Por Rodrigo Pedroso.
A infalibilidade do papa é um
caso particular da infalibilidade da Igreja e, por sua vez, a infalibilidade da
Igreja é, na verdade, uma participação na própria divina infalibilidade de
Jesus Cristo. Em outros termos, o papa é infalível porque a Igreja é infalível
e a Igreja é infalível porque infalível é Jesus Cristo, seu fundador. O papa
não é infalível por seus dotes naturais, nem por suas virtudes ou qualidades
pessoais – neste sentido, ele é um homem como outro qualquer. O papa é
infalível porque Jesus Cristo prometeu a assistência infalível do Espírito
Santo a quem quer que fosse que, no legítimo exercício do cargo de pontífice
romano, proferisse sentença definitiva e irreformável em matéria de fé e moral.
A infalibilidade do papa, portanto, pertence à ordem sobrenatural e sem
referência a essa ordem sobrenatural não pode ser compreendida nem sequer
aceita.
Efetivamente, a infalibilidade é
exigida, por necessidade lógica, pelo próprio caráter e constituição
sobrenatural da Igreja. Destinada a dirigir os homens na ordem sobrenatural
para o elevado fim a que foram chamados, a Igreja não pode ter simplesmente o
direito de errar por último. Suas sentenças definitivas e irreformáveis, no que
tange à matéria de fé e moral, não podem conter erros, sob pena de inviabilizar
o fim para o qual foi fundada.
Um caso particular de sentença
definitiva e irreformável em matéria de fé e moral é a canonização de um santo.
Com a canonização, o santo é proposto à veneração da Igreja universal, como
estando junto de Deus na glória celeste, participando da vida da Santíssima
Trindade e gozando da visão beatífica. Originalmente, a canonização era a
inclusão do nome do santo no cânon (oração eucarística) da missa. Não é o ato
de canonização que “santifica” o santo – tal ato apenas declara que determinada
alma santificou-se em vida pela graça divina e encontra-se agora na glória de
Deus. Em termos técnicos, a sentença de canonização é declaratória e não
constitutiva.
Ensina Santo Afonso Maria de
Ligório, doutor da Igreja, em seu breve, porém riquíssimo, opúsculo sobre a
Oração: «Quanto aos santos, é certo que é utilíssimo recorrer à sua
intercessão, falando dos santos já canonizados, que gozam da visão de Deus.
Supor que neste ponto a Igreja é falível seria incidir em culpa ou heresia,
como dizem São Boaventura, Belarmino e outros, ou ao menos está próximo de
heresia, segundo Suárez, Azor, Gotti e outros. Porque o Sumo Pontífice, como
diz Santo Tomás, no canonizar os santos, é de modo particular guiado pela
inspiração infalível do Espírito Santo» (A
Oração, 4ª ed., Aparecida, 1992. p. 35).
Tal ensinamento não é mera
opinião de Santo Afonso. Se não somos adeptos do relativismo e entendemos que a
teologia é uma verdadeira ciência, devemos considerar que estamos diante de uma
conclusão teológica de um dos maiores estudiosos da matéria, ele mesmo homem de
vida santa e proclamado doutor da Igreja. E ainda que fosse mera opinião, a
opinião de um doutor da Igreja, em matéria teológica, tem muitíssimo mais peso
que a sua ou a minha.
Alguém poderia dizer que, como
não se trata da definição de um novo dogma, a sentença de canonização não
poderia ser infalível. Entretanto, a Igreja não é infalível apenas ao definir
explicitamente os dogmas contidos no depósito da Revelação Divina. Ela também é
infalível ao definir os chamados “fatos dogmáticos”, isto é, fatos
necessariamente conexos com a Revelação Divina por razões lógicas, históricas
ou morais. Quem nega a infalibilidade da Igreja ao definir fatos dogmáticos,
mesmo quando ocorridos depois de encerrada a Revelação pública, são os hereges jansenistas. O então cardeal
Ratzinger, à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, na Nota Doutrinal
Ilustrativa da Fórmula Conclusiva da Profissão de Fé Exigida ao Assumir um
Ofício a Exercer em Nome da Igreja, enumerou entre os exemplos de fatos
dogmáticos a canonização dos santos (n. 11).
Outros poderiam negar a
infalibilidade das sentenças de canonização por suposto defeito no processo que
as antecedeu. Ocorre que a canonização não é infalível por conta do processo
que a antecede, mas porque se trata de ato
definitivo e irreformável do pontífice romano, a quem Jesus Cristo prometeu
a assistência infalível do Espírito Santo. O papa não precisa de processo para
ser infalível. O processo canônico é um meio humano como outro qualquer e serve
apenas para fornecer ao papa elementos para formar o seu juízo – e é
prerrogativa do papa considerar se os elementos fornecidos são suficientes ou
não. Aliás, os processos de canonização não existiam antes do século XII. Não é
o processo que canoniza o santo, porque a Igreja é a primeira a admitir que
esses processos são faliveis, como o de qualquer tribunal humano.
É o que ensina o pe. Joseph Mors, na tese 17 de seu Institutiones Theologiae Fundamentalis (Petrópolis, 1943, tomus II,
n. 222, p. 155): «Ecclesia infallibilis
est in canonizatione sanctorum. Canonizatio est ultima et definitiva sententia
R. Pontificis qua aliquis homo aeterna gloria frui declaratur ejusque cultus
omnibus fidelibus permittitur et praescribitur (saltem eo sensu, quod omnes
fideles teneantur eum habere sanctum et cultu publico dignum). (…) Infallibilitatem vindicamus Ecclesiae saltem
pro canonizatione, et quidem quoad id quod in recto affirmatur, nimirum canonizatum gloriae caelestis esse participem
et cultu sanctorum dignum. De historicis virtutis heroicae testimoniis
vel miraculis Ecclesia non vult authentice judicare; haec sunt condicio et occasio, non objectum definitionis.» [“A
Igreja é infalível na canonização dos santos. Canonização é a última e
definitiva sentença do romano pontífice pela qual algum homem é declarado gozar
da eterna glória e seu culto é permitido e preceituado a todos os fiéis (ao
menos no sentido de que todos os fiéis sejam obrigados a tê-lo por santo e
digno de culto público). Reclamamos a infalibilidade da Igreja ao menos para a
canonização, e com certeza na medida em que isso é afirmado estritamente, que
sem dúvida o canonizado é partícipe da glória celeste e digno do culto dos
santos. Sobre os testemunhos históricos da virtude heróica ou os milagres não
quer a Igreja autenticamente julgar; esses são condição e ocasião, não o objeto
da definição”. Ou seja, mesmo que os testemunhos ou milagres apresentados no
processo não sejam autênticos, o papa não erra na sentença de canonização.
Ao canonizar um santo, o papa é
infalível, não por conta dos rigores do processo, mas apenas por ser o papa,
porque ao papa foi prometida a assistência infalível do Espírito Santo. Processo
algum do mundo, por mais rigoroso que seja, é de per si suficiente para provar
que alguém esteja na glória de Deus. Admitir o contrário seria entender que se
pode atingir a ordem sobrenatural por meios puramente naturais, o que é heresia pelagiana.
Descontado o jansenismo dos que
negam a infalibilidade da Igreja ao definir fatos dogmáticos e o pelagianismo
dos que afirmam que o papa é infalível por causa do processo e não por ser o papa,
os que negam a infalibilidade das canonizações estão próximos da heresia também
por outra razão: afirmar que o papa tenha errado ao canonizar um único santo é
colocar a santidade de todos os outros sob suspeita. Pois se a Igreja errou ao
canonizar determinado santo, que garantia temos de haver ela acertado ao
canonizar os outros? E chega-se, assim, ao seguinte paradoxo: sustenta-se o
dogma católico da intercessão e da veneração dos santos em teoria, mas por
outro lado nega-se que haja na prática santo algum. Por isso o papa Bento XIV,
grande canonista, chamou os que negam a infalibilidade do papa ao canonizar os
santos de «temerários, causadores de escândalos, injuriadores dos santos e
favorecedores dos hereges que negam a veneração dos santos».
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