Por Ian Farias
O rosto de Deus está cunhado na humanidade. Assim, o homem, feito
à imagem e semelhança do seu Criador, não deve aniquilar-se com ideais que se
contraponham à verdade instaurada no mundo pelo próprio Cristo. Ele Se-nos
manifesta como promessa para a edificação da novidade do Reino de Deus,
restitui a dignidade do homem e humaniza o que outrora se perdera.
Vivemos numa cultura que tende a essencializar o superficial e a superficializar
o essencial. Esta realidade, que tem nos levado a uma profunda crise
existencial – já retratada em carta pelo encerramento do Ano da Fé –, faz-nos
repensar a centralidade da nossa vida e a forma com que temos dirigido o dom da
liberdade que nos fora confiado pelo Senhor. Ela é como um brado para que haja
desde agora um novo despertar nos corações, que venha a combater esta ideologia
que descerra a esperança da humanidade e horizontaliza para o homem ideais de
morte e desespero, versados numa concepção adversa aos valores éticos e morais,
que são um suporte essencial para que possa a contemporaneidade se focar e
deslumbrar o alvorecer de uma nova vida, firmada sobre as coisas que realmente
podem conceber sentido às ações e pensamentos humanos.
Neste campo assaz secularizado que é o mundo hodierno, e
que, desde que se propôs a aniquilar Deus da sua centralidade, tem posto os
homens a saciarem-se com meios que nada mais fazem do que causar um ingente
vazio e uma insaciável busca que resvala-se em prazeres e meios abreviados de
felicidade, vemos o desvio no qual alguns dos nossos adentraram ao contemplarem
uma tal concepção de felicidade onde há aflição e dor; vê-se glória onde há
tristeza e vê-se moral onde há promiscuidade. Tudo isso faz com que o espírito
de busca e o vazio constante se encontrem ainda mais presentes em seu âmago. De
fato, temos em mente que este problema vem estendendo-se na vicissitude dos
séculos e fazendo-se evidenciar agora ainda mais.
Mas, é sobretudo no cotidiano que vamos nos apercebendo
dessa mudança brusca que afeta veementemente e destrói os ideais daqueles que
pretendem colocar-se como pessoas a serviço desta retomada de valores e de
convicções cristãs, éticas e morais. É necessário que se redescubra em primeiro
plano que o Cristianismo, a Palavra de Deus, não é uma ideia, um conceito, mas
é uma Pessoa, o Verbo Encarnado do Pai que se fez homem para gerar vida no seio
da humanidade, vida eterna, onde poder algum jamais se infiltrará em detrimento
de concepções vazias e buscas inúteis.
O Venerável Papa Pio XII |
Já fomos advertidos pelo Venerável Papa Pio XII sobre as
correntes de pensamento moderno que se infiltraram na sociedade para
conturbarem o nosso tempo com ideologias anticristãs e abusivas: “De fato,
enquanto por um lado perdura o falso racionalismo que tem por absurdo tudo o
que transcende e supera a capacidade da razão humana, e com ele outro erro
parecido, o naturalismo vulgar que não vê nem quer reconhecer na Igreja de
Cristo senão uma sociedade puramente jurídica; por outro lado grassa por aí um
falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os
limites intangíveis entre as criaturas e o Criador” (Mystici Corporis, 9).
A partir deste ideal podemos objetivizar uma maior
consciência sobre estas mentalidades que procuram incrementar aquilo que, aos
seus olhos, os valores tradicionais e a fé autêntica não puderam oferecer ao
homem, sobretudo no que tange ao ratio
ou, como definiria Agostinho, ao intellectus.
Contudo, ao mesmo tempo em que combatemos essas correntes que visam elevar
impropérios à fé, somos chamados a uma purificação de nossa consciência
indagando-nos em que âmbito deixou a Igreja de fazer com que o Reino de Deus
fosse mais conhecido e amado.
Conhece-te a ti mesmo. |
“γνῶθι σεαυτόν – Conhece-te
a ti mesmo”. Este aforisma cunhado no pátio (em grego: pronaos) do Templo de Apolo em Delfos, remota em um período bem
anterior à chamada Era Cristã. Diógenes Laércio atribui a máxima a Tales,
famoso poeta e orador da época. Por outro lado notamos que Antístenes nos seus
escritos As sucessões dos filósofos
atribui a Femonoe, poetisa grega mítica, embora tenha admitido que a máxima foi
apropriada por Chilon. Porém, independente de quem a tenha escrito, este clamor
é em si uma instigação para a busca do conhecimento da Verdade, imanente ao
homem, e que tem sua vertente voltada ao Cristo Jesus que diz: “Eu sou o
caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6).
Esta busca sempre esteve no cerne das discussões
filosóficas, teológicas e morais. A todos apraz possuir a verdade. No decurso
dos tempos os homens tomaram-se de uma insaciável sede de redescobrirem-se em
um mundo onde a sua face fora lacunada por ideologias e tentativas falhas de
uma auto definição. Como poderíamos então definir o homem diante deste drástico
cenário e da face ofuscada por ele de Deus?
Vem-me à mente nesta hora as palavras de Santo Irineu, que
de forma majestática já empenha-se a fazer esta correlação do dom de Deus para
o homem e da necessidade de Deus que o homem possui naturalmente: “Gloria enim Dei vivens homo, vita autem
hominis visio Dei – A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a
visão de Deus” (Tratado Contra as
Heresias, Lib. 4,20,5-7:Sch 100, 640-642.644-648).
Evidente é que esta necessidade não se traduz numa
dependência escravizadora, que subjuga o homem a um poder celestial e que o faz
desprover-se da sensatez e da razão; ao contrário, o poder de Deus tem caráter
libertador e salvífico, tomado no sentido mais profundo e sincero da palavra:
estimula o homem a fazer uso da razão e o faz conhecer os motivos da sua fé. Temos
podido, outrossim, presenciar a deflagradora forma com que a mentalidade do
homem tem se subtraído aos princípios da moral e da fé cristã. Podemos
percebê-lo em primeiro plano por uma constatação de instabilidade na vida de fé
do homem: em nossa sociedade temos tempo para tantas coisas, tempo para tudo que
é supérfluo. Estamos ávidos em poupar tempo, mas quanto mais nos tornamos ágeis
e com modernos meios de comunicação que a isto nos favoreçam, menos tempo temos
para Deus e, consequentemente, para o próximo. Pude retratar isso em minha
reflexão para a Solenidade do Natal de 2013.
Necessitamos recolocar Deus no centro da humanidade. Um
mundo sem Deus está destinado à ruína, sua estrada é a perdição, seu desfecho é
a morte, e o seu mal reside naquelas degenerações que se desencadeiam a partir
da falta da sensibilidade humana para retratar a realidade divina que lhe é
imprescindível. Neste aspecto, deveríamos aqui falar de uma liberdade bifurcada
pelos sistemas e pelas ideais projetados pela procriação do antropocentrismo. O
humano enquanto ser social depende de uma relação, não pode viver isolado,
projetado em si, e neste sentido temos muito a aprender com as colocações
antropocêntricas. Por outro lado este mesmo antropocentrismo não pode ser a
causa de uma cessão na relação homem – Deus.
Desde que se propôs descentralizar Deus, tem se tornado o
homem um artífice de concepções variadas sobre o querer e a liberdade enquanto
fruto da sua vontade, portanto não respeitando limites e deveres. Projetou-se
uma realidade simultaneamente religiosa em sua aparência mas mundanamente
tomada por dentro. Enquanto “senhor de si” o homem não poderá jamais travar um
diálogo – que é mais que necessário! – com o divino. Acaba a vida por tornar-se
enfadonha se já não mais possui aquela Paz transmitida pelo Senhor ainda na
noite da Ressurreição e sucedida imediatamente pelo Pentecostes joanino que se
dá no sopro de Jesus e na entrega do Espírito (cf. Jo 20, 22).
Seria mais que necessário pensámo-lo como aquele que deve estar (compreender) em Deus. Para isto
uma frase bíblica retrataria bem a realidade aqui aludida: “Si non credideritis, non permanebitis – Se
não crerdes (se não vos agarrardes a Jahvé), não tereis apoio algum"
(Is 7,9). Lutero tentou reproduzir a fórmula como: “Se não crerdes, não
ficareis”. Ter apoio e ficar ganham aqui um sentido ulterior
àquele que conhecemos. Este “apoio” do qual fala a Escritura deriva da mesma
raiz de confiar-se, fidelidade, apoiar-se em algo ou em alguém, crer. Esta narração para além de uma visão espiritual
apresenta em sua conjuntura uma análise antropológica do homem e, ao mesmo
tempo, a necessidade que brota imanentemente como algo insubstituível para o
peregrinar neste mundo mediante a instância suprema que é o divino. Embora não
haja uma referência direta ao nome de Deus, temos, contudo, a terminologia que
manifesta uma confiança em Jahvé. O
profeta coloca na boca do Senhor estas palavras que alertam a uma consciência
da Fonte de toda a força e sabedoria, pelo qual subsiste a fé.
A terminologia grega expõe uma forma diversa: “Se não
crerdes, não compreendereis”.
Para muitos teólogos o verbo compreender deforma o sentido original da frase, fazendo com que a
fé seja vista de uma forma intelectualizada: em vez de levar o homem a uma
conformação da vontade de Deus, um apoiar-se Nele, leva-o a uma dimensão
racionalizada. Com o devido respeito a algumas concordâncias no excesso de
racionalização, não creio que esta mentalidade deva ter-se por tão correta, uma
vez que no apoiar-se em Deus (crer)
reside a compreensão do mistério divino. Obviamente que este mistério
cognoscível não pode o homem abarcá-lo em seu todo, limitando-se ao que quisera
o Altíssimo dá-lo a conhecer.
Esta mesma fé contrapõe-se de forma radical ao factível e a
autoconfiança. É antes de mais um “lançar-se” nas mãos de Deus; depois é também
uma realidade que não está sujeito ao feito, mas independe da ação humana; não
equivale ao labor do homem para a concretização dos seus sonhos. Manifesta-se
como algo que pertence ao não-feito. E porque não pode concretizar-se é que
fundamenta-se como fé, confiança, crer. Com efeito, não vive o homem somente de
suas potencialidades e dotes, move-se também pelos sentimentos, desejos e
outras coisas que são irredutíveis ao conhecimento e que se orientam pelo sensus fidei ou pelos instintos.
Mas voltemos ao versículo do qual parece-nos que Irineu faz
uma confirmação categórica: O homem que não crê
permanece sem apoio, desajustado e sem rumo. A fé entra como “bússola”
da vida, a “visão” que fala o Santo Doutor. Se pensarmos na situação
pós-moderna poderemos contemplar a tão falada “cegueira” que aflorou a alguns
séculos desde que fomos tomados por uma cultura homocêntrica e egocêntrica,
prevaricando o homem em si e em sua íntima relação com Deus.
A cultura de desvalorização também despontou de forma
drástica como uma espécie de decreto da morte moral do homem. E este deve ser o
primeiro passo para a busca da verdade: o conhecimento de si. Somente quando
conhece-se como um ser frágil, passageiro, e dependente do seu Criador, pode o
homem redescobrir os seus valores e caminhar para o encontro com a verdade que
é a via legítima do conhecimento a Deus. Temos presente duas vertentes:
conhecer a si e conhecer a Deus. O fechamento à realidade transcendental é
também um descerramento ao conhecimento de si e dos traços imanentes do homem.
Quando, ao contrário, está ele em Deus, compreende-se e assume o caminho que o
orienta para a verdade, esta por sua vez diferenciada das falácias que
embuçam-na com mensagens atraentes e mais cômodas.
O “conhecer-se” não é apenas um aforisma transcrito num
templo, mas é o processo onde o homem coloca-se como real sujeito da criação e
custódio dos bens que lhe fora confiado, ainda que outrora tenha transgredido a
relação com Deus por meio dos primeiros pais. Conhecer-se é contemplar-se, não a partir do exterior,
mas no interior, buscando sempre a
sua posição na salvífica disposição da ordem da criação. Nas linhas precedentes
Irineu ainda afirmou-nos algo que vem bem a notar-se nesta realidade: “o Verbo
se tornou o administrador da graça do Pai para proveito dos homens. Em favor
deles, pôs em prática o seu plano: mostrar Deus ao homem e apresentar o homem a
Deus. No entanto, conservou a invisibilidade do Pai: desta forma o homem não
desprezaria a Deus e seria sempre estimulado a progredir. Ao mesmo tempo,
mostrou também, por diversos modos, que Deus é visível aos homens, para não
acontecer que, privado totalmente de Deus, o homem chegasse a perder a própria
existência” (Ibidem).
Já aqui evidencia-se a inconstância do homem sem Deus ou a
perda de existência que o deforma enquanto ser de realidades diversas e de
necessidades existenciais. Os gregos antigos criam que os deuses operavam pelas
mais diversas formas e em diversas manifestações naturais. Assim tínhamos Zeus
como deus do Olimpo; Hades, deus dos mortos; Hipnos, deus do sono; Gaia, a
terra, chamada “deusa-mãe” e, por sua vez, mãe de Cronos, opífice da crueldade
em devorar seus filhos, deus do tempo e pai de Zeus, o mesmo Cronos que devora
ainda hoje o tempo dos filhos de Deus, que não mesuram os instantes cruciais,
mas deixam-se levar por lapsos momentâneos de características não condizentes
com o querer divino.
Aos transeuntes da história apraz-me recordar que Deus entra
na temporalidade do homem por meio de Cristo, para que ele não se perdesse
completamente. Mostra-se próximo e acessível ao tornar-se sujeito às situações
humanas e temporais, não como pura dicotomia do mistério, mas essencialmente
como uma plausível manifestação da sua identidade que São João definira como
“amor” (cf. 1Jo 4,8). Portanto,
podemos afirmar que o processo de autoconhecimento sem Deus é apenas uma
racionalização de si, desprovida de quaisquer sentimentos e que o homem não
alcança de per si a verdade, mas ela
provém como dom de Deus para o conhecimento de si e Nele.
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