Deus nos disse uma Palavra breve, uma única: Cristo. Felipe exclamou:
“(...) mostra-nos o Pai e isso nos basta!” (Jo 14, 8 ). Nosso Senhor não lhe disse palavra sobre,
mas pediu apenas que olhasse para Ele: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14, 9). Também
quando se calou ante a pergunta de Pilatos sobre o que era a verdade (Jo 18,
38), aquietou-se, porém quão estrondosa foi a resposta daquele e naquele silêncio:
a Verdade não é uma coisa, mas um “Quem”, uma Pessoa. Pilatos estava diante da
Verdade. A resposta para Pilatos era Jesus em pessoa: “Eu sou a Verdade (Ego
sum veritas)” (Jo 14, 6). Este é o sentido da palavra de Santo Agostinho. Em
Seu Ministério, Cristo nada disse acerca de, disse-Se. Sua doutrina era Ele próprio:
“(...) sua doutrina – diz Ele – é ele mesmo (suam
doctrinam dixit, seipsum)”[1]. Neste
sentido, numa prédica sobre o mesmo Evangelho
de João, Santo Agostinho declara:
“Quem me vê, vê o Pai” |
Cristo prega a
Cristo (Christus Christum praedicat), porque se prega a si mesmo (quia seipsum
praedicat).(...) Cristo se prega a si (Christus praedicat se).[2]
Também num Sermão Sobre o Credo,
Santo Tomás afirma que Cristo não nos trouxe uma mensagem ou uma carta de Deus,
sendo Ele próprio a Palavra, a Carta de Deus para nós:
Como dissemos
acima, o Filho de Deus é o Verbo de Deus, e o Verbo de Deus Encarnado é como a
palavra de Deus escrita em uma carta (Verbum Dei incarnatum est sicut verbum
scriptum in charta).[3]
Do quanto dissemos, temos que, aderir à doutrina de Cristo é aderir à sua
Pessoa, é unir-se vitalmente a Ele. Neste sentido, já dizia Penido, o maior dos
nossos em Santo Tomás:
(...) O divino
Mestre identifica-se à própria doutrina – “Eu sou a verdade” – enquanto o sábio
se distingue da sua descoberta e o filósofo do seu sistema. Tanto assim que
podemos adotar uma teoria sem lhe conhecer o autor, enquanto aceitar o
ensinamento de Cristo é aderir à pessoa de Cristo: a sua revelação é ele mesmo.[4]
Ora, a doutrina a testemunhar não é apenas
teoria senão vida, e vida que consiste em aderir a outra vida: a vida pessoal
de Cristo. A pessoa de Platão ou de Aristóteles, por exemplo, distingue-se de
sua doutrina. Não assim Cristo: “Eu sou o caminho, a verdade, a vida”, diz ele
(Jo 14, 6). Aderir à verdade cristã é aderir à pessoa de Cristo, é viver de
Cristo, ter em si o pensamento e o amor de Cristo. (...) Logo, testemunhar o
cristianismo não pode reduzir-se a repetir fórmulas cristãs, nem mesmo a
aceitar essas fórmulas. Testemunhar, é aceitar a pessoa mesma de Cristo, entregando-se
a ele, observando o que ele prescreveu.[5]
E há mais. Conhecer Deus, em Cristo, é conhecer o próprio Cristo: “Ele é
por tal forma o Revelador, que não apenas ouvindo-o as palavras, mas
simplesmente conhecendo-o, conhecemos a seu Pai (Jo 12, 45; 14, 9)”[6]. E
ainda:
Jesus não é
apenas um amigo de Deus como Abraão, nem um simples mensageiro de Deus, como os
profetas. Jesus Cristo é Deus propriamente. Logo podemos dizer em verdade: Deus
é homem. Olhando a face de Cristo, é a face do Pai que contemplamos: “Quem me
viu, viu o Pai” (Jo 14, 9).[7]
Destarte, Nosso Senhor não é um simples profeta. Não é simplesmente um
mestre. Ele não é um filósofo, nem somente um sábio. De fato, profetas,
filósofos, mestres e sábios ensinam-nos o caminho que devemos seguir, o “por
onde” devemos ir para podermos chegar “aonde” devemos chegar. Cristo não! Ele
próprio é o CAMINHO “por onde” devemos ir e Ele mesmo é o “aonde” devemos
chegar. Numa pregação sobre o Evangelho
de São João, disse Santo Agostinho:
E nós para onde
vamos, senão para ele (ad ipsum)?
E por onde
vamos, senão por ele (per ipsum)?
(...) nós vamos
para ele por ele (nos ad ipsum per ipsum).
(...) nós vamos
por ele e para ele (...) (nos per
ipsum et ad ipsum).[8]
Assim, Cristo não é apenas o Caminho que leva à verdade, senão que Ele é
o Caminho e a Verdade. Cristo não é somente o Caminho que conduz à vida, mas
Ele é o Caminho e a Vida! Em uma palavra: Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida
(Jo 14, 6). Ele é a Salvação e não somente o salvador que nos leva à salvação,
porque é estando nEle que estaremos salvos: “Permanecei em mim (...)” (Jo 15,
4). Ele é a Vida eterna, e é estando nEle que nos tornaremos partícipes da Vida
que é Ele próprio. Di-lo-á o Santo Doutor de Hipona n’outro Sermão sobre o mesmo Evangelho:
O Senhor é a
vida eterna (Ipse est vita aeterna), onde havemos de estar, quando nos receber
para si. (...) Ele é a vida que tem (ipse est quod habet). A vida que está
nele, é ele mesmo (quod vita est in ipso, ipse est in seipso). Quanto a nós,
não somos a própria vida. Somos participantes da vida dele. Estaremos nele.[9]
(...) Cristo é a vida eterna (Christus est vita aeterna).[10]
Mas onde,
hoje, está Cristo? Como podemos, hoje, aderir à Sua pessoa? Como permanecermos
unidos a Ele, hoje? Cristo é a Sua Igreja. A Igreja e Cristo não são duas
realidades distintas, mas uma só. Não, está claro, por uma identidade de
natureza. Não! Mas por uma comunhão vital, constituem uma única e mesma pessoa
mística. De fato, a Igreja é a comunhão dos que creem na pessoa de Cristo com a
pessoa de Cristo. É um Corpo, cuja Cabeça é Nosso Senhor e cujos membros são os
fiéis. Da mesma forma que o homem inteiro não é apenas os seus membros, mas os
seus membros e a sua cabeça, assim o Cristo total (“Christus totus”) é Nosso
Senhor, Cabeça, e seus membros, a Igreja. É deste modo que a Igreja e Cristo formam
uma única pessoa mística. Santo Agostinho celebra esta verdade noutro
sermão Sobre o Evangelho de São João:
Congratulemo-nos e demos graças a Deus, porque somos, não somente
cristãos, mas Cristo [non solum nos
christianos factos esse, sed Christum]. Compreendeis,
irmãos, estais convencidos de que a graça de Deus reside em nós? Admirai,
regozijai-vos; tornamo-nos Cristo [Christus
facti sumus]. [Si enim
caput ille, nos membra; totus homo, ille et nos= Com efeito, se ele é a cabeça
e nós os membros, o homem inteiro é Ele e nós] (...) A
plenitude de Cristo é a cabeça e os membros. Quem é a cabeça e quem são os membros?
É Cristo e a Igreja.[11]
Num Sermão sobre o Salmo XXVI, o Santo Doutor não é menos
claro:
Daí se vê que somos o corpo de Cristo [Christi corpus nos esse] (...). E
todos nele somos de Cristo, e somos Cristo [Christus sumus], porque de certo modo o Cristo Total é
Cabeça e Corpo [totus Christus caput
et corpus est].[12]
Santo Tomás, mais sucinto, remata: “Deve-se dizer que
cabeça e membros são como uma única pessoa mística.”[13] Portanto, é somente unindo-nos à Igreja, e inserindo-nos nesta
comunhão vital com Cristo e com os que creem em Cristo, que nos unimos a
Cristo. Só desta maneira Ele poderá levar-nos, por Ele, nEle, para Ele.
Agora bem, unidos a Cristo pela Igreja, comungamos a Sua vida. Assim como
um ato da cabeça é sempre também dos membros, porque, afinal, é um ato da
pessoa, assim, quando entramos em comunhão com Cristo e a Igreja, que formam
uma única pessoa mística, a vida de Cristo Cabeça e os Seus méritos
passam a ser também a nossa vida e os nossos méritos, uma vez que nos tornamos
Seus membros. É por isso que São Paulo afirma: “(...) da obra de justiça de um
só (i.é., Cristo), resultou para todos os homens a justificação que traz a
vida” (Rm 5, 18). Com efeito, como Seus membros, os Seus atos passam a ser os
nossos e os nossos, enquanto nos mantivermos unidos a Ele, passam a ser os atos
dEle em nós: “(...) sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Nosso Senhor fala
desta estreitíssima solidariedade, quando se dirige aos seus, dizendo: “(...)
vós em mim e eu em vós” (Jo 14, 20). Desta forma, a Igreja apresenta-se como um
prolongamento da vida de Cristo Cabeça. E como seu Corpo, constituindo com Ele
uma mesma pessoa mística, a Igreja torna-se possuidora dos méritos que Ele
próprio conquistou no Calvário e é entronizada na comunhão trinitária, “(...)
Eu neles e tu em mim (...)” (Jo 17, 23), diz Nosso Senhor ao Pai em sua Oração
Sacerdotal. De sorte que o mistério da graça é indissociável do da Igreja, que,
por sua vez, é um prolongamento do mistério de Cristo, o qual, por fim,
introduz-nos na comunhão da Trindade. Estar em graça, portanto, é estar em
Cristo, e estar em Cristo é estar em Deus Uno e Trino. Todavia, para se estar
em Cristo é preciso estar na Igreja, Corpo Místico de Cristo. Santo Tomás
explica com palavras fortes:
(...) a
graça foi dada a Cristo não como a uma pessoa em particular, mas como ao chefe
da Igreja (caput Ecclesiae= cabeça da Igreja), ou seja, de modo que dele
redundasse para os seus membros. Portanto, as obras de Cristo são atribuídas
tanto a si (tam ad se) como a seus membros (quam ad sua membra). (...).
Conclui-se então que, por sua paixão, Cristo mereceu a salvação não só para
si*, mas também para todos os seus membros (omnibus suis membris suam).[14]
* Não que Cristo precisasse ser salvo. Não! Mas a Pessoa
do Verbo, que assumiu a nossa natureza, mereceu a salvação que conquistou no
Calvário para a nossa natureza. De maneira que no Gólgota, misticamente,
estávamos todos nós. Assim, São Paulo pode celebrar: “(...) pela obediência de
um só, todos se tornarão justos” (Rm 5, 19). Vemos pelo verbo no futuro,
“tornarão justos”, que é preciso ponderar. Cristo mereceu a salvação para os
Seus membros. E o que é esta salvação? É a libertação do pecado? Na verdade, a
libertação é o meio pelo qual obtemos a salvação, que é estar em Deus. Portanto,
a salvação que Cristo nos conquistou mediante a Cruz é esta: Estar nEle. Mas só
estamos nEle, estando na Igreja, Seu Corpo. Diz Santo Tomás:
Portanto, deve-se dizer que cabeça e membros são como uma única pessoa
mística. Portanto, a satisfação de Cristo pertence a todos os fiéis como a
membros seus.[15]
Ora, mas como acontece esta solidariedade entre Cristo e nós? Mormente
através
dos sacramentos. Por eles, a vida de Cristo torna-se contemporânea a
nós. Nosso Senhor disse que são os que comungam o Seu Corpo e Sangue que
permanecerão nEle, que viverão por Ele (Jo 6, 56 e 57). São Paulo, aos Romanos,
fala do Batismo como duma imersão no mistério da morte e ressurreição do Senhor
(Rm 6, 3-4) e diz também algo tremendo: “(...) nos tornamos uma coisa só com
ele (i.é., com Cristo) (...)” (Rm 6, 5). Ademais, o que se realiza no rito,
traduz-se em vida. São Paulo vive a Vida do Senhor. Diz-nos estar crucificado
com Cristo; fala-nos não ser mais ele quem vive, mas Cristo a viver nele (Gl 2,
20). Afirma-nos que traz em si os estigmas de Nosso Senhor (Gl 6, 17). Aos
coríntios, relata:
Os 7 sacramentos. |
“(...) por toda
parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus
seja também manifestada em nosso corpo (...). Somos sempre entregues à morte
por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus seja manifestada em
nossa carne mortal” (II Co 4, 10-11).
Aos de Filipos declara que, para ele, viver é Cristo (Fl 1, 21). Assim,
ser Igreja afigura-se como um viver da e na Vida que é Cristo. Ser Igreja é ser
Cristo, porque só se é Igreja na medida em que se está cada vez mais unido a
Cristo. Por conseguinte, a Igreja não se interpõe entre Cristo e os fiéis; ao
contrário, inserindo-nos nela mesma pelos sacramentos, a Igreja une-nos
intimamente a Cristo. Mais, torna-nos Cristo, porque faz-nos membros dum Corpo,
que é ela própria e cuja Cabeça é Nosso Senhor. A Saulo, perseguidor dos
cristãos, Nosso Senhor se identifica com sendo a igreja que ele (Saulo)
persegue: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (At 9, 5). Tal é a união mística
de Cristo e a Igreja!
Tamanha é esta comunhão vital que, no Sacramento do Altar, quando a
Igreja oferece Nosso Senhor imolado ao Pai, sendo ela o Corpo dAquele que ela
oferece, ela oferta-se a si mesma também. Diz com firmeza Santo Agostinho: “Tal
mistério a Igreja também o celebra assiduamente no sacramento do altar,
conhecido dos fiéis, em que mostra que se oferece a si mesma na oblação que
faz”[16].
De fato, é neste sentido místico que São Paulo diz aos de Colossas: “(...)
completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne pelo seu Corpo,
que é a Igreja” (Col 1, 24). Com efeito, o fato de sermos membros de Cristo era
uma verdade tão evidente aos primeiros cristãos, que o Apóstolo dos Gentios,
aos de Corinto, pergunta como eles puderam se esquecer desta verdade: “Não
sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo”? (I Co 6, 15), “(...) não
sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que
recebestes de Deus”? (I Co 3, 19). Mas onde, enfim, realiza-se esta união? Num Sermão sobre o Credo, Santo Tomás ratifica: nos sacramentos. Asssim, ele considera
como sendo interfaces dum mesmo mistério, Cristo e a Igreja, a graça e os
sacramentos:
Os bens de
Cristo são comunicados a todos os cristãos, como a energia da cabeça é
comunicada a todos os membros. Essa comunicação é realizada pelos sacramentos
da Igreja (...).[17]
A Igreja, por conseguinte, é Cristo em nós (Col 1, 27: “Cristo em vós”),
e, sendo Cristo Deus conosco (Mt 1, 23), a Igreja é Deus entre nós, é Deus no
meio de nós. Ela é Cristo, vivo e atuante, hoje. São Paulo diz com toda clareza
à igreja que estava em Corinto: “Não sabeis que sois templo de Deus e que o
Espírito de Deus habita em vós? (...) Pois o templo de Deus é santo e esse
templo sois vós” (I Co 3, 16-17). Sim, a Igreja é o sacrário do Altíssimo neste
mundo! Ela é o ostensório de Deus. Não estamos a dizer, bem entendido, que a
Igreja forme uma só pessoa física com
o Verbo, com Deus. Não, em absoluto! Mas, por sua união vital, união mística com
Cristo, que é Deus, pelos seus sacramentos, a Vida de Nosso Senhor torna-se
presente nela, atual em Seus membros. De sorte que, pela Igreja, a Trindade
como que “desce” do céu para habitar na terra, em nós, “Eu virei a vós” (Jo 14,
18), “(...) meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos a nossa
morada” (Jo 14 23), e nós, por outro lado, como que “subimos” à Trindade: “Como
tu, Pai, está em mim e eu em ti, que eles estejam em nós.” (Jo 17, 21). Sim,
unidos a Cristo, participamos da Sua Vida ressurreta e, como membros duma
Cabeça glorificada, com Ele assentamo-nos, desde já, decerto que em mistério,
no Céu. Por isso, aos de Éfeso, São Paulo afirma com meridiana clareza que o
Pai, “(...) com ele (i,é., Cristo) nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus
(...)” (Ef 2, 6). Daí Santo Tomás poder dizer também sem pestanejar que “(...)
a graça não é outra coisa senão um início da glória em nós (...)”[18].
De tal maneira a Igreja está irmanada a Cristo, que o mesmo Santo Tomás,
citando Santo Agostinho (De Consensu Evangelistarum. 1, 35, 54), chega a dizer o
seguinte acerca da Bíblia:
Deve-se dizer, com Agostinho, que “Cristo é a cabeça
de todos seus discípulos, que são como membros de seu corpo. Por isso, tendo
eles escrito o que Cristo fez e ensinou, não se pode dizer que ele (Cristo)
nada escreveu absolutamente, uma vez que seus membros puseram por escrito o que
a cabeça lhes ditou. Tudo o que Cristo quis que lêssemos a respeito de suas
palavras e ações, ele lhes ordenou escrever, como se fossem suas mãos.”[19]
Também nesta ótica, podemos dizer que a oração da Igreja é
um mistério cristológico! Na verdade, há um só que ora: Cristo. E sua oração é
intercessão. Ora, não há meio termo: ou oramos por Cristo, com Cristo e em
Cristo, ou não oramos ou nossa oração não é cristã, porque está escrito:
“(...) ninguém vai ao Pai a não ser por mim” (Jo 14, 6). E o que é orar senão
ir a Deus? Com efeito, como Cristo é a Cabeça, e nós, Seus membros, não é
possível dizer que a oração da Igreja seja outra que não a de Cristo. Por isso,
somente quando estamos verdadeiramente unidos a Cristo, verdadeiramente oramos.
Mais: quando oramos, é Cristo que ora por nós, conosco e em nós. De fato,
quando intercedemos, é Cristo quem intercede em nós, por nós. Intercede por
nós, como nosso Sacerdote, e intercede em nós, como nossa Cabeça. E se lhe
pedimos algo, na verdade, é Ele quem pede em nós, por nós, e é Ele também quem
atende os nossos pedidos como nosso Deus. Santo Agostinho celebra este mistério
num Sermão sobre o Salmo LXXXV, feito na vigília da festa de São
Cipriano:
Ao nos
dirigirmos, suplicantes, a Deus não apartemos o Filho, e ao rezar o corpo do
Filho (i.é. a Igreja), não se separe da Cabeça (i.é., Cristo). Seja ele o único
Salvador de seu Corpo, nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, que suplique
por nós (oret pro nobis= ore por nós)*, ore em
nós, e a quem enderecemos nossas preces (oretur a nobis= é orado por nós)**.
Ora por nós como nosso sacerdote, ora em nós como nossa Cabeça e a ele oramos (oratur a nobis= é orado por nós) como a nosso Deus.
Reconheçamos, portanto, na sua as nossas vozes, e sua vós em nós (in illo voces
nostras, et voces eius in nobis= nele a nossa voz, e em nós a sua voz).[20]
A comunhão dos santos também é um mistério cristológico! Sabemos que
somos “(...) membros uns dos outros” (Rm 12, 5) a formar “(...) um só corpo em
Cristo” (Rm 12, 5). Ora, por formarmos um só Corpo, há uma estreita
solidariedade e comunhão entre nós. De modo que, “Se um membro sofre, todos os
membros compartilham o seu sofrimento (...)” (I Co 12, 26), mas também,“(...)
se um membro é honrado, todos os membros compartilham a sua alegria.” (Co 12,
26). Há, portanto, na Igreja, uma circulação vital; há, pois, uma unidade entre
os membros do Corpo de Cristo, de sorte que participamos da vida uns dos
outros. Assim, sob certo aspecto, o que é meu é seu e o que é seu é meu também.
Sim, o “pai misericordioso” tinha razão ao dizer: “(...) tudo o que é meu é teu
(...)” (Lc 15, 31). Por quê? Exatamente por isso: “Há, portanto, muitos
membros, mas um só corpo.” (I Co 12, 17). Que corpo é este? Responde São Paulo:
“(...) vós sois o corpo de Cristo e sois seus membros (...)” (I Co 12, 27).
Então: há alguma coisa sua que não seja minha, se formamos um só corpo? Há
alguma coisa minha que não seja sua, se somos um só corpo? De fato, assim é na
Igreja: o dom de um redunda em proveito de outro. Destarte, nela não há lugar
para a inveja e para o ciúme. E se compreendermos isso, se não nos comportarmos
como o “filho mais velho”, toda a riqueza da Igreja será nossa. Sim, porque a
Igreja é riquíssima de dons e carismas, visto que, embora o Corpo seja único,
os membros são muitos: “O corpo não se compõe de um só membro, mas de muitos”
(I Co 12, 14). Santo Agostinho, consciente do tesouro que tinha em mãos, canta-o
num Sermão duma forma impossível de
não se entender:
A Igreja
fala a língua de todos os povos! (...) Mas esse pergunta-me: E tu, falas todas
as línguas? Sem dúvida; toda a língua me pertence, pois pertence ao corpo de
que eu sou membro. A Igreja espalhada através de todos os povos fala todas as
línguas. A Igreja é o corpo de Cristo, e neste corpo tu és um membro. Sendo tu
membro do corpo que fala todas as línguas, podes estar certo de que fala todas
as línguas.[21]
Se amas,
tens alguma coisa. Se amas a unidade, o que tem qualquer prerrogativa, também a
tem para teu proveito. Acaba com a inveja, e é teu o que eu tenho. E seu acabar
com a inveja, é meu o que tu tens. A ferida desorganiza, a saúde estabelece
união.[22]
Santo Tomás, sempre mais conciso, mas não menos claro, afirma: “E porque
todos os fiéis são um só corpo, o bem de um comunica-se ao outro”[23].
BIBLIOGRAFIA
AGOSTINHO. A Cidade de
Deus.
7ª ed. Trad. Oscar Paes Leme. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. v. I.
_____. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed.
Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica Coimbra, 1954. v. II.
_____. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. 2ª ed.
Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1960. v. III.
_____. Comentário ao Evangelho de São João: A Ceia do Senhor. Trad. José
Augusto Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1952. v. IV.
_____. Comentário aos Salmos. 2ª ed. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H.
Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2005. v. I.
_____. Comentário aos Salmos. Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco.
São Paulo: Paulus, 1997. v. II.
PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja.
2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1956.
_____. Iniciação Teológica III: O Mistério de Cristo. São Paulo: Edições
Paulinas, 1968.
TOMÁS DE AQUINO. Exposição sobre o Credo. 4ª ed. Trad. Odilão Moura. São Paulo:
Edições Loyola, 1997.
_____. Suma
Teológica. Trad. Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001.
[1] AGOSTINHO.
In Evanglium Ioannis Tractatus Centum
Viginti Quatuor. XXIX, 3. (A tradução é nossa).
[2]
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de
São João: Luz, Pastor e Vida. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado.
Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1960. v. III. XLVII, 3. p. 262.
[3] TOMÁS
DE AQUINO. Exposição sobre o Credo. 4ª ed. Trad. Odilão Moura. São
Paulo: Edições Loyola, 1997. p. 45.
[4]
PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação
Teológica I: O Mistério da Igreja. 2ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1956. p.
276.
[5] Idem. Ibidem.
p. 254.
[6] Idem. Ibidem. p.
10.
[7]
PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação
Teológica III: O Mistério de Cristo. São Paulo: Edições Paulinas, 1968. pp.
27 e 28
[8]
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de
São João: A Ceia do Senhor. Trad. José Augusto Amado. Coimbra: Gráfica de
Coimbra, 1952. v. IV. LXIX, 2.
[9] Idem. Ibidem. LXX, 1.
[10]
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de
São João: Médico e Alimento. 2ª
ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1954. v.
II. XXVI, 20.
[11] AGOSTINHO. Comentário
ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. 2ª ed. Trad. José Augusto
Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica Coimbra, 1954. v. II. XXI, 8. pp. 125 e 126.
(A tradução por nós proposta entre colchetes, parece-nos mais conforme ao
original latino).
[12] AGOSTINHO.
Comentário aos Salmos. 2ª ed. Trad.
Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 2005. v. I. 26, 2.
[13] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica.
Trad. Aimom-
Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. III, 48, 2, ad 1.
[14] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, 48, 1, C. (Os parênteses são nossos).
[15]Idem. Ibidem. III, 48, 2, ad 1.
[16]
AGOSTINHO A Cidade de Deus. 7ª ed.
Trad. Oscar Paes Leme. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. X, VI. p. 377.
[17] TOMÁS
DE AQUINO. Exposição sobre o Credo.
p. 79.
[18] Idem. Suma Teológica. II-II, 24, 3, ad 2.
[19] Idem. Ibidem. III, 42, 4, ad 1. (O parêntese é nosso).
[20]
AGOSTINHO. Comentário aos Salmos.
Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1997. v. II. 85,
1. (Os parênteses são nossos. * Preferimos, entre parênteses, manter a terceira
pessoa do singular do presente do subjuntivo. ** Preferimos manter também a
construção da frase na voz passiva: “orado por nós”).
[21]
AGOSTINHO. Comentário ao Evangelho de
São João: Médico e Alimento. XXXII,
VII.
[22] Idem. Ibidem. XXXII, VIII.
[23]
TOMÁS DE AQUINO. Exposição Sobre o Credo.
p. 79.
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Sávio Laet é Bacharel-Licenciado e Pós-Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Mato Grosso [UFMT], cursou ainda algumas disciplinas teológicas [Revelação e Fé; Transmissão da Revelação e Teologia do Direito Canônico] no SEDAC [Studium Eclesiástico D. Aquino Corrêa]. Foi pesquisador do Grupo de Estudos Polis-Éthos [registrado no CNPq] da UFMT. Também participou como estudioso da filosofia medieval no grupo de “Pesquisas em Filosofia Antiga e Medieval” [com registro no CNPq] vinculado à mesma instituição.
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