quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Abismos


Por Denilson Cardoso de Araújo

Gente que gosta de abismos. Mergulhadores, alpinistas, surfistas de ondas gigantes, equilibristas, aves, astronautas. Seres assim possuem certa asa moral que lhes dá suporte à existência arriscosa. No Cirque de Soleil, seja na lona rota da roça mineira, sempre me encantaram: trapezistas. Há rede, mas sempre a ameaça do despencamento e respiração presa no salto mortal. Corpo chicote no ar, desafiada a gravidade com a curva abusada.

Quando meninos, ou quando meninos-avós acompanhando netos, gastamo-nos na incumbência da montanha-russa. Ela nos põe em riste, olhos postos na flecha-declive que vai afundar nossos corpos no chão. Não. A ondulação dos ferros nos levita, súbitos de alívios, químicas do organismo em nossos cérebros, cestos de euforias assim fabricadas.

Você sabe. A ascensão até ao cume que nos imolará no precipício é lenta. Nos distraímos olhando a paisagem, crianças gritam, inocentes do que virá. Adultos já tensos, pois sabem. Abismo virá. Prazeres ancestrais e estranhos, esses. Flertar com o acidente, desejar controlado desastre, domar leis da natureza com truques da musculatura adestrada ou de algum maquinário que a tecnologia nos deu. Brincar com abismos pede consciência de risco, planos de fuga, aprendizados de queda, cautelas da saúde.

Nem todo mundo assim faz. Já vi trapezistas improvisados, apavorantes porque não acertam uma só acrobacia, artistas da miséria deitando em vidro quebrado e saindo rasgados, o quase mendigo desdentado incendiado na tentativa de engolir fogo. Pavoroso ver o que brinca com o abismo sem o preparo adequado. O abismo virá.

Na vida, igualmente. Ruim ver os que seguem, imprudentes, assobiantes cigarras em beira de vulcão. Desdenham formigas trabalhadeiras, despejam problemas nos armários, esqueletos que se multiplicam, infestações de cálcio doente. Varrem dramas para debaixo dos tapetes. Descuidam feridas com improvisos de gaze. Não regam cultivos essenciais à existência: família, amigos, a calma da mente, coração de paz, primaveras da alma. Gente assim nos transtorna. Amanhã, pedintes serão. Exigirão de famílias que não cultivaram, milagre do afeto que não fizeram. Gritarão ao mundo suas misérias autoproduzidas, clamando justiça. Que piedade aconteça, mas que se lhes ensine a antes cobrar de si mesmos.

Esqueletos acumulados no armário são abismo, porque monturo de ossos vira avalanche. Tapetes de problemas desvelam apocalipses. Arranhões, cânceres. Famílias-desgraça, amigos desertados, a mente incêndio de labirintos de neurônios cansados, o coração almofada de punhais da tortura, a alma em vazio sem fim. Abismos.

A mentira é abismo. Que não nos domine. Pois é ciumenta mãe de muitos abismos. Começa branca, e mastiga o ser lentamente, enquanto enegrece a cada degrau que o obriga descer até a metamorfose sem volta dos que abandonaram as límpidas asas que movem as altitudes e se tornam rastejantes comedores de lama.

Tenho visto muita lágrima nascida da imprudência de bêbados que resolveram andar em corda bamba. Adolescentes que brincam de adultos. Adultos que se fazem crianças. Gente que se antecipa ou adia, sem respeitar os ciclos da vida. Pais coleguinhas. Mães egoístas. Filhos ingratos. Casais formados no desejo somente. Abismos.


Você sabe qual é seu abismo. Você não é trapezista. Não brinque com isso. Porque no Salmo aos filhos de Coré, avisou o poeta bíblico, de maneira precisa: “Um abismo chama outro abismo” (40:7).

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