quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Balanço de um recado alto e nítido.


Por Denilson Cardoso de Araújo

Saúdo a vocês, de ambos os lados, que conseguiram emergir desta eleição – especialmente do segundo turno - sem se emporcalhar. Porque difícil foi, ficar imune à abjeta artilharia inaugurada pela campanha oficial e depois respondida, em monta menor, mas também de grosso calibre, pela campanha da oposição. Se você conseguiu não compartilhar, de viva voz ou pela internet, o ataque, a fofoca, a insanidade e as mentiras; se conseguiu tolerar e compreender o amigo que estava em febre eleitoral; se conseguiu se conter quando jovens fazendo um digamos, ébrio maio de 1968, cuspiram sobre você impropérios, seja de comunista barato ou de neoliberal nojento, você é um vitorioso.

A você, que perdeu a eleição, mas que perdeu por tão pouco, trago um recado. Não desanime. Os sensatos que olharam o mapa de resultados não desanimaram. Após o jogo sujo e pesado que a candidatura oficial aplicou nos primeiros 10 dias da campanha do 2º turno - bisando o que fizera no 1º turno contra Marina - foi uma vitória moral Aécio chegar em situação de empate. Um parêntese para quem quer, indevidamente, igualar o jogo sujo no placar. Futebol. Numa disputa de bola, incomodado com a marcação cerrada, mas leal, um atacante uruguaio mete um soco na cara do zagueiro, que cai, surpreso e de nariz quebrado. O agredido se levanta e empurra o agressor com as duas mãos no peito. Faz-se a confusão, tomo mundo se mete, vem a turma do deixa disso, o juiz aparece e resolve. Os dois pro chuveiro. Na justiça desportiva, não sei, mas se o caso fosse a julgamento na justiça comum, com as câmeras demonstrando o agravo inicial, haveria punições a ambos, é óbvio, mas o boxeador improvisado não teria o benefício da atenuante que favoreceria o zagueiro, que apenas revidou e, em intensidade menor. Assim se deu esta história. E ponto.

O recado foi alto e nítido. Para quem, como o PT, que se acostumou a ganhar eleições presidenciais por 15 a 20 milhões de votos, vencê-las por apenas 3 milhões de sufrágios é recado retumbante. O país está, sim, dividido. Existe uma inescapável exaustão com as práticas petistas que não mais poderá ser desconsiderada. O PT perdeu certa carta branca, de que se valia abusadamente.

Lula sai muito chamuscado deste pleito, pois para alcançar a vitória de Dilma, teve que, pessoalmente, descer o nível como nunca antes fizera, assumindo - em boca própria - tanto insultos pessoais como o jogo rasteiro. É claro que isso o indispõe com parcela ainda maior do eleitorado que podia não votar em Dilma, mas guardava reservas de admiração pela biografia do líder petista.

Mas também a você, que ganhou por tão pouco, e essa vitória tão cara, preciso dizer. Seja comedido na comemoração. Hoje presenciei provocações clubísticas, como se estivéssemos num dia seguinte à final do campeonato. Menos. Os prudentes não ficaram eufóricos. Veja porque.

Como óbitos precoces e súbitos que, bestificando os vivos, por vezes, beatificam vidas tortas, vitórias costumam enterrar as sujeiras da campanha debaixo dos tapetes da celebração. Mas os gols de Dilma, ao final, foram de mão, em impedimento, e com falta no goleiro. É uma vitória feia. Até hoje, 25 anos depois, lembramos de como Collor de Mello foi inescrupuloso em sua vitória de 1989. Não tenham dúvidas de que a inescrupulosa postura ditada pelo marqueteiro da campanha de Dilma - mas acatada pela direção partidária - atravessará décadas na memória dos eleitores. Não por acaso, petistas de bom calibre, como Arlindo Chinaglia em entrevista na TV Bandeirantes, deixaram claro que discordaram desse violento tom da campanha. Tendo presidido a Câmara, Chinaglia sabe como a memória negativa da campanha dificulta as negociações, por contaminar as relações partidárias e a percepção popular sobre qualquer ato governamental daqui para a frente. Assim foi com Collor, assim com Dilma será. E isso é mais grave na medida em que a vitória lhe concede, não outros quatro anos de mandato, mas sim uma maratona de obstáculos dentro de um pesado espólio que é o cipoal de equívocos, malfeitos e contradições de difícil administração acumulados.

Sem falar do desenrolar dos escândalos que, a experiência ensina, farão muito militante aguerrido se arrepender de certas veemências, fiquemos, por exemplo, com a economia. Se estabilização econômica não houvesse, inexistiria Bolsa Família. Não é imaginável Bolsa Família em tempos de inflação de 900%. Porque, para que tivesse valor, o programa precisaria de reajustes frequentes. E, por mais que nos desconforte afirmar, a indexação, ficou provado, alimenta a inflação. Assim, tendo que controlar a inflação e manter os programas sociais, ainda tendo que fazê-lo sem indexação, não é de resolução fácil a equação que cai estrondosamente sobre as pranchetas do governo que segue em palácio.

Não podemos nos esquecer que o PT, quando venceu a primeira vez, após assinar a Carta aos Brasileiros, foi governar com o projeto econômico do PSDB. Henrique Meirelles, seu presidente de Banco Central lá foi colhido. Por isso, inclusive, quem reclama da oposição meio frouxa que o PSDB teria feito em todos esses anos, se esquece de que era difícil mesmo fazer oposição a um governo que rasgara seu próprio programa para governar com as propostas alheias. Como fazer oposição a si mesmo? Só faltavam trocar beijos os economistas do PSDB e o Ministro Palocci.

Essa situação só muda quando o PT extrapola, em campo muito caro ao seu eleitorado histórico. O campo da moralidade pública, da ética na política, em que o PT fora campeão, em campanhas históricas que impactaram o país. Flagrado no ilícito, acabou cometendo mais ilícitos e insanidades para tentar justificar o injustificável. É bíblico. Um abismo chama outro abismo. E então, os erros se sucederam, e a oposição se fez. O próprio PSDB, com seu histórico pouco recomendável, engrossou a voz. E daí desceu-se àquele nível de discurso em que a assertiva, implícita e absurda, era: “nossos bandidos são melhores do que os de vocês”. Porque são de esquerda, afinal.

Disse no primeiro  turno que uma derrota faria muito bem à esquerda, para que se purgasse da arrogância e dos excessos, para que se livrasse dessa triste opção de achar que o banditismo de esquerda é perdoável porque é Robin-hood. Não é. Nem perdoável, nem Robin-hood. O modelo atual tira de quem tem algo (a classe média) para dar a pobres sim, mas também, e muito, a ricos. Afinal, a dívida externa foi integralmente paga - sem a necessária auditoria prometida por décadas; as privatizações tão acusadas de ilegais e imorais não foram revistas como prometido; os bancos seguem bem satisfeitos com os seus vastos lucros e o latifúndio permanece intocado, sob a conivência do MST. O discurso de esquerda foi reduzido - à margem a ressalva que sempre faço ao essencial Prouni – a um programa assistencial. A derrota poderia recolocar as coisas na perspectiva correta, mas como veio uma vitória tão apertada, com gosto de derrota moral, que não sejam desperdiçadas suas lições.


À parte os “episódios” Minas Gerais e Rio de Janeiro, o Nordeste foi decisivo. E é compreensível. Quem mais depende de favores governamentais, mais refém se torna. O Bolsa Família gritou alto. Ficou desenhado o mesmo arco de votos que, saindo do trópico para se escarrapachar na linha do Equador, alimentava as eleições da Arena da Ditadura. Vi ontem na Internet uma frase pesada, mas que ilustra bem tudo o que vem acontecendo. Diz Orson Scott Card, escritor de ficção científica americano: “Se os porcos pudessem votar, o homem com o balde seria eleito sempre, não importa quantos porcos ele já tenha abatido no recinto ao lado”.

A frase é forte porque, divulgada neste momento, pode fazer os mal intencionados e os obtusos imaginarem que se compara o eleitorado de Dilma a porcos. Não é isso. Se preferir, substitua porcos por suaves lebres, doces dálmatas ou diáfanas andorinhas. A figura central dessa construção verbal é o concreto e dominante “homem do balde”. O PT, hoje, para grande parte do seu eleitorado, é “o homem do balde”.

A derradeira coisa a comentar é que é uma grande pena que os maus modos dessa campanha tenham acontecido. Porque essa eleição na qual eu sequer pretendia votar (vide minha crônica de julho “Entra aí, qualquer um!”) acabou, com a morte de Eduardo Campos e a entrada de Marina no jogo, ganhando a dramaticidade que me pôs (e a tantos) de voto engatilhado. Isso o Brasil deve a Marina. A expectativa de sua possível vitória, que pôs o PT em desespero e, infelizmente, no rumo da calúnia e da agressão, deram o tempero capaz de trazer de volta alguma juventude às ruas, pelos dois lados. Rejuvenesceram-se ambos os lados. O engraçado nisso tudo é que nem sempre os jovens vieram pelos motivos corretos. Muitos se engajaram porque achavam ser esquerda o PT e outros achavam ser, o Aécio, um coroamento do carnaval cívico e confuso de junho 2013 que tinha uma “Mudança” imprecisa como enredo. Não é verdade, nem uma coisa nem outra. Ou, quando menos, são um décimo da verdade, porque nem o PT é toda essa esquerda pretendida (não fosse assim, correntes internas não estariam clamando, desde junho passado, para que o PT vire à esquerda, para trilhos que abandonou) e nem Aécio seria mudança assim tão profunda.

Mas que bom seria que os jovens abandonassem o clima rasteiro do discurso twitter para aprenderem a arte do encontro e do debate que formam consciência efetiva. Chavão não é discurso, e palavra de ordem não é fundamento. Muita gente foi às ruas, pobre de armas. Quando se tentava entabular um diálogo, vinham coisas como. Votei no Tarcisio porque ele foi bem no debate; no Eduardo Jorge, que chutava o balde; na Luciana Genro que é mais combativa; no PT, que pelo menos dá comida os pobres; não votei em ninguém porque todo mundo é ladrão.

Dizer, como disse a Dilma, e como tantos repetiram, que o mensalão do PSDB mineiro não fez um preso, para assim se defender do Mensalão petista que pôs gente na cadeia é, por exemplo, um dos “argumentos” mais expostos e mais pobres, porque não significa absolutamente nada. O que quis a Dilma dizer com o discurso do “todos soltos”? Que foi ela quem prendeu Zé Dirceu? O que quis dizer quando “argumenta” não haver presos no mensalão de Minas? Que cabia ao PSDB garrotear seus meliantes? Ora, quem investiga, julga e prende não são os partidos, nem é a Dilma ou o Aécio. A Polícia está aí, o Ministério Público, o Judiciário. Quando se “argumenta” mensalão contra mensalão, para usar a liberdade de uns (ainda não julgados) contra a condenação de outros (já julgados e presos), está se querendo insinuar que existe o quê? Um complô institucional pró PSDB, e do qual participam todos os policiais envolvidos, os promotores e os juízes. Ora, convenhamos!


Bom, acho que é hora de buscarmos a paz, a concórdia, a paciência. Porque tempos duros virão. Crises esperam. Os que tiveram nessa eleição sua primeira luta, por favor, repensem certos métodos, e poupem energias. Novas lutas virão. Aprendam que política não é guerra de extermínio. A desqualificação do outro, a humilhação do adversário, seu aniquilamento, não interessam ao bom combatente. Na Arte da Guerra, Sun Tzu ensinava a deixar sempre na composição do cerco, uma bem calculada rota de fuga para o inimigo. Porque a generosidade é estratégica. Nunca se sabe quando você pode precisar do adversário de hoje. Mas uma coisa eu sei. Você vai precisar daquela namorada com quem discutiu por causa da eleição. Daquele amigo. Do pai. Do irmão. Do colega de trabalho. Vá lá. Faça as pazes. Respeite. Abrace.

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