sábado, 10 de janeiro de 2015

Ponderando sobre a Liturgia.


Por D. Henrique Soares.

A liturgia é para nosso alimento, alento e transformação espiritual: ela nos cristifica, isto é, é obra do próprio Cristo que, na potência do Espírito, nos dá Sua própria Vida, aquela que Ele possui em plenitude na Sua humanidade glorificada no Céu.


Participar da liturgia é participar das coisas do Céu, é entrar em comunhão com a própria Vida plena e glorificada do Cristo nosso Senhor.

A liturgia não é feita produzida por nós, não é obra nossa!

Ela é instituição do próprio Senhor.

Para se ter uma ideia, basta pensar em Moisés, que vai ao faraó e lhe diz: “Assim fala o Senhor: deixa o Meu povo partir para fazer-Me uma liturgia no deserto”. E, mais adiante, explica ao faraó que somente lá, no deserto, o Senhor dirá precisamente que tipo de culto e que coisas o povo Lhe oferte.

Isto tem a ação litúrgica de específico e encantador: não entramos nela para fazer do nosso modo, mas do modo de Deus; não entramos nela para nos satisfazer, mas para satisfazer a vontade de Deus.

Por isso digo tantas vezes que o espaço litúrgico não é primeiramente antropológico, mas teológico: a liturgia é espaço privilegiado para a manifestação e atuação salvífica de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor.

Nela, a obra salvífica de Cristo é perenemente continuada na Igreja.

Dito de modo ainda mais direto: a Liturgia não é primeiramente ação da Igreja que louva a Deus - é isto também, é isto sim de modo irrenunciável -, mas é primeiramente ação do próprio Deus Triuno que vem a nós com a Sua salvação, dando-nos, assim, o que oferecer a Ele!

O problema é que entrou em certos ambientes da Igreja uma concepção errada de liturgia, totalmente alheia ao sentido da genuína tradição cristã: a liturgia como algo que nós fazemos, do nosso modo, a nosso gosto, para exprimir nossos próprios sentimentos.

Numa concepção dessas, o homem, com seus sentimentos, gostos e iniciativas, é o centro e Deus fica de lado!

Trata-se, então, de uma simples busca de nós mesmos, produzida por nós mesmos; uma ilusão, pois aí só encontramos nós e os sentimentos que provocamos. É o triste curto-circuito: faz-se tudo aquilo (coreografias, palmas, trejeitos, barulho, baterias infernais, sorrisinhos do celebrante, comentários e cânticos intimistas, invenções impertinentes e despropositadas...) para que as pessoas sintam, liguem-se, “participem”... Mas, tudo isto somente liga a assembleia a si mesma. Não passa de uma exaltação subjetiva e sentimental!

Aí não se abre de fato para o Silêncio de Deus, para Aquele que vem nos surpreender com Sua glória e Sua ação silenciosa, profunda, consistente e transformadora.

A assembleia já não celebra com a Igreja de todos os tempos e de todos os lugares; muito menos com a Igreja celeste!

Num ambiente assim, a ação litúrgica já não é expressão do mistério salvífico do Pai pelo Filho no Espírito, mas festinha da assembleia barulhenta, oca e autorreferencial.

O sentido da liturgia é um outro: é um culto prestado a Deus porque Ele é Deus!

O seu centro, o seu polo unificador é Deus!

A liturgia é algo devido a Deus e instituído pelo próprio Deus!

Quando alguém participa de uma liturgia celebrada como a Igreja determina e sempre celebrou, se reorienta, se reencontra, toma consciência de sua própria verdade: sou pequeno, dependente de Deus e profundamente amado por Ele: Nele está minha vida, meu destino, minha verdade, minha paz.

Nada é mais libertador que isso; nada mais real, nada mais capaz de nos amadurecer, nada mais didático para que o homem aprenda toda a sua pequenez, toda a sua grandeza e todo o sentido da sua existência!

Vê-se a diferença entre essas duas atitudes ante a realidade litúrgica: Na visão que se está difundindo, criamos uma sensação, uma ilusão. É algo parecido com a sensação de bem-estar que se pode sentir diante de uma paisagem bonita, num bloco de carnaval, num show, num momento sublime, numa noite com a pessoa amada...

O resultado final não é o crescimento na vida com Deus nem o amadurecimento profundo de quem tem consciência serena e clara do que é e do sentido da própria existência...

Têm-se momentos gostosos, "celebrativos", como gracinhas feitas numa creche para animar e entreter a meninada infantil...

Na perspectiva que a Igreja sempre teve e ensinou, não!

Na ação litúrgica, estamos diante da Verdade que é Deus; verdade que não produzimos nem inventamos, mas vem a nós como dom, como oferta, como graça, como surpresa, como novidade e enche o nosso coração!

Devemos procurá-la, esta Verdade? Certamente sim: "Fizeste-nos para Ti, Senhor, e nosso coração andará inquieto enquanto não descansar em Ti!"

Mas para isto é indispensável a capacidade de silêncio que acolhe, de escuta que procura, de abrir os olhos do coração para a beleza de Deus. A liturgia nos dá isto!

Alguém dirá, certamente: Mas, o povo não compreende estas coisas sofisticadas, tudo isto é muito distante da nossa realidade!

Atenção: a Liturgia é como um bom vinho! Ninguém, naturalmente, aprecia o vinho, a não ser que vá aprendendo a degustá-lo...

Com a liturgia sempre foi assim! Os grandes pastores e doutores da Igreja tiveram continuamente a peito introduzir o Povo de Deus nos santos mistérios que celebrava. É o que se chama de mistagogia: introdução à celebração dos santos mistérios!

Não é a liturgia que deve ser barateada, vulgarizada, empobrecida para descer à mediocridade do nosso mundo do superficial e do descartável, da novidade vazia, do barulho e do óbvio... São os pastores da Igreja que, vivendo profundamente o mistério, no Altar e na vida, devem ajudar o Povo de Deus a elevar-se!

"Corações ao Alto!" - devem dizer sempre os pastores!


"O nosso coração está em Deus!" - deve aprender a responder sempre o rebanho!

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