Por Denilson
Cardoso de Araújo
Gente que gosta de
abismos. Mergulhadores, alpinistas, surfistas de ondas gigantes, equilibristas,
aves, astronautas. Seres assim possuem certa asa moral que lhes dá suporte à
existência arriscosa. No Cirque de Soleil, seja na lona rota da roça mineira,
sempre me encantaram: trapezistas. Há rede, mas sempre a ameaça do
despencamento e respiração presa no salto mortal. Corpo chicote no ar,
desafiada a gravidade com a curva abusada.
Quando meninos, ou
quando meninos-avós acompanhando netos, gastamo-nos na incumbência da
montanha-russa. Ela nos põe em riste, olhos postos na flecha-declive que vai
afundar nossos corpos no chão. Não. A ondulação dos ferros nos levita, súbitos
de alívios, químicas do organismo em nossos cérebros, cestos de euforias assim
fabricadas.
Você sabe. A
ascensão até ao cume que nos imolará no precipício é lenta. Nos distraímos
olhando a paisagem, crianças gritam, inocentes do que virá. Adultos já tensos,
pois sabem. Abismo virá. Prazeres ancestrais e estranhos, esses. Flertar com o
acidente, desejar controlado desastre, domar leis da natureza com truques da
musculatura adestrada ou de algum maquinário que a tecnologia nos deu. Brincar
com abismos pede consciência de risco, planos de fuga, aprendizados de queda,
cautelas da saúde.
Nem todo mundo assim
faz. Já vi trapezistas improvisados, apavorantes porque não acertam uma só
acrobacia, artistas da miséria deitando em vidro quebrado e saindo rasgados, o
quase mendigo desdentado incendiado na tentativa de engolir fogo. Pavoroso ver
o que brinca com o abismo sem o preparo adequado. O abismo virá.
Na vida, igualmente.
Ruim ver os que seguem, imprudentes, assobiantes cigarras em beira de vulcão.
Desdenham formigas trabalhadeiras, despejam problemas nos armários, esqueletos
que se multiplicam, infestações de cálcio doente. Varrem dramas para debaixo
dos tapetes. Descuidam feridas com improvisos de gaze. Não regam cultivos
essenciais à existência: família, amigos, a calma da mente, coração de paz,
primaveras da alma. Gente assim nos transtorna. Amanhã, pedintes serão.
Exigirão de famílias que não cultivaram, milagre do afeto que não fizeram.
Gritarão ao mundo suas misérias autoproduzidas, clamando justiça. Que piedade
aconteça, mas que se lhes ensine a antes cobrar de si mesmos.
Esqueletos
acumulados no armário são abismo, porque monturo de ossos vira avalanche.
Tapetes de problemas desvelam apocalipses. Arranhões, cânceres.
Famílias-desgraça, amigos desertados, a mente incêndio de labirintos de
neurônios cansados, o coração almofada de punhais da tortura, a alma em vazio
sem fim. Abismos.
A mentira é abismo.
Que não nos domine. Pois é ciumenta mãe de muitos abismos. Começa branca, e
mastiga o ser lentamente, enquanto enegrece a cada degrau que o obriga descer
até a metamorfose sem volta dos que abandonaram as límpidas asas que movem as
altitudes e se tornam rastejantes comedores de lama.
Tenho visto muita
lágrima nascida da imprudência de bêbados que resolveram andar em corda bamba.
Adolescentes que brincam de adultos. Adultos que se fazem crianças. Gente que
se antecipa ou adia, sem respeitar os ciclos da vida. Pais coleguinhas. Mães
egoístas. Filhos ingratos. Casais formados no desejo somente. Abismos.
Você sabe qual é seu
abismo. Você não é trapezista. Não brinque com isso. Porque no Salmo aos filhos
de Coré, avisou o poeta bíblico, de maneira precisa: “Um abismo chama outro
abismo” (40:7).
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