Por Rodrigo R. Pedroso
No dia 1º de julho de 1949, a
Congregação do Santo Ofício, desde 1965 denominada Congregação para a Doutrina
da Fé, publicou o chamado Decreto contra
o Comunismo, constante de respostas a quatro questões sobre a matéria. Tais
respostas haviam sido confirmadas pelo papa da época, Pio XII, aos 30 de junho,
portanto, no dia anterior à publicação.
As congregações são órgãos da
Cúria romana que assessoram diretamente o papa no governo da Igreja católica.
Fazendo-se uma analogia, elas estão para a Igreja católica como os ministérios
estão para o governo federal brasileiro. Assim, a Congregação para a Doutrina
da Fé corresponderia ao ministério do papa para a defesa da fé, a Congregação
para o Culto Divino ao ministério para assuntos de liturgia, a Congregação para
as Causas dos Santos ao ministério das canonizações, e assim por diante.
Conforme o motu proprio “Praestantia
Scripturae”, de S. Pio X, todos os católicos «por dever de consciência estão
obrigados a submeter-se (...) às sentenças das sagradas congregações referentes
a questões doutrinais, aprovadas pelo Pontífice, e não podem evitar a nota de
desobediência e temeridade e, portanto, não estão livres de grave culpa
quantos, por palavra ou por escrito, impugnarem estas sentenças». Destarte, as
sentenças das congregações romanas em matéria de doutrina, quando aprovadas
pelo papa (como é o caso do Decreto contra o Comunismo), constituem magistério
autêntico da Igreja e, como tal, vinculam a consciência dos fiéis católicos.
Há
algum tempo, no entanto, foi-se formando uma celeuma em torno da interpretação
do Decreto contra o Comunismo de 1949, o que vem inquietando a consciência de
muitos fiéis. A celeuma é provocada particularmente por certos militantes das
redes sociais que usam o mencionado Decreto para dizer, com evidente exagero,
que todos aqueles que votam em partidos considerados de esquerda, ou apoiam
propostas de seus programas, estão “automaticamente excomungados”. O objetivo
desta comunicação é repor a questão em seus justos termos e expor, com
objetividade e evitando toda a polêmica desnecessária, os princípios e
critérios que levam a uma interpretação correta do Decreto de 1949.
Antes
de mais nada, cumpre transcrever o texto do Decreto contra o Comunismo, tal
como se encontra na tradução brasileira do Denzinger
(parágrafo 3865, pp. 850-1):
«Perguntas:
1. É permitido aderir ao partido comunista ou favorecê-lo de
alguma maneira?
2. É permitido publicar, divulgar ou ler livros, revistas, jornais
ou tratados que sustentam a doutrina e ação dos comunistas ou escrever neles?
3. Fiéis cristãos que consciente e livremente fizerem o que está
em 1 e 2, podem ser admitidos aos sacramentos?
4. Fiéis cristãos que professam a doutrina materialista e
anticristã do comunismo, e sobretudo os que a defendem ou propagam, incorrem
pelo próprio fato, como apóstatas da fé católica, na excomunhão reservada de
modo especial à Sé Apostólica?
Resp. (confirmada
pelo Sumo Pontífice 30/06): Quanto a 1: Não; o comunismo é de fato materialista
e anticristão; embora declarem às vezes em palavras que não atacam a religião,
os comunistas demonstram de fato, quer pela doutrina, quer pelas ações, que são
hostis a Deus, à verdadeira religião e à Igreja de Cristo.
Quanto a 2: Não,
pois são proibidos pelo próprio direito (cf. CIC, cân. 1.399).
Quanto a 3: Não,
segundo os princípios ordinários determinando a recusa dos sacramentos àqueles
que não têm a disposição requerida.
Quanto a 4: Sim.»
Este,
que vocês acabam de ler, é o texto integral da tradução brasileira do Decreto
contra o Comunismo, publicado pela Congregação do Santo Ofício (atual
Congregação para a Doutrina da Fé), no dia 1º de julho de 1949. Passemos agora
a comentá-lo.
A
primeira coisa que salta aos olhos quando lemos o texto do Decreto contra o
Comunismo é que ele não constitui um “decreto” no sentido em que usamos esta
palavra no direito secular (por exemplo, no direito constitucional ou
administrativo brasileiro). A ideia que geralmente temos de um decreto, no
direito secular, é a de um texto articulado de determinações imperativas, as
quais impõem novas normas, que revogam o direito anterior ou que a ele se
acrescentam. Ao contrário, o Decreto contra o Comunismo consta de respostas a
quatro questões formuladas sobre a interpretação da doutrina moral da Igreja e
do direito canônico então vigente. Destarte, a primeira constatação que podemos
fazer sobre o Decreto sobre o Comunismo é que ele visa a esclarecer quatro
possíveis dúvidas sobre pontos particulares da doutrina e da disciplina da
Igreja, não a estabelecer novas normas. Trata-se, portanto, de um decreto interpretativo, e não de um decreto constitutivo.
Uma
segunda conclusão que podemos inferir a partir da leitura do conjunto do
Decreto é que ele trata de excomunhão apenas na resposta à quarta pergunta.
Mais adiante discutiremos se é legítimo extrapolar o sentido desta última
resposta a outras situações não explícita e estritamente nela previstas.
Passemos
agora a um breve comentário de cada uma das respostas em particular. A primeira
resposta declara que não é lícito aderir ao partido comunista ou favorecê-lo de
uma forma qualquer, porquanto o comunismo é, de fato, materialista e
anticristão; além disso, embora possam dizer, às vezes, que não atacam a
religião, os fatos comprovam a hostilidade da doutrina e das ações dos
comunistas contra a religião católica.
Esta
resposta permaneceria válida para o nosso tempo? Evidentemente que sim: se uma
associação qualquer professa uma doutrina materialista (ou seja, uma doutrina
que nega a existência de Deus e a imortalidade da alma humana) e promove uma
ação anticristã, é uma incoerência que um fiel católico se inscreva nessa
associação ou a ajude de qualquer maneira. Aliás, o cânon 1.374 do vigente
Código de Direito Canônico, promulgado por S. João Paulo II em 1983, manda
punir com “justa pena” (mas não com excomunhão latae sententiae) “quem se inscreve em alguma associação que
maquina contra a Igreja”. Observe-se, entretanto, que tal norma vale não apenas
para os partidos que se autointitulam “comunistas”, como também para a
Maçonaria. Se é uma incoerência um fiel católico inscrever-se num partido
declaradamente comunista, é igualmente incoerente apoiar ou prestar favor à
Maçonaria, a pretexto de combater o comunismo.
A
segunda resposta declara que publicar, divulgar ou ler livros, revistas,
jornais ou tratados que sustentam a doutrina e a ação dos comunistas, e também
escrever neles, estava proibido pelo próprio direito, com citação ao cânon
1.399 do Código de Direito Canônico de 1917. Nesse ponto houve, parcialmente,
uma modificação. Por uma notificação da Congregação para a Doutrina da Fé, de
14 de junho de 1966, a proibição da leitura de textos contrários à fé ou à
moral deixou de ser acompanhada de sanções canônicas. Entretanto, como a
própria notificação fez questão de frisar, essa proibição, se deixou de ter
sanção canônica, permanece com seu valor moral. Efetivamente, por direito
divino temos o dever de conservar a nossa fé e evitar as ocasiões de pecado.
Por consequência, não devemos ler livros ou textos contrários à fé católica,
como o são os livros comunistas, se não temos o conhecimento necessário para
refutar seus erros e não se deixar levar por eles. Ocorre, por outro lado, que
há certos militantes anticomunistas que falam tanto do comunismo que acabam
sendo contraproducentes: terminam por fazer propaganda da leitura dos textos
comunistas, entre gente que talvez não esteja preparada para lê-los sem perigo.
Outra
modificação à disciplina exposta pela segunda resposta do Decreto contra o
Comunismo foi efetuada pelo cânon 831 do atual Código de Direito Canônico. Este
cânon permite que os leigos católicos possam escrever “nos jornais, opúsculos
ou revistas periódicas que costumam atacar abertamente a religião católica ou
os bons costumes” (e, portanto, nos jornais e revistas comunistas), desde que
haja “motivo justo e razoável” (por exemplo, se o jornal comunista abrir espaço
para um autor católico contestar o comunismo ou defender a fé). Entretanto,
segundo o mesmo cânon, os clérigos e religiosos só podem fazer isso se primeiro
obtiverem licença do bispo diocesano ou do vigário geral ou episcopal da
diocese.
A
terceira resposta declara que não podem ser admitidos aos sacramentos os fiéis
cristãos que: (a) adiram ao partido comunista ou o favoreçam de alguma forma;
e/ou (b) publiquem, divulguem ou leiam livros, revistas, jornais ou tratados
que sustentam a doutrina e ação dos comunistas, ou escrevam neles. A resposta
se justifica pelos princípios ordinários que determinam a recusa aos
sacramentos àqueles que não têm a disposição requerida.
Observem
que essa resposta não fala em excomunhão,
mas na falta das disposições requeridas para a recepção dos sacramentos. São
conceitos distintos, que não podem nem devem ser confundidos. Excomunhão é uma
pena eclesiástica, imposta em razão do cometimento de um delito (crime)
canônico. As penas eclesiásticas, entre elas a excomunhão, pertencem ao objeto
do direito penal canônico. As disposições para a recepção dos sacramentos,
ainda que possam receber tratamento canônico, pertencem primariamente ao objeto
da teologia moral.
Todos
os sacramentos são realidades sobrenaturais que requerem, da parte daqueles que
os recebem, determinadas disposições para que essa recepção seja válida, lícita
e frutuosa. Assim, por exemplo, para aqueles que já chegaram à idade da razão,
é uma disposição necessária para a recepção válida dos sacramentos a intenção
de recebê-los. Se um adulto é batizado à força, esse batismo não é válido pela
falta de uma disposição necessária para a sua validade: a intenção do sujeito.
Outras disposições são necessárias para a recepção lícita dos sacramentos. Neste caso, os sacramentos são válidos, mas
são recebidos ilicitamente. A recepção ilícita dos sacramentos constitui pecado
de sacrilégio, pois trata-se da profanação de uma coisa sagrada.
Entre
as disposições necessárias para a recepção lícita dos sacramentos inclui-se,
para aqueles que já alcançaram a idade da razão, a chamada atrição sobrenatural, que compreende a vontade de deixar o pecado e
mudar de vida. Aliás, sem atrição sobrenatural, a absolvição sacramental não é sequer
válida. Em relação aos chamados sacramentos de vivos (confirmação, Eucaristia,
unção dos enfermos, ordem e matrimônio), o estado
de graça (isto é, estar na amizade de Deus, sem pecado mortal na
consciência) é uma disposição para recebê-los licitamente.
Como
dissemos anteriormente, a recepção ilícita e indigna dos sacramentos constitui
pecado de sacrilégio. E é dever dos que administram os sacramentos evitar o
sacrilégio. Por isso, um sacerdote pode recusar a absolvição se nota com
certeza que aquele que se confessa não está arrependido. Igualmente por isso o
cânon 915 do Código de Direito Canônico determina que os sacerdotes recusem a
sagrada comunhão, não apenas aos
excomungados e interditados, mas também aos «que obstinadamente persistem
no pecado grave manifesto», isto é, os chamados pecadores públicos. Os sacramentos são realidades sobrenaturais,
são coisas sagradas e, por isso, não podem ser administrados aos que vivem
publicamente numa situação de pecado grave, pelo menos enquanto não deem
mostras igualmente públicas de arrependimento e conversão.
É
pela mesma razão que os que publicamente vivem como marido e mulher sem estar
casados na Igreja não podem receber os sacramentos. Não é porque estejam
excomungados, mas porque é de conhecimento público que lhes falta uma
disposição necessária para recebê-los licitamente. De igual sorte, se é de
público conhecimento que alguém se inscreveu num partido declaradamente
comunista ou lhe prestou qualquer favor, ele também não pode ser admitido aos
sacramentos. Quanto àqueles que publicam, divulgam ou lêem livros, revistas,
jornais ou tratados que sustentam a doutrina e ação dos comunistas, ou que
escrevem neles, devem-se observar as modificações no direito canônico que
apontamos mais acima, sempre dando ao próximo o benefício da dúvida e evitando
a injustiça do julgamento temerário.
Por
outro lado, não se pode esquecer que a filiação a um partido declaradamente
comunista não é o único pecado grave que se precisa abandonar para alguém ser
admitido aos sacramentos. Só para ficar num único exemplo, também exclui da
recepção dos sacramentos a prática da astrologia, isto é, a adivinhação de
coisas futuras ou ocultas mediante a observação do lugar e movimento dos
astros. Como claramente ensina o Catecismo da Igreja Católica, promulgado por
S. João Paulo II: «A consulta aos
horóscopos, a astrologia, a quiromancia, a interpretação de presságios e da
sorte, os fenômenos de visão, o recurso a médiuns escondem uma vontade de poder
sobre o tempo, sobre a história e finalmente sobre os homens, ao mesmo tempo que
um desejo de ganhar para si os poderes ocultos. Estas práticas contradizem a
honra e o respeito que, unidos ao amoroso temor, devemos exclusivamente a Deus»
(n. 2116). Também o Primeiro Concílio de Toledo, que condenou as heresias dos
gnósticos priscilianos, definiu o seguinte: «Si quis astrologiae vel mathesiae aestimat esse credendum, anathema sit»,
que podemos traduzir assim: “Se alguém julga que se deve crer na astrologia ou
na numerologia, seja anátema!”
Passemos
agora ao comentário da quarta e última resposta do Decreto contra o Comunismo.
Ela trata da excomunhão daqueles que professam a doutrina materialista e
anticristã do comunismo. Como foi dito anteriormente, temos de considerar que o
Decreto em questão é interpretativo e não constitutivo. Ele não visa a
instituir novas normas, mas a esclarecer possíveis dúvidas sobre a doutrina da
Igreja e a aplicação do direito canônico vigente na época. Assim sendo, a
quarta resposta trata da possível inclusão dos comunistas no delito canônico de
apostasia.
Isso
torna-se evidente pelo emprego das palavras «como apóstatas da fé católica», «tamquam apostatae a fide catholica», no texto original em latim. Os
comunistas, segundo o Decreto, não incorrem em excomunhão na qualidade de
comunistas, mas na qualidade de apóstatas da fé. E em que medida incorrem na
qualidade de apóstatas da fé? Na medida em que «professam a doutrina
materialista e anticristã do comunismo». A tradução brasileira do Denzinger, inclusive, é menos precisa
que o original latino, que fala em «communistarum
doctrinam materialisticam et antichristianam» (doutrina materialista e
anticristã “dos comunistas”, e não do comunismo).
Para
se compreender esse trecho é preciso primeiro entender o que seja um “apóstata
da fé”. Conforme o cânon 751 do Código de Direito Canônico vigente, «apostasia
é o repúdio total da fé cristã». Enquanto a heresia importa a negação de uma
verdade da fé em particular (por exemplo, a presença real do Cristo na
Eucaristia), a apostasia se caracteriza por uma rejeição de todas as verdades
da fé em seu conjunto. Herege é o que escolhe entre as verdades da fé as que
ele quer seguir; o apóstata é o que rejeita a todas. Ora, se alguém professa
uma doutrina materialista (materialismo é a negação da existência de Deus e da
imortalidade da alma) e anticristã (o anticristianismo, por definição, é o
combate contra a fé cristã), evidentemente ele é um apóstata da fé católica, ou
seja, alguém que rejeitou todas as verdades da fé em seu conjunto.
Portanto, para incorrer na excomunhão mencionada
no Decreto contra o Comunismo, não basta defender uma reforma política,
por mais comunista que ela seja ou pareça ser. Não basta apoiar ou votar num
partido declaradamente comunista. Não basta inscrever-se entre os filiados de
um partido declaradamente comunista. Não basta nem mesmo autodeclarar-se
publicamente comunista, em documento registrado em cartório. Para incorrer na
excomunhão mencionada no Decreto contra o Comunismo é preciso professar «communistarum doctrinam materialisticam et
antichristianam», a doutrina materialista e anticristã dos comunistas – ou
seja, é preciso professar o materialismo dialético, negando a existência de
Deus. Sem essa adesão ao materialismo, não há a excomunhão referida no Decreto.
Esta,
que acabamos de expor aqui, é exatamente a mesma interpretação que deram os
canonistas e teólogos moralistas da época em que o Decreto contra o Comunismo
foi publicado. Por exemplo, a 16ª edição, publicada em 1950, da Theologia moralis dos famosos padres
redentoristas Aertnys e Damen, em nota à página 758 do tomo II,
fazendo referência ao Decreto do Santo Ofício contra o Comunismo, diz o
seguinte: «Non cadunt sub hac
excommunicatione simplices gregarii partium communistarum; non enim constituunt
sectam apostaticam, vel haereticam, vel atheisticam, sed politicam» (“Não
caem sob esta excomunhão os simples filiados aos partidos comunistas; estes, de
fato, não constituem seita apostática, ou herética, ou ateísta, mas política”).
Ou seja, de acordo com Aertnys e Damen, aqueles que professam a doutrina
materialista do comunismo incorrem em excomunhão por apostasia da fé, porém o
mesmo não ocorre com os simples filiados do partido comunista, pois esse
partido é uma associação de caráter antes político que religioso.
Também
o padre capuchinho Teodoro da Torre del
Greco, doutor em direito canônico, em sua Teologia Moral, publicada no Brasil em 1959, esposa o mesmo
parecer: «A simples inscrição no partido
comunista (especialmente pelo fato de melhor reivindicar os direitos dos
operários) não constitui, por si, nenhuma apostasia, nem acarreta a excomunhão
reservada “speciali modo”. Com isto não se afirma não seja a inscrição ao
comunismo proibida pela Igreja; ao contrário, os católicos estão obrigados não
só a não colaborarem em nenhum campo com o comunismo, mas a combatê-lo» (n.
115, pp. 130-1). Na página 808 da mesma obra, o canonista capuchinho explicita
novamente o mesmo entendimento: «Aqueles
que somente se inscrevem e apoiam o comunismo ou suas organizações (Juventude
Comunista, União das Mulheres, Associação Pioneira etc.) pecam, mas não serão,
por isto, considerados apóstatas, nem incorrem nesta censura».
Aliás,
aos 27 de julho de 1949, L’Osservatore
Romano, o jornal oficioso da Santa Sé, publicou um extenso editorial comentando
o Decreto contra o Comunismo. Neste editorial, deu-se à excomunhão referida na
quarta resposta do Decreto a mesma interpretação exposta agora nesta
comunicação: «Incorrem “ipso facto” na
excomunhão reservada de modo especial à Santa Sé os fiéis que professam a
doutrina materialista e anticristã dos comunistas e sobretudo os que a defendem
ou a propagam. O materialismo nega a existência de um Deus pessoal, a
espiritualidade da alma, a liberdade da vontade e qualquer recompensa ou
castigo depois desta vida. Quem professa essa doutrina, pelo próprio fato de professá-la,
se destaca da comunidade e da fé cristã. É, portanto, um apóstata (cânon 1.325,
§ 2, do Código de Direito Canônico de 1917). Ora, o apóstata incorre na
excomunhão “ipso facto” quando manifesta exteriormente essa sua apostasia, como
faz aquele que professa o materialismo e, “a fortiori”, aquele que o defende ou
o propaga. A resposta é claríssima. Por isso o Decreto não dá para ela nenhuma
especial explicação. De outra parte, vê-se facilmente porque dizemos que esta
[quarta] resposta é muito menos importante que a primeira. Não poucos católicos
sustentam o comunismo com o seu sufrágio nas eleições, com seu dinheiro dado à
imprensa comunista, com seu apoio nas discussões sociais ou políticas, sem
querer com isso aderir à doutrina materialista e anticristã do comunismo. Por isso, estes não caem sob a excomunhão»
(grifo nosso).
E
por que essa interpretação é a correta? Porque a excomunhão é uma pena
eclesiástica e o cânon 18 do Código de Direito Canônico vigente determina o
seguinte: «As leis que estabelecem pena
ou limitam o livre exercício dos direitos ou contêm exceção à lei devem ser
interpretadas estritamente». Esta regra de interpretação, embora esteja no
Código de 1983, não é nova no direito canônico da Igreja. Ela procede do direito
natural e igualmente constava do Corpus
Juris Canonici da Idade Média. Trata-se da 15ª entre as regras do direito (regulae juris), postas no último título
do Livro Sexto das Decretais, promulgado pelo papa Bonifácio IX: «Odia restringi et favores convenit ampliari»
(“É preciso restringir tudo o que é odioso e ampliar tudo o que é favorável”).
Conforme um intérprete do direito canônico anterior à codificação de 1917:
«Todas as leis que concedem uma graça ou uma vantagem ou que dão mais liberdade
para as convenções, para os contratos, etc., chamam-se leis favoráveis; pelo
contrário, aquelas que restringem a liberdade ou que pronunciam penas, são
consideradas leis odiosas. Portanto, se numa lei desta espécie se encontra
alguma obscuridade, é preciso apegar-se à interpretação que torna esta lei
menos odiosa. (...) O mesmo deve dizer-se a respeito das leis penais, que se
devem restringir na sua significação mais estrita» (Msr. Anselmo Tilloy, Tractado Theorico e Pratico de Direito Canonico, tomo I, n. 319, editado
em Viseu, Portugal, no ano de 1899, com aprovação eclesiástica da Santa Sé).
Como
ao delito canônico de apostasia continua a ser cominada a pena eclesiástica de
excomunhão latae sententiae pelo
cânon 1.364 do Código de Direito Canônico vigente, promulgado pelo papa S. João
Paulo II em 1983, a excomunhão referida pela quarta resposta do Decreto contra
o Comunismo continua perfeitamente válida. Entretanto, como dissemos, tal
excomunhão atinge apenas aos que professam a doutrina materialista e anticristã
dos comunistas, ou seja, o materialismo dialético, negando a existência de Deus
e do espírito. O que implica a excomunhão não é fato de alguém se declarar
comunista (menos ainda o de ser declarado comunista pelos outros), mas a adesão
ao materialismo e a negação da existência de Deus. Nesse sentido, o fiel
católico que adere ao ateísmo de Ayn Rand ou Ludwig von Mises, incorre na
mesmíssima excomunhão prevista para os comunistas que professam o materialismo
dialético, «tamquam apostatae a fide
catholica» (como apóstatas da fé católica).
Embora
hoje como na época do Decreto contra o Comunismo o delito de apostasia acarreta
a pena de excomunhão latae sententiae,
um detalhe necessita ser esclarecido. O Decreto fala textualmente em «excomunhão reservada de modo especial à Sé
Apostólica». No direito penal canônico vigente na época da publicação do
Decreto, a apostasia era punida com excomunhão latae sententiae reservada de modo especial à Santa Sé. Isto
significava que essa excomunhão apenas poderia ser levantada (absolvida) pelo
papa ou por um sacerdote que obtivesse do papa a faculdade especial de
levantá-las. No Código de Direito Canônico de 1983, a excomunhão por delito de
apostasia deixou de ser reservada, de modo que hoje pode ser desligada por
qualquer sacerdote habilitado para remitir penas eclesiásticas.
Em
face do exposto, nossa conclusão é que a excomunhão referida pela quarta
resposta do Decreto contra o Comunismo, publicado pela Congregação do Santo
Ofício no dia 1º de julho de 1949, ainda permanece válida, porquanto o cânon
1.364 do Código de Direito Canônico vigente impõe que o delito canônico de
apostasia seja punido com excomunhão latae
sententiae. Entretanto, tal excomunhão não atinge indiscriminadamente os
que estejam inscritos em partidos comunistas ou que sejam seus eleitores, mas
apenas aqueles que professarem, defenderem ou propagarem o materialismo
dialético, negando a existência de Deus e a imortalidade da alma.
Sed contra (em contrário). Santo Tomás
de Aquino, em seu método dialético próprio da escolástica, ao abordar
determinada questão, não se contentava em demonstrar a sua tese, mas também se
dava ao trabalho de refutar explicitamente as objeções contrárias. Seguindo com
humildade o seu exemplo, examinemos agora a tese diretamente contrária à que
demonstramos e defendemos: a tese de que o Decreto contra o Comunismo não foi
simplesmente interpretativo, mas introduziu uma excomunhão especial contra os
comunistas, que atinge não apenas aqueles que se declaram formalmente como
tais, como também aqueles que apoiam ou votam em partidos políticos de
esquerda, declarem-se estes comunistas ou não. Ora, se tal interpretação do
Decreto for a correta, então forçosamente se deverá concluir que a referida
excomunhão deixou de existir, pois o cânon 6 do atual Código de Direito
Canônico expressamente revogou «quaisquer leis penais, universais ou
particulares, dadas pela Sé Apostólica, a não ser que sejam acolhidas neste
Código».
Por
conseguinte, ou a excomunhão prevista na quarta resposta do Decreto contra o
Comunismo é que corresponde ao delito canônico de apostasia (e, nesse caso, ela
apenas atinge os que professam o materialismo dialético, e não todos os que apoiam
o comunismo), ou então essa excomunhão teria maior extensão, mas foi revogada
pela entrada em vigor do Código de Direito Canônico de 1983. Tertium non datur (não há terceira
opção).
Rodrigo R. Pedroso é advogado, mestrando em filosofia, membro da União dos Juristas
Católicos de São Paulo (UJUCASP) e procurador da Universidade de São Paulo (USP).
Caro Pedroso:
ResponderExcluirEu e meu marido Fabio Ulanin (casamos, com a graça de Nosso Senhor) lemos seu texto, o consideramos de vital importância, e ele está devidamente linkado a um post meu no Facebook. Obrigada!