Por Paul Medeiros Krause.
Erasmo de Roterdã (sim! Trata-se de
um caso de homonímia!) era um ser de uma espécie superior. Na verdade, para
dizer melhor, era um ser superior da sua espécie. Asno de nascimento e por um
implacável decreto da natureza, possuía uma inteligência maior que a de muitos
seres humanos, tanto que fora admitido – apesar do seu mau cheiro de animal e
dos hábitos alimentares pouco ortodoxos – aos estudos, aprovado no vestibular e
encontrava-se cursando o último período de direito, em uma honrada instituição
universitária.
Aquela criatura peluda, que precisava
sentar-se nas últimas carteiras para não atrapalhar a visão dos colegas, era um
dos melhores alunos da classe, possuía boas notas e deixava pasmos todos os que
assistiam às suas incríveis intervenções em sala de aula, saborosamente
perspicazes. Tudo indicava seria ele o orador da turma – apesar dos relinchos
que às vezes inadvertidamente soltava –, pois além de ter boa voz, escrevia
bem, ousando até a publicar artigos no jornal dos estudantes. Todos criam que
ele ganharia o prêmio conferido ao melhor aluno da turma.
No princípio do curso, Erasmo chegou
a interessar-se por algumas colegas, mas era um pouco tímido e reservado –
quase um criado-mudo! –, devido à terrível fama de seus ancestrais de
dedicar-se diuturnamente a asneiras. Um certo complexo de inferioridade
assaltava-o, dificultava-lhe as relações, além do seu temperamento assertivo e
um tanto quanto renitente. De quando em quando, alguns colegas montavam nele,
expondo-o à zombaria coletiva, mas havia também os companheiros leais e
inseparáveis, que o defendiam, animavam e admiravam.
Alguns diziam:
– Esse burro vai longe!
Outros prognosticavam:
– Esse asno vai acabar sendo juiz!
Outros criticavam-no por às vezes
pastar alguma grama da redondeza, ao que ele, espirituosamente, retrucava:
– Vocês comem o bandejão e estão
falando de mim?!
Erasmo era um espantoso caso de
animal com alma racional. Muitas vezes fora expulso da faculdade pelos vigias,
açoitado por alunos de outras turmas, que imaginavam tratar-se de um quadrúpede
estúpido qualquer e o enxotavam como se faz a um cachorro que entra numa
igreja. Contudo, logo vinha alguém que conhecia os seus peculiares predicados,
a sua inusitada condição de aluno quadrúpede, de animal dotado de razão, mais
do que isso, de aguda razão. Alguns acabavam recordando-se de tê-lo visto uma
ou outra vez falando no orelhão.
Mesmo andando sobre quatro patas,
algumas coisas estupefaziam-no. Ele tinha a impressão de que muitos de seus
colegas ruminavam, só que com a silenciosa docilidade dos cordeirinhos. Ele via
uma estranha linearidade no comportamento do rebanho, equivalente à dos de sua
espécie que sempre fazem a mesma coisa, sem maiores reflexões, desde que o
mundo é mundo. Percebia, com estarrecimento, que alguns de seus amigos eram tão
dóceis aos mestres quanto seus irmãos aos capatazes. Novamente, com uma
diferença: seus irmãos sabiam dar coices!
Mas, voltemos ao último semestre.
Erasmo estava concentrado nos estudos. Vivia como um asceta. Não bebia, não
fumava, não ia pras baladas. Nem sabia quem estava pegando quem. Ele nem se
dava conta da existência de uma sua colega, mula, que partilhava algo de sua
índole. Só por isso não a mencionei ainda. Também ela era um ser superior.
Superior às outras mulas. Ademais, era belíssima, meiguíssima, finíssima,
humílima e vários outros íssimas. Não se sabe como, mas era mais bela que todas
as outras alunas reunidas e elevadas à décima potência. O sonho de consumo de
qualquer animal menos distraído. Também ela passara pelos dissabores de possuir
uma alma racional em corpo de animal. Apenas seu nome soava um pouco estranho:
Suplícia, mas tinha algo que ver com a sua sorte. Suplícia apaixonou-se por
Erasmo.
Lançando mão de recursos mais ou
menos sutis, de expedientes mais ou menos criativos, Suplícia tentava a todo
custo chamar a atenção de Lutero, digo, de Erasmo, que, absorto em suas
meditações, absolutamente não a notava. Deixava ela às vezes cair os livros no
chão para que ele pegasse, o que este fazia de bom grado, mas sem distinguir o
dolo específico contido na ação da estupenda, extraordinária, magnífica e
fenomenal colega.
Depois de muita persistência de
Suplícia, caíram as escamas dos olhos de Erasmo e ele viu. Viu que ela o amava.
Começaram a namorar... Só que o namoro não demorou muito, pois Erasmo era um
asceta, um místico, um ser esquisito, que só pensava em estudar.
Suplícia não se conformou com o
rompimento, que lhe partiu o coração. Caiu em depressão profunda, começou a
embriagar-se e a usar drogas. Sua aparência tornou-se horrível. Parecia não
dormir. Alguns diziam:
– Vejam o seu estado deplorável! Está
apaixonada! Não se valoriza!
Outros comentavam:
– Não suportou o baque. Ficou louca.
Perdeu a cabeça.
Suplícia tentava preencher o vazio
que havia em si, o vazio deixado por Erasmo. Mas trocava os pés pelas mãos,
digo, as patas traseiras pelas dianteiras. Rolava ladeira abaixo, na ladeira da
existência. Perdeu o juízo.
E essa, meus amigos, acreditem ou não, é a verdadeira história, é a verdadeira origem da mula-sem-cabeça.
E essa, meus amigos, acreditem ou não, é a verdadeira história, é a verdadeira origem da mula-sem-cabeça.
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