o pensamento dos Padres Sinodais estava distante do
relatório inicial. Dos 62 parágrafos, três não obtiveram os dois terços dos
votos necessários para a sua aprovação: os de número 52 e 53 (sobre o acesso
dos divorciados “recasados” ao sacramento da Comunhão) e o de número 55 (sobre
a acolhida às pessoas com tendência homossexual). No entanto, curiosamente eles
não foram excluídos do texto. Isso significa que tais temas poderão vir à tona
novamente na Assembleia de outubro de 2015.
E o que disse o Papa
Francisco sobre tudo isso? Em seu discurso de conclusão do sínodo, em
18/10/2014, o Santo Padre advertiu sobre a tentação de quem, “em nome de uma
misericórdia enganadora, liga as feridas sem antes as curar e medicar” e a
tentação de “descuidar o ‘depositum fidei’ [depósito da fé], considerando-se
não guardiões mas proprietários e senhores”[5].
Entretanto, não fez nenhuma condenação explícita às teses kasperianas que
circularam durante o Sínodo. O silêncio de Pedro permitiu que os meios de
comunicação social passassem a divulgar que a Igreja havia mudado, ou estaria
mudando sua prática de não admissão dos divorciados “recasados” à Comunhão Eucarística.
Acerca disso, declarou o Cardeal Raymond Burke, na época prefeito do Supremo
Tribunal da Assinatura Apostólica, ao jornal eletrônico BuzzFeed News que “a
falta de clareza [do Papa] sobre o assunto certamente causou um grande dano”[6].
No entanto, não é preciso
um grande estudo para que o Santo Padre resolva a questão. Basta reafirmar o
ensinamento de São João Paulo II na sua Exortação Apostólica Familiaris
consortio, também esta fruto de um sínodo sobre a família celebrado em
1980. Após falar da misericórdia com que devem ser tratados os divorciados que
contraem nova união, a Exortação diz:
A
Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não
admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não
podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida
contradizem objetivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja,
significada e atuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo
pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fieis seriam
induzidos em erros e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a
indissolubilidade do matrimônio[7].
De fato, convidar tais
divorciados “recasados” à Comunhão eucarística seria, nas palavras de São
Paulo, torná-los “réus do Corpo e do Sangue do Senhor” (1Cor 11,27), seria
fazê-los “comer e beber a própria condenação” (1Cor 11,29). Eles que, segundo
as fortes palavras de Cristo, “cometem adultério” (Mc 10,11-12), de nenhum modo
serão beneficiados por receberem indignamente o sacramento do altar.
O Sínodo ordinário de
outubro de 2015 aproxima-se e, com ele, novas discussões. No entanto, o que a
Igreja espera, com grande expectativa, é a Exortação pós-sinodal que
será feita pelo Papa, recolhendo diversas propostas feitas pelos Cardeais em
ambas as assembleias. É possível que, em tal Exortação, Pedro venha a
presentear-nos com um belíssimo tratado sobre o matrimônio cristão, contendo
uma refutação explícita dos ensinamentos de Kasper. Mas é possível que, até lá,
por causa da demora, um enorme dano já tenha sido causado na mente dos fieis.
Anápolis, 10 de julho de 2015
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Presidente do Pró-Vida de Anápolis
[1] CONCÍLIO
VATICANO II, Gaudium et spes, n. 51, nota 14.
[2] PAULO VI, Humanae vitae, n. 11.
[3] Os cardeais
autores foram Gerhard Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé;
Raymond Leo Burke, na época Prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura
Apostólica; Walter Brandmüller, presidente emérito do Comitê Pontifício de
Ciências Históricas; Carlo Caffarra, Arcebispo de Bolonha e um dos teólogos
mais próximos a São João Paulo II em questões de moralidade e família; e
Velasio Di Paolis, Presidente emérito da Prefeitura para os Assuntos Econômicos
da Santa Sé.
[4] Lançado nos
EUA livro escrito por cinco cardeais sobre a doutrina da Igreja sobre o
matrimônio, ACI, 16 set. 2014, in:http://www.acidigital.com/noticias/cardeais-publicam-livro-em-defesa-da-doutrina-da-igreja-sobre-o-matrimonio-58216/
[5] http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2014/october/documents/papa-francesco_20141018_conclusione-sinodo-dei-vescovi.html
[6] http://www.buzzfeed.com/ellievhall/interview-with-cardinal-raymond-burke-the-full-transcript#.qabLorNoJ
[7] S. JOÃO PAULO
II. Familiaris consortio, 1981, n. 84.
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