Por Sávio Laet
A
física do tempo de Santo Agostinho acreditava que todos os corpos tinham o seu
lugar natural e que o que os conduzia para este lugar era a sua gravidade. Ora,
em latim, gravis (-e) é um adjetivo que significa pesado. Donde Agostinho
raciocinar: se todas as coisas têm a sua “lei da gravidade”, pela qual tendem
para o seu lugar próprio[1],
qual será a “lei da gravidade” do homem? E chega à seguinte conclusão: o peso
do homem, isto é, a lei que o faz tender para o
lugar que lhe é natural, é o amor. Daí dizer ele: “O meu peso é o meu amor [Pondus meum, amor meus]; para qualquer
parte que vá, é por ele que sou levado”[2]. Agostinho estava tão convencido disso que, num sermão,
de súbito e até rispidamente – talvez porque pensassem que ele fosse um estóico
ou ainda maniqueu – afirmou aos que o ouviam: “Acaso vos é dito: Não ameis
coisa alguma? Longe disso. Sereis preguiçosos, mortos, detestáveis, infelizes,
se nada amais. Amai”[3]. Noutro opúsculo, insiste: no amor, nenhum esforço é
penoso, nenhum cansaço é oneroso, porque o amor é-nos natural. O homem não se
cansa de amar, porque foi feito para amar:
(...) trabalho algum é penoso para os que
amam. Ao contrário, eles encontram aí o seu deleite. (...). Porque quando se
ama não há fadiga; e se houver fadiga, ama-se a fadiga.[4]
Em sua própria existência,
Agostinho experienciou que a essência do homem é amar. Nas Confissões, valendo-se do imperfeito da voz ativa do verbo “amo”,
confessa: “(...) amava amar [amare amabam]”[5]. Em seguida, lançando mão do particípio
presente do mesmo verbo, afirma: “Amando amar (...) [amans amare]”[6]. Observemos que Agostinho não fala de
“amor” como substantivo. Aliás, para ele, “amor” é uma palavra ociosa. Num Sermão, é claro sobre isso: “(...) é
banal (infructuosa= infrutífero) o
nome de ‘amor’”[7]. Ao seu sentir, a dileção é
substancialmente verbo: ou é ato ou não é nada. Ele reafirma isso inclusive em
tratados teológicos: “(...) não é amor, o amor que nada ama”[8]. E ainda: “(...) onde nada é amado, não
existe amor algum”[9]. Noutro Sermão chega a desafiar a assembleia dizendo: “A caridade não é
ociosa. (...) Mostra-me um amor ocioso, inoperante”[10]. Enfim, para o homem, amar é ser, amar
é existir, amar é viver.
Agora bem, há amor e amor. Amar por
amar, podemos amar qualquer coisa, inclusive o mal. Já Nosso Senhor advertia
que nem tudo que vem do coração – sede das nossas inclinações e vontade – é
bom; antes, pelo contrário, é do coração que vem o mal: “Com efeito, é do coração
que procedem más intenções, assassínios, adultérios, prostituições, roubos, falsos
testemunhos e difamações” (Mt 15, 19). Atento a isso, assevera Agostinho, no
mesmo Sermão citado acima: “Só
o amor leva alguns até a praticar o mal. Não é o amor que
pratica todas as maldades, os adultérios, os crimes, os homicídios, a luxúria?”[11].
Donde o imperativo: “Amai. Vede, contudo, o que amar [Amate, sed quid ametis videte]”[12].
Em outras palavras, o amor pode nos conduzir tanto à ruína como à virtude, pode
nos levar tanto para o bem quanto nos empurrar para o abismo. Portanto, a bem
da verdade, há dois tipos de amor. Di-lo-á O Doutor de Hipona: “O amor de Deus,
o amor ao próximo chama-se caridade; o amor do mundo, o amor deste século
denomina-se cobiça. Refreie-se a cobiça, excite-se a caridade”[13].
Tornamo-nos
ao mesmo lugar: o que é amar? Para entendermos, precisamos levar em conta dois
tipos de amor: o aquisitivo e o donativo. Aquisitivo é aquele amor que ama
alguém ou alguma coisa exclusivamente
para adquirir deles algum prazer, algum bem. Por exemplo, o adúltero busca o
prazer do sexo; o criminoso a rapina, o sabor da vingança ou coisa que o valha;
o luxurioso busca saciar seu desejo. Observemos bem: nisso não há amor, se
entendermos por amor fazer o bem ao próximo. O adúltero busca o seu bem e é um
traidor; o criminoso rouba, mata, para conseguir alguma coisa; o luxurioso
abusa, estupra, assedia, e torna-se incapaz de amizades sinceras. Não é difícil
perceber que estes “amores” são desordenados, porque, buscando o “bem”,
provocam o mal. Por nisso, nem todo amor é virtuoso. Qual, então, é o
verdadeiro amor? O amor verdadeiro é o donativo: o que se doa, o que dá sem
esperar nada em troca (Lc 6, 35). Este é o verdadeiro amor. É o amor de Nosso
Senhor: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá a vida pelos amigos” (Jo,
15, 13). O mandamento que Ele nos deixou, ei-lo: “(...) Este é o meu
mandamento: que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15, 12). Este é
o amor cristão: “Quem ama não faz mal ao próximo” (Rm 13, 10), mas dá a vida
por ele. Por conseguinte, o “como eu vos amei” de Cristo é uma ruptura que
distingue o amor cristão do amor mundano. Importa que retenhamos isso. Amar uns
aos outros não é bem o que nos faz cristãos e Igreja, mas sim o amar-nos uns
aos outros como Cristo nos amou. Trata-se de um amor que dá a vida pelos seus
amigos. Aqui está a renovação! Exorta Agostinho:
Somente é causa
de renovação, o amor a que o Senhor juntou esta qualidade: como eu vos amei. É por estas palavras que se distingue o
verdadeiro amor do amor carnal.[14]
Com
efeito, estes dois amores dividiram o mundo, porque inconciliáveis. Nestas duas
formas de amar, cumpre-se a palavra do Senhor, a saber, de que Ele será causa
de cisão:
Não penseis que
vim trazer paz à terra. Não vim trazer paz, mas espada. Com efeito, vim
contrapor o homem ao seu pai, a filha à sua mãe e a nora à sua sogra. (MT 10,
34-35).
De
fato, o Doutor de Hipona reconhece neste dito do Senhor a história do mundo. Na
sua concepção, estas duas formas de amor –
o aquisitivo e o donativo – cindiriam o mundo em duas cidades: “Dois
amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao
desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a
celestial”[15].
Desprezo a si próprio – poderia arguir alguém – isso não é sadismo, masoquismo?
Não nos deixemos tomar pela força das palavras. O que o Santo Doutor está a
dizer é que o amor deve ser bem ordenado:
O amor, que faz
com que a gente ame bem o que deve amar, deve ser amado também com ordem;
assim, existirá em nós a virtude, que traz consigo o viver bem. Por isso,
parece-me ser a seguinte a definição mais acertada e curta de virtude: A
virtude é a ordem do amor.[16]
Ora,
o Senhor nos ordenou a amá-lO sobre todas as coisas (Mt 22, 37-38). Destarte,
neste contexto, amar a si mesmo acima de Deus é antes odiar-se do que amar-se.
Diz o Santo Bispo:
Quem sabe se
amar a si mesmo, ama a Deus. Quem, porém, não ama a Deus, mesmo que se ame – o
que lhe é natural –, pode-se dizer com razão, que se odeia. Pois, como se fosse
o seu próprio inimigo, faz o que lhe é adverso e persegue-se a si mesmo.[17]
Em outras palavras, não ama a si mesmo, quem
ama a si mesmo acima de Deus.
Mas demos um passo a mais, pois a
caridade cristã é um mistério profundo! Com efeito, São Paulo, à
igreja de Corinto, depois de dizer, “(...) não vos falta nenhum dom da graça”
(I Cor 1, 7), afirma: “(...) passo a indicar-vos um caminho que ultrapassa a
todos” (I Cor 12, 31). Começa então a enumerar dons e carismas, fé que remove
montanhas, profecias e ciência de toda sorte, mas remata afirmando: “(...) se
me falta o amor, nada sou (...)” (I Cor 13, 2). Dirá Agostinho: “Sem a
caridade, os outros bens não são proveitosos”[18]. Mas o que temos aqui? À
igreja mais rica em dons e carismas, São Paulo diz: como eu, também vocês, sem
a caridade, nada somos. De mais a mais, enquanto todos os outros dons findarão,
“(...) a caridade jamais passará (...)”. Há a fé, há a esperança, mas tudo
passará e “A maior delas, porém, é a caridade.” (I Cor 13, 13). Somente ela
permanece para sempre. Observemos também que São Paulo não identifica a
caridade com nenhum daqueles atos que podem, materialmente, expressá-la. Diz
ele: “Ainda que distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse
meu corpo às chamas, se não tivesse a caridade, isso de nada me adiantaria” (I
Cor 13, 3). Santo Agostinho comenta esta visão de São Paulo, e quando fala da
caridade, afirma:
Nada há mais excelente do que este dom de Deus. É a única coisa que distingue
os filhos do Reino eterno dos filhos da perdição. Outros dons são também
concedidos por meio do Espírito Santo, os quais, porém, nada aproveitam sem a
caridade.[19]
A caridade não é, pois, benemerência, nem filantropia; nem
mesmo o “martírio” é
martírio sem a caridade. Mas o que é a caridade? É um dom.
E quem nos dá este dom? É São Paulo quem responde à igreja que estava em Roma:
“(...) o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que
nos foi dado” (Rm 5, 5). Sim, a caridade é o amor de Deus e quem no-la dá é o
Espírito Santo. O Amor Incriado, o Espírito Santo, cria em nós a caridade,
virtude criada. Mas como se manifesta este amor, este dom de Deus? Nosso Senhor
fala algo do mistério. Ao que lhe perguntara qual era o maior dos mandamentos,
respondeu-lhe:
Amarás
ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu
espírito. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a
esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (Mt 22, 37-38).
Ora, Santo Agostinho, “ruminando” este texto, encontrava
nele uma aparente “contradição”. Como posso amar a Deus com todo o meu ser, com
todas as minhas fibras e medulas, se tenho que amar ainda a mim e ao meu
próximo como a mim mesmo? E ele próprio explica: não devemos amar a nós mesmos
por nós mesmos, mas devemos amar a nós mesmos por Deus. O amor a Deus deve
estar acima do amor a si mesmo. Assim, se você ama ao próximo como a si mesmo –
e não ama a si mesmo acima de Deus – também não amará ao próximo acima de Deus,
mas por Deus. Então, amando a si mesmo por Deus e amando ao próximo também por
Deus, não estará amando outra coisa senão Deus, em você e no próximo. Diz ele
num Sermão: “Ama o próximo como a si
mesmo o que ama a Deus. Se não ama a Deus, não ama a si mesmo”[20]. Noutro lugar, afirma:
Quem
ama a Deus não pode desprezar o preceito pelo qual Deus manda amar o próximo. E
quem ama o próximo santamente e espiritualmente nada mais ama no próximo senão
Deus.[21]
Desta feita, a caridade transforma-se num amor exigente e
libertador: eu devo colocar Deus acima de mim mesmo, e se devo amar qualquer
pessoa como a mim mesmo, devo amá-la até que ela, comigo, comece a amar a Deus
sobre todas as coisas. Não retenhamos as pessoas conosco; nossa missão é
levá-las a Deus! Num tratado sobre exegese, Santo Agostinho explicita o quanto
dissemos nos parágrafos acima:
Portanto, se não te deves amar a ti mesmo por ti próprio, mas por
aquele em que está o fim retíssimo de teu amor, que nenhum entre teus irmãos se
aborreça se o amares por Deus. Porque a lei do amor assim foi estabelecida por
Deus: “Amarás ao próximo como a ti mesmo, mas a Deus com todo teu coração, com
toda a tua alma e com todo teu espírito” (Lv 19, 18; Dt 6, 5; Mt 22, 27.28).
(...) Porque quando é dito “de todo teu coração, de toda tua alma e de toda tua
mente”, não te é permitido que nenhuma parte de tua vida fique desocupada para
que possas gozar de outro objeto. Exige, antes, que qualquer outro objeto que
venha à mente para ser amado seja arrastado naquela mesma direção do caudal
impetuoso do amor. Logo, quem ama retamente o seu próximo deve tratar que esse
alguém também ame a Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma, com todo
o seu espírito. Amando-o assim como a si próprio, referirá todo o amor, próprio
ou alheio, naquela direção do amor de Deus que não tolera que se extravase e
perca nenhum arroiozinho que venha a diminuir seu ímpeto.[22]
E como “(...) a caridade é a plenitude da Lei” (Rm 13,
10), o “vínculo da perfeição” (Cl 3, 14), podemos dizer – também com Santo
Agostinho – que, ainda que nos faltassem todos os demais dons, se ao menos tivéssemos
a caridade, estaríamos salvos. Porque, a falar com máxima exação, quem tem a
caridade, possui todas as outras virtudes. Olhando para o Hino à Caridade de I Cor 13,
onde São Paulo como que a identifica com todas as outras virtudes – “A caridade
é paciente, a caridade é prestativa, não é invejosa, não se ostenta, não se
incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura o próprio interesse,
não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se
regozija com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta
(...)” (I Cor 13, 4-7) – Agostinho remata: “Tende a caridade e tereis tudo”[23]. Entretanto, o contrário não é verdadeiro, pois “Sem ela (i.é., a
caridade) nada vos aproveita, sejam quais forem os bens que possuais”[24]. De fato, se nos faltasse a caridade – ainda que tivéssemos todos os
demais dons e carismas – nada teríamos: “Ainda que eu falasse línguas, as dos
homens e as dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como bronze que soa
ou como címbalo que tine” (I Cor 13, 1). Aos que disserem, “Senhor, Senhor, não
foi em teu nome que profetizamos e em
teu nome que expulsamos demônios e em
teu nome que fizemos muitos milagres?”
(Mt 7, 22), o Senhor responderá: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade.” (Mt 7, 23). O
Bispo de Hipona remata de forma claríssima:
Se aquele que possui amor ou caridade (dois nomes para uma só
realidade!) não fala as línguas, nem tem o dom da profecia, nem conhece os
mistérios e toda a ciência, nem distribui seus bens aos pobres, porque não os
possui, ou porque esteja impedido por alguma necessidade, nem entrega seu corpo
às chamas, se lhe faltar ocasião para esse sofrimento – a caridade o
conduzirá ao Reino, fazendo que só o amor torne meritória a fé.[25]
Observemos que a caridade é meritória em si mesma. O desejo
de amar – quando ordenado à ação – já é amar, já é uma ação. Mas a caridade é,
ademais, missionária e eclesial. Missionária, porque amando quem não crê como a
nós mesmos, devemos querer para ele o que queremos para nós: a Salvação! Eclesial,
porque podemos e devemos esforçar-nos para que ele venha para aquele Corpo onde
Deus deve ser amado acima de tudo e todas as coisas devem ser amadas por Deus:
a Igreja. Portanto, a caridade suspira por unidade. Se o próximo deve ser amado
como amamos a nós mesmos, ele deve ser amado como uma extensão do nosso “eu”.
Destarte, se realmente o amamos como amamos a nós mesmos, quando o amamos
assim, amamos a nós mesmos nele. Desta feita, não há lugar para a inveja – mãe
de toda divisão – porque ninguém pode invejar a si mesmo. Assim, não há lugar
para a avareza, a usura, pois o que é nosso é do outro também, já que o outro,
na verdade, é um prolongamento do nosso “eu”. Quando pensamos em ter “ciúme” do
outro, logo a graça nos socorre: ele não é um “outro” completamente alheio a
você; é seu irmão, parte de você. De sorte que devemos querer para ele o que
queremos para nós. “A caridade (...) não é invejosa” (I Cor 13, 4). Santo
Agostinho diz isso com as seguintes palavras:
Assim, amando ao próximo como a si mesmo, ele não o inveja, porque não
se pode se invejar a si mesmo (Ita cum diligat
proximum tamquam seipsum, non invidet ei, quia nec sibi ipsi). Dá ao outro o que pode, daquilo que se dá a si mesmo (praestat ei quod potest, quia et sibi ipsi). Não tem necessidade do outro, porque nada necessita de si mesmo (non eo indiget, quia nec seipso). Só
precisa de Deus e encontra sua felicidade unindo-se a ele.[26]
Ora, dispersa a inveja pela força da dileção, há a unidade. Nasce, pois,
a Igreja do abraço da caridade. Num Sermão
dirigido ao povo simples, o Doutor de Hipona disserta com meridiana clareza
acerca desta dimensão eclesiológica da caridade:
(...) a
caridade faz com que seja comum a todos o que é próprio de cada um. Todo o
homem quando ama, encontra no próximo aquilo que não tem. Não haverá sombra de
inveja motivada pela diferença de caridade. Em todos reinará a unidade da
caridade.[27]
Amou a
cada um de nós para que nos amássemos uns aos outros. E deu-nos no seu amor a
graça de nos estreitarmos num amor mútuo, e de constituirmos o corpo de que ele
é a cabeça sublime, se formos membros ligados por um vínculo tão suave.[28]
Agora, como o amar cristão se
manifesta na concretude da vida? Partindo do quanto dissemos acima, temos que o
cristianismo muito perde da sua essência quando se esquece do que é realmente
magnificente. Hoje muito se diz dos grandes feitos, dos grandes encontros, do
quantitativamente grande em detrimento do qualitativamente grande.
Esquecemo-nos de que o máximo pode começar no mínimo, pode estar no mínimo.
Olvidamos que a palavra “cuidado” vem do latim: “cura”. De fato, os antigos
acreditavam que é cuidando que se cura. Ao menos no linguajar cotidiano
conserva-se algo desta verdade esquecida: não se diz “cuidador” de um Museu ou
de uma Biblioteca, mas sim: curador. Por quê? Porque é cuidando dos livros – de
cada página – e das obras de arte, em seus mínimos detalhes, que eles são
realmente conservados e permanecem curados. Na verdade, em nome dos grandes
feitos – o mais das vezes – esquecemo-nos do sorriso, da graça, do silêncio e
da gratuidade duma saudação. Na busca dos grandes feitos, faltamos com os
pequeninos gestos. Comportamo-nos como o sacerdote e o levita da parábola do
“Bom Samaritano” (Lc 10, 30-37). Ambos como que indo para uma “grande prédica”,
veem alguém sobre o qual depois vão pregar, a saber, o semimorto, mas como
devem pregar, passam longe dele, a fim de poderem – a tempo – pregar sobre ele.
O que significa isso? Significa o ato farisaico de se esquecer das pessoas para
se prender aos princípios, aos “valores”. Em vez de nos preocuparmos, antes de
tudo, com o pobre, o doente e o pecador, preferimos falar sobre a pobreza e o
pecado. Nascem, então, as ideologias. O amar se transforma num discurso sobre o
amor. Outrossim, esquecemo-nos de que quem não é fiel no pouco, tampouco o será
no muito (Lc 16, 10). Santo Agostinho, numa obra onde tenta ensinar a ler a
Bíblia – no tomo onde ele busca
ensinar como se pregar a Bíblia – resume esta verdade do versículo acima citado
numa máxima invicta, que pode ser traduzida assim:
O mínimo é,
em si mesmo mínimo, mas ser sempre fiel, até nas coisas mínimas, isto é o
máximo (Quod ergo minimum est, minimum est; sed in
minimo fidelem esse, magnum est= O que é mínimo, é mínimo, mas ser fiel no
mínimo, é o máximo).[29]
Contudo, aproximemo-nos ainda mais deste mistério. Como entendermos um
pastor que deixa noventa e nove ovelhas para recuperar uma (Lc, 15, 4-7)? Como entendermos a mulher que deixa para trás
nove moedas e põe-se a procurar uma que se perdeu? (Lc 15,
8-10)? Como entendermos que há “(...) mais alegria no céu por um só pecador que
se arrepende, do que por noventa e nove justos que não precisam de
arrependimento”? (Lc 15, 7). Há mais alegria por um do que por noventa e nove? Que conta é esta? Esta matemática
não fecha. Donde vem esta preocupação com as mínimas coisas? Santo Agostinho,
quando fala da conversão de um só pecador, a descreve assim: “Essa é uma obra
maior, como disse, do que o céu e a terra, e do que tudo o que se vê no céu e
na terra”[30]. E, se
perguntássemos a ele a razão, responderia: “O céu há de passar, e a terra
também, mas a salvação e justificação dos predestinados, dos que o Senhor prevê
que serão salvos, hão de permanecer”[31].
Sim, a conversão de uma só alma é
uma obra maior do que toda a Criação. É assim, inclusive, que o Bispo de Hipona
entende aquelas obras maiores que Nosso Senhor disse que os seus – nEle –
poderiam fazer, sendo missionários (Jo 14, 12). De fato, a salvação de um só
homem para Deus vale mais do que o céu e a terra e tudo o que eles encerram.
Santo Tomás reafirma isso de forma categórica:
(...) E neste
sentido maior obra é a justificação do ímpio, que termina no bem eterno da
participação divina, do que a criação do céu e da terra, que termina no bem da
natureza mutável.[32]
Por isso, quando a Igreja – com a graça do Seu Senhor – converte uma
pessoa, uma única, esta obra jamais acabará. Passarão o céu e a terra, mas
aquela alma, perseverando até o fim, estará salva por toda eternidade! Mas tudo
isso nos diz que é pessoa por pessoa, ou seja, é preciso deixar noventa e nove
para encontrar-se com aquela pessoa. E devemos saber que aquela alma – daquela
pessoa – vale mais do que o céu e a terra e que haverá mais alegria por ela do
que por noventa e nove que “não precisam de conversão”... Assim, quando o
Senhor chama a Igreja de “(...) pequenino rebanho” (Lc 12, 32), Ele não está
apoucando a Sua obra, pois a justificação, a salvação e a santificação de uma
só alma já valem mais do que toda a criação. Esta é a grandeza da Igreja: ser
missionária e velar pelas almas que, uma a uma, uma por uma – com a graça do
Seu Senhor – consegue converter. Todos os dias, quando a Igreja alcança uma
pessoa, quando – com a força do Seu Senhor – conquista uma única alma, realiza
uma obra maior do que a criação do mundo! Essa é a grandeza da Igreja, a
conversão das almas. “Dai-me almas e ficai com o resto”, dizia D. Bosco.
Alguém poderia arguir-nos: não estávamos a falar da caridade, o que tem a
ver isso com o que está dito logo acima? Diríamos: tudo. Para entendermos, tentemos
colher algo do mistério do “próximo”. Ah, esta palavra próximo! É no contexto
do “próximo” que Nosso Senhor começa a falar do amor. E Santo Agostinho
diz-nos: “A palavra ‘próximo’ indica relação, e ninguém pode ser próximo senão
daquele de quem se aproxima”[33].
Portanto, o vocábulo, “próximo”, nasce duma ação, a ação de aproximar-se. O verbo precede o substantivo
e o cria. Contudo, quando o mundo se aproxima de nós? Se você é bem-
apresentado, dou um passo em sua direção. Se possuir bens, dou um novo passo em
sua direção. Se possuir muitos bens, dou ainda outro passo. Se se afeiçoa a
mim, dou outro passo em sua direção. Se quiser compartilhar comigo o que tem,
estou próximo de você e você próximo a mim. A relação, ei-la. Agora, se você
não se veste bem, dou um passo para trás. Se não tem bens, dou outro. Se não
possui nada, dou mais dois ou três passos para trás. Se está doente,
distancio-me. Não há relação! O que temos aqui? Temos que as nossas “relações”
são criadas, não com base no que somos, mas sim no que parecemos ser e
parecemos ter. É certo que o homem não é um bem supremo. Mas amar um ser humano
como a seu próximo é amá-lo como se ama a si mesmo. Ora, amamos a nós mesmos
pelo que somos, a saber, homens feitos à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,
26). Logo, se quisermos amar o nosso próximo como a nós mesmos, devemos amá-lo
também pelo que são, isto é, homens feitos à imagem e semelhança de Deus. Neste
sentido, Santo Bispo de Hipona, em seu tratado sobre A verdadeira Religião, afirma:
Que o homem
ame o seu próximo, como a si mesmo. Nenhuma pessoa é por si mesma pai, filho,
sócio, nem nada de semelhante, mas unicamente um homem. Amar alguém como a si
mesmo é, pois, amá-lo no que ele é por si mesmo. Além do mais, nossos corpos
não são unicamente tudo o que somos. Não é, pois, os corpos que devem ser
procurados e desejados nos outros. (...) Desse modo, quem quer que ame em seu
próximo outra coisa do que ele é em si mesmo, não o ama como deve. O que é
preciso amar é a natureza humana, perfeita ou em vias de se aperfeiçoar,
independentemente de suas condições carnais.[34]
Porém, Nosso Senhor foi mais longe ainda: amou-nos quando estávamos ainda
mortos em nossos pecados (Ef 2, 1), quando éramos Seus inimigos (Rm 5, 10);
quando estávamos nus (Gn 3, 1), ou seja, despidos de qualquer mérito e vestidos
de todos os deméritos, Ele nos chamou: “Onde estás?” (Gn 3, 9). Procurando-nos
e não nos encontrando, não só se aproximou mais, não só caminhou mais em nossa
direção, mas fez-se um de nós, fez-se nosso consanguíneo: “E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). A Encarnação do Verbo é como o ressoar
do grito de Deus ao homem perdido após o pecado: “Onde estás?” (Gn 3, 9). O
próprio Senhor no-lo afirma: “(...) o Filho do Homem veio procurar e salvar o
que estava perdido” (Lc 19, 10). Diz Santo Agostinho: “O próprio Deus e Senhor
nosso quis ser chamado nosso próximo”[35].
Deus quis se relacionar conosco, quis estar conosco quando nada tínhamos para
lhe oferecer, senão os nossos delitos. Quando estávamos assim, Deus quis ser
“Deus conosco” (Mt 1, 23). Ele é o Pastor; nós, as Suas ovelhas perdidas (Lc 15,
4-7). Somos a Sua riqueza, Sua dracma perdida (Lc 15, 8-10); somos o filho em
direção do qual Ele corre, a quem Ele agarra e a quem Ele cobre de beijos (Lc
15, 20). “Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele
quem nos amou (...)” (I Jo 4, 10). Paulo, precisamente quando respirava ódio
contra os cristãos (At 9,1), fora alcançado por Cristo. A graça, ei-la: Cristo
“perseguiu” Saulo quando Saulo perseguia Cristo (At 9, 5). Depois, o próprio
Apóstolo diz: “(...) fui alcançado por Cristo Jesus” (Fl 3, 11). O que
significa isto? Significa que o amor de Nosso Senhor foi mais rápido e mais
forte do que o ódio de Paulo. São João Crisóstomo – Bispo de Constantinopla no
século V – quando comentava, numa Homilia, a Epístola aos Romanos, afirmou neste sentido: “Nada existe,
certamente nada, que o amor não possa vencer. O amor de Deus, de fato, é o mais
sublime que existe”[36].
O amor de Cristo por Paulo venceu o ódio de Paulo por Cristo, e foi exatamente
quando Saulo odiava a Cristo – nos cristãos – que Cristo o amou de forma mais
sublime. É o mistério da graça. Sabemos apenas que foi este amor que tornou
Paulo um intrépido Apóstolo. Ele próprio no-lo afirma: “(...) a caridade de
Cristo nos compele (...)” (II Cor 5, 14); “Minha vida presente na carne, vivo-a
pela fé no Filho de Deus, que me amou (....)” (Gal 2, 20). Ele vive ousadamente
porque foi amado. Vive deste amor.
Finalmente, de quem Cristo pede nos aproximarmos? A quem, certa feita,
perguntou-lhe isto (Lc 10, 29), respondeu: o ferido, o roubado, o semimorto e
abandonado (Lc 10, 30). Nosso Senhor, o Bom Samaritano, no “Vá, e também tu,
faze o mesmo” (Lc 10, 37), ordenou precisamente o contrário do que costumamos
fazer. Mandou que nos aproximássemos de moribundos, mas nós nos afastamos até
de irmãos por estarem malvestidos; mandou-nos criar vínculos com miseráveis,
mas damos as costas até a quem tem pouco a nos oferecer; mandou que fôssemos ao
encontro dos pecadores, mas nos afastamos de quem tem este ou aquele problema.
A lógica de Deus é diferente da nossa. Quem são os nossos convidados? Tendemos
a convidar os que um dia nos convidarão e os que menos precisam dos nossos
cuidados. Quem são os convidados de Deus? São “(...) os pobres, os estropiados,
os cegos e os coxos” (Lc 14, 21). Mais: quem Deus mandou que fossem os nossos
convidados? “(...) Quando deres uma festa, chama os pobres, estropiados, coxos
e cegos (...)” (Lc 14, 13). Nosso Senhor eleva à enésima potência isto para nos
dizer: aproxime-se de quem precisa de você mais do que de quem você precisa, e
quanto mais alguém precise de você, quanto mais dele deve se aproximar. Ele
próprio afirma: “(...) feliz serás, então, porque eles não têm com que te
retribuir” (Lc 14, 14). Abramo-nos, pois, a este movimento, e logo – por obra
do Espírito – estaremos matando a fome de famintos, a sede de quem tem sede;
logo estaremos vestindo o nu, visitando o doente e acolhendo o forasteiro (Mt
25, 35). E, naquele dia, Deus mesmo se aproximará de quantos agiram assim,
dizendo-lhes: “Vinde, benditos do meu Pai (...)” (Mt 25, 34).
Tudo isso nos assusta, porque a modernidade nos apresenta a ética do
dever:
deves porque deves. É a ética
laica, moderna; trata-se de uma ética formal, matemática, legalista, fria e
morta. Ora, a esta se contrapõe outra, vale dizer, a cristã. Afirma Santo
Agostinho: “A caridade é a realização completa de toda a lei (...)”[37]. Estamos
acostumados a imaginar a moral como um compêndio de preceitos. Mas ser ético,
na concepção cristã, é cumprir unicamente um breve preceito: amar. Se, como
vimos em I Cor 13, a caridade como
que comporta todas as outras virtudes, só resta a Agostinho arrematar: “Portanto,
foi-te dado, duma vez por todas, um breve preceito: Ama e faze o que quiseres (Semel ergo breve praeceptum tibi
praecipitur: Dilige et quod vis fac)”[38]. De
fato, uma vez que, “(...) o mesmo Senhor Jesus Cristo, Deus Homem, é a Revelação do amor divino (...)”[39],
nada mais resta a ser dito, senão isto: “Nisto reconhecerão todos que sois meus
discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros” (Jo 13, 35). O Novo se resume no
amor.
Talvez seja redundante depois do quanto dissemos retomarmos a temática,
mas pensamos valer a pena renovar esta inquietação: o que é o amar cristão? Tentemos
reaproximar-nos deste mistério a partir doutra máxima do autor que temos
seguido até aqui: “(...) creia e opere. Crer refere-se à fé, e obrar, à
caridade”[40]. Isto
mesmo já dizia o discípulo amado: “(...) não amemos com palavras nem com a
língua, mas com ações e em verdade” (I Jo 3, 18). E São João não está sendo
retórico. Não se trata de uma bela frase. Trata-se, agora sim, de uma norma: o amor cristão não consiste em se
amar o próximo com palavras, mas com ações, com gestos. Mas que gestos? Antes
de falar dos nossos gestos, falemos dAquele que não nos amou com palavras ou
com a língua, mas dando a vida por nós: “Nisso consiste o Amor: ele deu sua
vida por nós” (I Jo 3, 16). E Cristo deu Sua vida por nós, não somente morrendo
na Cruz, mas vivendo uma vida de servo: “O Filho do homem não veio para ser
servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por muitos” (Mt 20, 28).
A cruz, foi o “(...) tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o
fim” (Jo 13, 1).
Então, compreendamos bem, que o amor do qual falamos não começa pelo ato
de nós amarmos a Deus ou ao próximo, não é uma iniciativa nossa. O amor do qual
falamos consiste, antes de tudo, noutra coisa: “(...) não fomos nós que amamos
a Deus, mas foi ele quem nos amou (...)” (I Jo 4, 10). Sendo assim, o nosso
amor – se é amor cristão – há de ser sempre uma resposta. Observemos, além
disso, qual deve ser a dinâmica do amor que devemos espalhar, a saber, não
esperar que o outro nos ame para amá-lo, mas devemos amá-lo primeiro como Deus
nos amou primeiro. A graça, a gratuidade é o jeito de Deus amar e deve ser o
nosso modo de amar. E como Deus nos amou? “(...) Enviou-nos seu Filho como
vítima de expiação pelos nossos pecados” (I Jo 4, 10). Enviou-nos não algo, mas
alguém. E não qualquer pessoa, mas seu Filho único e muito amado. E enviou-nos
como retribuição do quanto O amamos? Não! Enviou-nos como expiação dos nossos
pecados contra Ele. Então, como devemos amar? Ora, “Se Deus assim nos amou,
devemos, nós também, amar-nos uns aos outros” (I Jo 4, 11). Com efeito, uma vez
amados, devemos tomar a iniciativa de amar; devemos amar antes que sermos amados.
Mas como deve ser este amor? “(...) Ele deu sua vida por nós. E nós também
devemos dar nossa vida pelos irmãos” (I Jo 3, 16). O amor cristão é o amar
antes e independentemente de ser amado e é amar dando a vida. É um amor que converte
e não um amor que recompensa convertidos. Qualquer outra forma de amar
diferente dessa, não é cristã, porque não abarca aquele “como eu vos amei” que
distingue o amor cristão das outras formas de amar.
Demos mais um passo. Não é que Deus nos amou no passado, e agora, no
presente, sozinhos, devamos amar. Deus nos ama e este amor com que Ele
nos ama permanece em nós: “Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: Deus
enviou o seu Filho único ao mundo para que vivamos
por ele” (I Jo 4, 9). O amor de Nosso Senhor permanece em nós. E é este
amor que faz com que vivamos. Ora, é este amor de Cristo – e não outro – que a Igreja expande,
estendendo-o ao mundo. Eis a graça, a graça é o prolongamento do amor de Nosso
Senhor ao mundo através da Igreja. Em nós – que vivemos dEle – Cristo continua
amando o mundo, dando a sua vida ao mundo. O amor cristão é uma extensão do
amor de Cristo. Agora bem, sendo a
“Igreja é o prolongamento de Cristo na terra”[41],
ela é a continuação de Cristo servo, do “(...) amou tanto o mundo” do Pai (Jo
3, 16).
No entanto, para amarmos, precisamos fazer a experiência de ser amados
por Deus. A graça de amar incondicionalmente resulta da experiência de termos
sido antes amados gratuitamente. Afirma o Santo Doutor:
Não há maior
convite ao amor que, amando, tomar a dianteira: e demasiado duro é o coração
que, se não queria dar, não quer nem
ao menos pagar o amor.[42]
E como fazer esta experiência, isto é, a experiência de sermos amados por
Deus? É um mistério. Mas algo se passa quando ouvimos as Sagradas Escrituras. O
que ela nos diz? “Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único
(...)” (Jo 3, 16). Deus nos deu o Seu Filho. E não O poupou, como pediu que
Abraão poupasse a Isaac (Gn 22, 12), mas
O entregou: “(...) não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós
(...)” (Rm 8, 32). E este amor manifestado em Cristo não começou no Novo Testamento. Nele, ele foi revelado
em sua plenitude. Nosso Senhor – aos discípulos que iam para o povoado de Emaús
– “(...) interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito”
(Lc 24, 17). E é interessante notar o começo do versículo, “E, começando por
Moisés e percorrendo todos os profetas (...)” (Lc 24, 17). Ora, nesta passagem
o próprio Senhor nos dá a chave de interpretação da Bíblia: Ele próprio. E o
que ele manifestou? Que “Deus amou tanto o mundo”. Toda a Bíblia fala disso e
toda a Bíblia deve ser lida a partir do Novo
Testamento. Daí Santo Agostinho dizer: “É por isso que no Antigo Testamento
esconde-se o Novo, e no Novo encontra-se a manifestação do Antigo”[43]. Por
outro lado, todas as Escrituras falam também do amor que brota deste sentir-se
amado por Deus, a ponto de Nosso Senhor mesmo dizer que, no amor a Deus sobre
todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, resumem-se todas as Escrituras:
“Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22, 40). Santo
Agostinho descreve esta “hermenêutica bíblica” de forma lapidar:
Se Cristo veio
principalmente a fim de que o homem soubesse o quanto Deus o ama, e o soubesse
a fim de abrasar-se no amor daquele pelo qual foi primeiro amado, e amasse o
próximo segundo a ordem e o exemplo de quem se fez próximo amando o que não
estava próximo, porém corria longes terras; se toda a Escritura divina, escrita
antes, foi escrita para predizer a vinda do Senhor, e se tudo quanto foi depois
confiado aos Livros e confirmado pela divina autoridade conta o Cristo e
aconselha o amor, é evidente que toda a Lei e os Profetas se resumem nestes dois mandamentos do amor de Deus e do próximo –
única Escritura santa até então, pois o Senhor o dissera. É também evidente que
neles se resumem todas as obras de letras divinas, que, para a nossa salvação,
foram posteriormente escritas e confiadas à tradição.[44]
Então, qual é o conselho deste intrépido pregador e catequista aos
pregadores e catequistas de hoje? Deixemos que ele mesmo responda: “(...) o que
quer que narres faze-o de tal forma que aquele que te ouve, ouvindo, creia e,
crendo, espere e, esperando, ame”[45].
A verdadeira interpretação da Bíblia é aquela que nos leva ao amor. Num tratado
consagrado à “exegese bíblica”, Santo Agostinho fecha da seguinte forma:
Concluímos,
pois, afirmando que todo aquele que houver entendido ser o fim da lei “a
caridade procedente de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sem
hipocrisia” (I Tm 1, 5), e quem refere toda a compreensão das divinas
Escrituras a essas três disposições, poderá abordar com segurança o estudo dos
Livros sagrados.[46]
Obviamente que, a exegese ou pregação da Sagrada
Escritura, por mais edificante que seja, é ainda apenas um meio, um caminho,
que nos leva à experiência do amor de Deus. Para entendermos isso, tomemos uma
passagem dos Atos dos Apóstolos. O
discurso de São Pedro na casa de Cornélio (At 10). Diz a Bíblia que, “Tomando
então a palavra, Pedro falou (...)” (At 10, 34). E fez aos que estavam
presentes o anúncio da salvação em Cristo. Contudo – narra a Escritura – “Pedro
estava ainda falando essas coisas, quando o Espírito Santo desceu sobre todos
os que ouviam a Palavra” (At 10, 44). Houve, pois, um corte. Eles
experimentaram aquilo que ouviram. E nós sabemos que, após isso, foram
batizados. O que aconteceu nesta experiência que os da casa de Cornélio
fizeram? É algo inenarrável. O próprio Senhor acena para como reconhecer os que
passaram por esta experiência: “É pelos seus frutos, portanto, que os
reconhecereis” (Mt 7, 19). E São Paulo especifica qual é este fruto: “(...) o
fruto do Espírito é o amor” (Gal 5, 22). Esta experiência indescritível vem-se
repetindo na Igreja pelos longos dos séculos. E o fruto, de fato, é sempre o
mesmo. São Francisco, que passou por ela, gritava aos seus coetâneos: “O Amor
não é amado”. São João da Cruz afirmava: “No entardecer desta vida, seremos
julgados pelo amor”. Santa Terezinha do Menino Jesus dizia: “No seio da Igreja,
eu quero ser o amor”. Santo Agostinho, que passou também por esta experiência,
inebriado dela, saiu dizendo aos seus, que a experiência de Deus é qualquer
coisa que a glote humana não consegue pronunciar. Exortava sem cessar que Deus
não é o monossílabo tônico – ou as duas sílabas em latim – que pronunciamos,
mas sim uma realidade que de muito ultrapassa o sinal que a indica:
<Deus> não
é apenas as duas breves sílabas com que exprimimos o seu nome, nem nós
veneramos essas duas breves sílabas, nem as adoramos, nem é a elas que
pretendemos chegar.[47]
De Deus pode
dizer-se tudo, e tendo-se dito tudo, tudo fica longe de ser dito como deve ser.[48]
Não se nota
pobreza maior do que quando se trata de dizer o que Deus é. Se procurais um
nome conveniente, não o encontrais (...).[49]
Na verdade, não
O conhecemos pela vibração dessas duas sílabas: De-us.[50]
Longe de Agostinho defender uma desmesurada “teologia
apofática”, mas ele quer frisar justamente o contrário: se o sinal indica a
coisa realmente, uma “teologia” eficaz nunca termina no sinal, mas em Deus
mesmo. É necessário fazer a experiência de ser amado por Deus, dizia Santo
Agostinho, porque sem ela, não podemos amá-lO, nem odiá-lO. Sem esta
experiência – que é fruto da graça – mesmo a fé, é vã credulidade humana.
Afirma o Santo Doutor:
Como podem
odiar, se desconhecem? Se não conhecem o que ele é, mas têm a seu respeito
qualquer outro conceito, não o odeiam, mas odeiam o que lhes parece que ele é,
ou o que suspeitam erradamente.[51]
Se pensam ou
crêem a respeito de Deus, não o que ele é, mas qualquer outra coisa, e tem ódio
ao que pensam, não odeiam propriamente Deus, mas o que concebem de Deus na sua
mentirosa suspeita e vã credulidade.[52]
Antes de levarmos Deus ao mundo, devemos quebrar os
nossos ídolos. E só deixamos de lado os ídolos, quando caímos de joelhos ante o
mistério da graça. Nosso Doutor insistia com os seus, a fim de que eles não
cressem num ídolo, nem levassem ao mundo um ídolo, mas sim o Deus de Jesus
Cristo, o maior tesouro da Igreja. Dizia Ele:
Não O imagineis
como se fosse um artesão que compõe, ordena, inventa, que modela e remodela;
nem, tampouco, como um imperador sentado no trono real, brilhante e cheio de
adornos e criando por decreto real. Despedaçai
os ídolos de vossos corações.[53]
Ora, é precisamente desta experiência de sermos amados e termos
despedaçado todos os ídolos que exala o amor que daremos – qual bom perfume, como
diz São Paulo – aos homens: “(...) somos para Deus o bom odor de Cristo” (II
Cor 2, 15). É esta experiência que – sob a graça – queremos fazer fluir sobre o
mundo.
Mas por onde começar a amar? Santo
Agostinho depara-se com o primeiro mandamento: “Amarás ao Senhor teu Deus de
todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito. Este é o maior
e o primeiro mandamento” (Mt 22, 37-38). Porém, fica inquieto, pois se
pergunta: como amar a Deus, se está escrito, “Ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1,
18)? Entretanto, é iluminado pela continuação do versículo: “O Filho unigênito,
que está no seio do Pai, este o deu a conhecer” (Jo 1, 18). Contudo, volta a
ficar angustiado, pois Cristo não está mais fisicamente entre nós. Todavia, é
novamente socorrido pela Sagrada Escritura, a saber, pela conclusão de Mateus
25: “Em verdade vos digo: cada vez que o fizestes a um desses mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40). Então
compreende: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é
mentiroso” (I Jo 4, 20). De fato – pensa Agostinho – devo amar a Deus, também amando
os irmãos – máxime os mais pequeninos – pois Nosso Senhor se identificou com
eles. Donde o Santo Doutor dar eco às palavras de São João: “(...) quem não ama
seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (I Jo 4, 20). Podemos
dizer doutra forma, quem não ama o irmão necessitado, não ama a Deus, pois
realmente não chegou a conhecer a Deus, não O reconhecendo no irmão: “(...) a
mim o fizestes”. O Santo Doutor conclui então: Deus – a quem não vemos – mandou-nos
amar a Ele, amando-O no irmão, a quem vemos. Daí concluir admirado num Sermão:
“Principiai a amar o próximo”[54].
Em outro lugar, Santo Agostinho explica doutra maneira. Se, pois, “É com
um mesmo amor – a caridade – que amamos a Deus e ao próximo, mas amamos a Deus
por Deus, e ao próximo por causa de Deus”[55],
segue-se “(...) que aqueles dois preceitos – a do amor a Deus e ao próximo –
não podem existir um sem o outro”[56].
É um e mesmo preceito. Nosso Santo compreende então a razão pela qual São João
conclui: “E este é o mandamento que dele recebemos: aquele que ama a Deus, ame
também seu irmão” (I Jo 4, 21). Mas assevera, não podemos nos esquecer de como
amar o irmão, a saber, “(...) como eu vos amei”: “Amai o próximo, e examinai em
vós como amais o próximo”[57].
E como Cristo nos amou. É São João quem nos diz: “(...) ele deu sua vida por
nós” (I Jo 3, 16). Então, como devemos amar o irmão? O mesmo Apóstolo nos diz:
“(...) nós também devemos dar nossa vida pelos nossos irmãos” (I Jo 3, 16). São
João diz: “Todo aquele que odeia seu irmão é homicida (...)” (I Jo 5, 15). O
que quer ele dizer com isso? Quer dizer que o amor cristão é radical: ou amamos
o próximo dando a vida – gastando a vida – ou
não só não amamos o próximo, mas – no âmbito cristão – tornamo-nos um
homicida, pois não o levamos para Deus. É este amor de entranhas que faz a
Igreja. É dele que ela vive.
Mas existe algum modo de amar diretamente a Deus? Acerca disso, é
interessante notar que Santo Agostinho não se cansava de repetir o dito do
livro da Sabedoria: “Mas tudo dispusestes com medida, número e peso” (Sb 11,
20). E o mesmo raciocínio é retomado em várias de suas obras: todas as coisas
devem ser amadas segundo a sua medida, isto é, de forma ordenada. Entretanto,
quando fala do amor a Deus num Sermão, ele abandona “medida, número e peso” e
diz que, em relação ao amor a Deus, “ (...) a medida própria [do amor] é amar
sem medida”[58]. Muitos irão ver nessa assertiva, certo
irracionalismo. Outros, ao invés, apenas uma metáfora poética. Não assim para
nós. Razão – ratio (is) em latim –, numa primeira acepção,
significa cálculo, conta e implica número e medida. O que
Agostinho está a dizer? Está a nos dizer que – sob a tutela da Igreja e de um
diretor espiritual–, uma vez descoberta a vontade de Deus para as nossas vidas,
não devemos “medir” esforços, nem “pensar” duas vezes nem “calcular” nem “pesar”
os prós e os contra para cumpri-la. Ressoa a palavra do Apóstolo: “(...) Somos
loucos por causa de Cristo (...) [Nos
stulti propter Christum]” (I Cor 4, 10). Dito doutro modo, feito o devido
discernimento espiritual, devemos amar Jesus até à loucura, como dizia Santa
Terezinha. É claro que isso é obra do Espírito. Santo Agostinho chega a afirmar
que a caridade é uma espécie de “boa cobiça”: “(...) a boa cobiça, ou seja, a
caridade que ele (o Espírito Santo) difunde em nosso coração (...)”[59]. Sim,
devemos “cobiçar” a Deus, amando-O desmesuradamente.
E aqui entramos noutro tema, o da oração. Na concepção de Agostinho, só
há oração quando há desejo, amor, atração. E o desejo, por si só, já é uma
oração. Amor e desejo, para o Santo Doutor, intercalam-se, posto que quem
deseja, ama, e quem ama, deseja, e quem deseja e ama, clama, isto é, ora. Em
uma palavra, amar é orar e orar é amar. Com outras palavras ainda, desejar é
orar e orar é desejar. De modo que, da mesma forma que se pode amar e desejar
em silêncio, pode-se também orar no silêncio. Eis uma tríade inseparável: amor,
desejo e oração. Se contínuo for o nosso amor, contínua será a nossa oração. Ou
ainda: se contínuo for o nosso desejo, contínua será a nossa oração. Por isso:
Teu desejo é
tua oração [Ipsum
enim desiderium tuum, oratio tua est]; e
se o teu desejo é contínuo, contínua é a oração [et si continuum desiderium, continua oratio]. Com razão diz o Apóstolo:
“Orando sem cessar” (I Ts 5, 17). Acaso sem interrupção dobramos os joelhos,
prostramo-nos, ou levantamos as mãos, para que ele diga: “Orai sem cessar?” Ou
se afirmamos que assim nós rezamos, penso que não podemos afirmar fazê-lo sem
interrupção. Existe outra oração interior sem interrupção, que é o desejo [Est alia interior sine intermissione oratio,
quae est desiderium]. Seja o que for que faças, se desejas aquele sábado,
não interrompes a oração. Se não queres interromper a oração, não cesses de desejar
[Si non vis intermittere orare, noli
intermittere desiderare]. Teu contínuo desejo é tua contínua voz [Continuum desiderium tuum, continua vox tua
est] Calarás se desistires de amar [Tacebis,
si amare destiteris]. Quais são os que calaram? Aqueles dos quais foi dito:
“E pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará” (Mt 24, 12).
Esfriamento da caridade é o silêncio do coração [Frigus caritatis, silentium cordis est]; ardor da caridade é o
clamor do coração [flagrantia caritatis,
clamor cordis est]. Se a caridade sempre permanece, sempre clamas; se
sempre clamas, sempre desejas; se desejas, lembras-te do repouso.[60]
Pois em quem
deseja, mesmo que a língua cale, o coração canta [Nam qui desiderat, etsi lingua taceat, cantat
corde]; aquele, porém, que não tem
desejos, mesmo que fira os ouvidos humanos com seus clamores, está mudo diante
de Deus [qui
autem non desiderat, quolibet clamore aures hominum feriat, mutus est Deo].[61]
Não é coisa ímproba
nem inútil orar longamente quando temos tempo, isto é, quando isso não impede
outras incumbências de ações boas e necessárias, se bem que ainda nestas ações
seja necessário orar sempre com o desejo [desiderio illo semper orandum sit]. Na verdade,
orar longamente não equivale, como alguns acreditam, a orar com muitas
palavras. Uma coisa é falar longamente, outra coisa é um diuturno afeto [Aliud est sermo
multus, aliud diuturnus affectus]. Orar detidamente consiste numa
excitação [excitatione], diuturna e pia [diuturna et pia], do pulsar do coração [cordis pulsare] para aquele que invocamos.[62]
Em outras palavras, para Agostinho, orar é, fundamentalmente, desejar. Se
oramos com palavras – e isso não é algo vazio – é só para despertar em nós
maior anelo. Oramos a Deus também com palavras somente para aumentar o nosso
enlevo por Ele. Por isso, a oração com palavras – certamente indispensável –
não é, contudo, o fundamento da oração; a regra é orar com um contínuo e íntimo
desejo por Deus. A essência da oração está no desejo. Se oramos também com
palavras – ratificamos – é apenas para estimular ainda mais o nosso desejo de
estar com Deus. Santa Terezinha do Menino Jesus dizia que a oração pode ser um
simples “ai”, dito no silêncio do nosso coração. Afirma Santo Agostinho:
Nós oramos
sempre com um desejo contínuo que brota da fé, esperança e caridade. Mas em
intervalos fixos e em dadas circunstâncias oramos a Deus também com palavras [Sed ideo per certa intervalla horarum et
temporum etiam verbis rogamus Deum], a fim de que, mediante aqueles sinais,
estimulemos a nós mesmos e nos demos conta do quanto havemos progredido neste
desejo, e nos estimulemos a mais vivamente aumentá-lo em nós.[63]
O Santo Bispo de Hipona já foi chamado de Doutor do Desejo, porque, para ele, o desejo é uma espécie de
“nostalgia” por Deus e é esta espécie de “saudade” de Deus que nos faz tender
para Ele. É, pois, a intensidade do nosso desejo que define a medida da graça e
da profundeza do conhecimento de Deus que teremos, visto que é o desejo que
dilata o coração para receber a graça e o amor. E quanto mais dilatado o
coração, mais poderá ser preenchido pelo amor e conhecimento de Deus:
O desejo é o
regaço do coração [Desiderium, sinus cordis est]. Receberemos, se dilatarmos o
desejo o quanto pudermos [capiemus, si desiderium quantum possumus extendamus][64].
Em outra obra, chega a dizer que a vida do verdadeiro cristão resume-se
num santo desejo, cujo termo só se dará na visão. Para Agostinho, o que nos
salvará é o coração inquieto que Deus nos deu: “fizeste-nos para ti, e inquieto
está o nosso coração, enquanto não repousa em ti”[65]. Ouçamo-lo:
Toda a vida
de um bom cristão é um santo desejo [Tota vita christiani boni, sanctum
desiderium est]. Ora, o que desejas não vês, mas desejando-O,
capacitas-te para que, quando vier o que verás, enchas-te dEle. (...) Vivamos,
pois, irmãos, de desejo, já que devemos ser plenificados.[66]
Noutro Sermão, Agostinho –
desta sorte referindo-se à oração com os irmãos –compara-a com uma espécie de
“embriaguez”. A metáfora é forte e muito elucidativa, pois nos mostra que o
Santo Doutor reconhece e recomenda aos seus a mesma “embriaguez” espiritual
experimentada pelos primeiros cristãos em Pentecostes: “Estão cheios de vinho
doce!” (At 2, 13). Diz ele:
Diz o
Apóstolo: Não vos embriagueis de vinho que leva à libertinagem. E, como
querendo ensiná-los com o que deveriam embriagar-se, acrescenta: Mas sejais repletos do Espírito Santo,
cantando entre vós salmos, e hinos, e cânticos espirituais, cantando em vosso
coração ao Senhor (Ef 5,18 s). Quem se alegra no Senhor [Qui laetatur in
Domino] e canta a ele com grande exultação
[magna
exsultatione], não se assemelha
porventura a alguém que está ébrio [nonne ebrio similis est]?
Aprovo esta embriaguez [Probo istam ebrietatem]![67]
A caridade é, pois, um fogo abrasador que o Espírito coloca em nós. Como todo amor, ela também é um movimento, um
impulso, uma espécie de pulsão voluntária, só que não para as coisas sensíveis
e sim para Deus. Ela é um ímpeto que nos leva para Deus, que nos conduz a Ele. Por
isso, podemos dizer que somos salvos pela caridade, pois por ela somos como que
transportados para Deus. Por isso mesmo, podemos afirmar ainda, que somos
salvos pelo desejo de Deus, que é oração. De fato, é o ardor que Ele mesmo
acende em nossos corações que nos move para Ele. E quanto mais fervorosos
formos neste nosso desejo, mais nos aproximaremos dEle. E um dia, atraídos e
inflamados por Seu amor flamejante, repousaremos nEle, e o nosso coração não
mais queimará, a não ser para permanecermos juntos dEle para sempre:
Teu dom nos
inflama e nos leva para o alto; nós nos inflamamos e nos movemos. Subimos os
degraus do coração, cantando o cântico dos degraus. É o teu fogo, o teu fogo
santo que nos inflama e nos move, enquanto subimos para a paz de Jerusalém.
(...) Aí seremos colocados por tua vontade benigna, e nada mais desejaremos
senão aí permanecer eternamente.[68]
Bela, pois, é a alma que ama a Deus e, porque ama, tem sede de Deus. Bela
é a alma que pode dizer: “Como a corça bramindo por águas correntes, assim
minha alma brame por ti, ó meu Deus! Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo”
(Sl 42, 2-3). É o amor que nos torna belos. O amor é o autor da beleza e não a
beleza do amor. Não é a beleza que causa o amor – diz Agostinho –, mas é o amor
que causa a beleza. Deus – que é Amor – é o Belo e o Criador da beleza:
Amando-O (i.é.,
Deus) tornamo-nos belos. (...) A nossa alma, meus irmãos, é feia por causa da
iniquidade; amando a Deus, torna-se bela. Qual amor torna bela a alma que ama?
Deus é sempre belo, nunca há nele deformidade ou mudança. Amou-nos primeiro, Ele
que é sempre belo, e amou-nos quando éramos feios e disformes. Mas não nos amou
para deixar-nos feios, senão para mudar-nos e nos tornar belos de feios que
éramos. E de que modo seremos belos? Amando a Ele, que é sempre belo. Quanto
cresce em ti o amor, tanto cresce a beleza, porque a própria caridade é a
beleza da alma.[69]
É este amor, que encontramos na oração, qual dom, é esta beleza, que
nasce deste amor, que nos torna belos e torna capazes de ir ao mundo e
encantá-lo, conquistando-o pela beleza, convertendo-o por amor. Terminemos com
o apelo do Santo Pastor: “Venham para a Igreja Católica, e possuirão conosco
não só a terra, mas ainda aquele que fez o céu a terra”[70].
[1] AGOSTINHO. Confessionum libri tredecim. XIII,
9, 10. Disponível: < http://www.augustinus.it/latino/confessioni/conf_13.htm>
Acesso em: 31/01/2013. (A tradução é
nossa).
[2] Idem. Ibidem.
[3] AGOSTINHO. Comentários aos Salmos. 2ª ed. Trad. Monjas Beneditinas. São Paulo:
Paulus, 2005. v. I. 31 II, 5. p. 354.
[4] AGOSTINHO. Dos Bens da Viuvez. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Zolferino
Tonon. São Paulo: Paulus, 2000. 21, 26. pp. 263 e 264.
[5] AGOSTINHO. Confessionum libri tredecim. II,
1, 1. Disponível: < http://www.augustinus.it/latino/confessioni/conf_02.htm>
Acesso em: 31/01/2013. (A tradução é
nossa).
[6] Idem. Ibidem. (A tradução
é nossa).
[7] AGOSTINHO. Comentário do Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. Trad. José
Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1952. v. IV. LXXV, 5.
[8] AGOSTINHO. A Trindade. 2ª ed. Trad. Agustinho Belmonte. Rev. Nair de Assis
Oliveira et al. São Paulo: Paulus, 1995. VIII, 8, 12.
[9] Idem. Ibidem. IX, 2, 2.
[10] AGOSTINHO. Comentários aos Salmos. 31 II, 5. p. 354.
[11] Idem. Ibidem.
[12] Idem. Ibidem.
[13]
Idem. Ibidem.
[14] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. LXV, 1.
[15] AGOSTINHO. A Cidade de Deus. 4ª ed. Trad. Oscar Paes Lemes. Rio de Janeiro:
Vozes, 2001. XIV, XXVIII. p. 169.
[16] Idem. Ibidem. XV, XXII.
p. 207.
[17] AGOSTINHO. A Trindade. XIV, 14, 18.
[18] Idem. Comentário ao
Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. LXXXVII, 1.
[19] Idem. A Trindade. 2ª ed.
Trad. XV, 18, 32.
[20] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed.
Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v. II.
LXXXVII, 1.
[21] Idem. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. LXV, 2.
[22] AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Paulo
Bazaglia e Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2002. I, 22, 21.
[23] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XXXII, 8.
[24] Idem. Ibidem. (O
parêntese é nosso).
[25] Idem. A Trindade. XV, 18, 32.
[26] AGOSTINHO. A Verdadeira Religião. Trad. Nair de Assis Oliveira. Rev. Honório
Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2002. 47, 90.
[27] Idem. Comentário ao
Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. LXVII, 2.
[28] Idem. Ibidem. LXV.
[29] AGOSTINHO. De Doctrina Christiana libri quatuor. IV, 18, 35. Disponível em: <http://www.augustinus.it/latino/dottrina_cristiana/dottrina_cristiana_4.htm>. Acesso: 02/02/2014. (A
tradução é nossa).
[30]
Idem. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia
do Senhor. LXXII, 3
[31] Idem. Ibidem.
[32] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Trad. Aimom- Marie
Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. I-II, 113, 9, C.
[33] AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. I, 30, 31.
[34] Idem. A Verdadeira Religião.
46, 89.
[35] Idem. A Doutrina Cristã.
I, 30, 33.
[36] JOÃO CRISÓSTOMO. Homilias sobre a Carta aos Romanos.
Trad. Mosteiro de Maria Mãe do Cristo. Rev. Iranildo Bezerra Lopes. São Paulo:
Paulus, 2010. Nona Homilia. p. 176.
[37] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XVII, 6.
[38] AGOSTINHO. In Epistolam Ioannis ad Parthos tractatus decem. 7, 8. Disponível
em: < http://www.augustinus.it/latino/commento_lsg/omelia_07_testo.htm>.
Acesso em: 02/02/2014. (A tradução é nossa).
[39] AGOSTINHO. A instrução dos catecúmenos. 2ª ed. Trad. Maria da Glória Novak.
Rio de Janeiro: Vozes, 2005. 4, 8. (O negrito
é nosso).
[40] Idem. Comentário aos Salmos.
31, II, 5. p. 355.
[41] FRANCA, Leonel. Catolicismo e Protestantismo. Rio de
Janeiro: Schmidt Editor, 1933. p. 1.
[42] AGOSTINHO. A instrução dos catecúmenos. IV, 7. p. 44.
[43] Idem. Ibidem. IV, 8. p.
49.
[44] Idem. Ibidem. IV, 8. p.
48-49.
[45] Idem. Ibidem. IV, 8. p.
49.
[46] Idem. A Doutrina Cristã.
I, 40, 44.
[47] Idem. Comentário ao
Evangelho de São João: Médico e Alimento. XXIX, 4.
[48] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de João: O Verbo de Deus. 2ª ed. Trad. José
Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v. I. XIII, 5.
[49] Idem. Ibidem.
[50] Idem. A Doutrina Cristã.
I, 6, 6.
[51] Idem. Comentário ao
Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. LXXXIX, 5.
[52] Idem. Ibidem. XC, 1.
[53] AGOSTINHO. Sermo 223 A. 5. Disponível em <
http://www.augustinus.it/latino/discorsi/discorso_284_testo.htm>. Acesso em:
14/12/2013. (A tradução e o negrito são nossos).
[54] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XVII, 8.
[55] Idem. A Trindade. VIII,
8, 12. (Os travessões são nossos).
[56] Idem. Ibidem. (Os
travessões são nossos).
[57]
Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Médico
e Alimento. XVII, 8.
[58] AGOSTINHO. Epistola 109. 2. Disponível em: <http://www.augustinus.it/latino/lettere/lettera_110_testo.htm>. Acesso em: 07/02/2014: “Ipse
modus est sine modo amare.”
[59] AGOSTINHO. O espírito e a letra. Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus,
1998. IV, 6: “(...) concupiscentiam bonam, hoc est caritatem diffundens in
cordibus nostris (...)”
[60] Idem. Comentários aos Salmos.
37, 14, 10. pp. 589 e 590.
[61] AGOSTINHO. Comentários aos Salmos. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco.
São Paulo: Paulus, 1997. v 2. 86, 1. p. 874.
[62] AGOSTINHO. Epistola 130. 10, 19-20.
Disponível em: < http://www.augustinus.it/latino/lettere/lettera_131_testo.htm>.
Acesso em 07/02/2014. (A tradução é nossa).
[63] AGOSTINHO. Epistola 130. 9, 18. Disponível em: <
http://www.augustinus.it/latino/lettere/lettera_131_testo.htm>. Acesso em: 07/02/2014.
(A
tradução é nossa).
[64] AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. 2ª ed.
Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1960. v.
III. 40, 10.
[65]
AGOSTINHO. Confissões. 2ª ed. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. Rev. Antônio da
Silveira Mendonça e H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1997. I, 1, 1.
[66] AGOSTINHO. In Epistolam Ioannis ad Parthos Tractatus Decem. 4, 6. Disponível
em < http://www.augustinus.it/latino/commento_lsg/omelia_04_testo.htm>. Acesso em: 07/02/104. (A tradução
é nossa).
[67] AGOSTINHO. Sermo 225. 4, 4. Disponível: < http://www.augustinus.it/latino/discorsi/discorso_296_testo.htm>. Acesso em: 07/02/2014. (A tradução é nossa).
[68] Idem. Confissões. XIII,
9, 10. p. 411.
[69] AGOSTINHO. In Epistolam Ioannis ad Parthos Tractatus Decem.
9, 9. Disponível em:
<http://www.augustinus.it/latino/commento_lsg/omelia_09_testo.htm>. Acesso e: 07/02/2014. (A
tradução e o parêntese são nossos).
[70] Idem. Comentário ao
Evangelho de João: O Verbo de Deus. VI, 26.
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