Por Paul Medeiros Krause
Fala-se
muito ultimamente que o estado é laico. Procura-se, a todo custo,
defender as
liberdades laicas. Almeja-se relegar a prática religiosa ao âmbito
exclusivamente privado da vida dos indivíduos, excluindo-a da vida pública.
Defende-se, por outro lado, um suposto direito irrestrito de fazer humor,
inclusive em matéria de religião. Todavia, tais entendimentos baseiam-se ou na
ignorância ou na leitura apressada da Constituição e dos tratados
internacionais sobre direitos humanos, notadamente de dispositivos que não
podem ser revogados.
É
preciso dizer, antes de mais, que a laicidade, que nada tem a ver com laicismo
– caricatura, deturpação da laicidade, como o racionalismo o é da racionalidade
–, é via dupla: tem mão e contramão. A máxima: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” significa
que as instâncias civil e religiosa têm as suas esferas próprias de atuação.
Não deve haver interferências indevidas, reciprocamente. Cada uma dessas
instâncias possuem campos próprios, exclusivos.
Por
conseguinte, se é preciso defender a laicidade do estado, não menos importante
é assegurar o que é próprio das confissões religiosas: a sua doutrina, o seu
ensino, a sua liturgia, os seus ritos, a sua disciplina interna. Em outras
palavras: faz-se mister proteger a vivência da religião da deformação chamada laicismo, que é uma espécie de polícia
antirreligiosa ou anticlerical.
A
liberdade religiosa é um direito humano universal e inalienável. É consagrado
na Declaração Universal dos direitos do homem de 1948, que assim reza:
“Art. 18. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento,
de consciência e de religião. Este direito importa a liberdade de mudar de
religião, ou convicção, bem assim a liberdade de manifestá-las, isoladamente ou
em comum, em público ou em particular, pelo
ensino, pelas práticas, pelo culto e pela observância dos ritos.” (negritos meus)
Observe-se,
pois, que o direito de liberdade religiosa garante a liberdade de manifestar a
religião publicamente, inclusive pelo ensino,
pelas práticas, pelo culto e pelos ritos.
No
mesmo sentido é o Pacto de São José da Costa Rica, de que a República
Federativa do Brasil é signatária, e que, a meu ver, possui inegável status de norma constitucional:
“Art. 12. Liberdade de crença e de religião
......................................................................................................................
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de
religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas
crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.” (negritos meus)
Note-se
que o Pacto de São José da Costa Rica afiança o direito de cada
um divulgar a sua religião ou a sua crença,
inclusive publicamente.
Tendo sido
incorporado ao direito brasileiro precedentemente à vinda a lume da Emenda
Constitucional 45, de 2004, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção
Americana sobre Direitos Humanos) possui status
de norma constitucional, como reconheceu o Ministro Celso de Mello no RE
466343, embora alguns magistrados pretendam, desavisadamente, impor o silêncio
a alguns ministros de confissão religiosa, como no caso do Pe. Luiz Carlos
Lodi, impedido por um magistrado de chamar uma abortista, pasmem!, de
“abortista”.
Também
a nossa Constituição agasalha, expressamente, a liberdade religiosa como
direito fundamental, insuscetível de emenda constitucional tendente a aboli-lo
(art. 60, § 4.º, IV).
Prevê
o art. 5.º, incisos VI e VIII, da Constituição Federal, de 5 de outubro de
1988:
“Art. 5.º
.......................................................................................................
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença,
sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma
da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
......................................................................................................................
VIII – ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica
ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos
imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”. (negritos meus)
A
Parte Especial do Código Penal consagra um título inteiro aos crimes
contra o sentimento religioso e contra
o respeito aos mortos (arts. 208 e seguintes), deferindo à religião a
proteção penal. Isso significa que outra liberdade, a de manifestação do
pensamento, prevista no art. 5.º, IV, da Constituição, não é absoluta. Ao
contrário da leitura ligeira que muitos fazem de nosso arcabouço jurídico,
incluídos o satírico grupo “Porta dos Fundos” et caterva, o sentimento religioso não está vocacionado a ser
objeto de chacota geral. A religião não está aí – perdoem-me os mais
suscetíveis – “com a bunda exposta na janela pra passar a mão nela”, para usar
a expressão de um compositor nosso.
Não existem: “direito de ofender”,
“direito de ridicularizar”, direito de zombar”, “direito de escarnecer”. O
sentimento religioso é um bem jurídico. É tutelado pelo direito. Inexiste
“direito à molecagem com o que é sagrado para outrem”. Na verdade, o que o ordenamento
pátrio impõe é o “dever de caçar serviço” ou “de caçar o que fazer”.
Diz
o art. 208 do Código Penal:
“TÍTULO V
DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O REPEITO
AOS MORTOS
Ultraje a culto
e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo
Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de
crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia religiosa ou prática
de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, ou multa.
Parágrafo
único. Se há emprego
de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à
violência.”
A
Lei 4.889, de 9 de dezembro de 1965, que define os crimes de abuso de
autoridade, estabelece:
“Art. 3.º Constitui abuso de autoridade qualquer atentado:
......................................................................................................................
d) à liberdade de consciência e de crença;
e) ao livre exercício do culto religioso;”.
Por
seu turno, a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989, estabelece crimes de intolerância
religiosa.
Infelizmente, há instâncias da vida
civil que se dedicam, quase por esporte, à ridicularização e ao menoscabo sistemáticos
do cristianismo, nem sempre de forma sutil, sob pretexto de exercício de liberdade
artística ou jornalística. Convém notar que objetos em si inofensivos, se mal empregados,
podem constituir meios de agressão. Uma caneta pode furar um olho. Só mesmo um
indivíduo muito ingênuo ou mal intencionado sustentará que a utilização de terços
em forma de pênis é arte (mesmo que seja “engajada”). Falo de um caso concreto.
Na verdade, isso é desvirtuar a arte, desviá-la de seus propósitos,
utilizando-a como meio de lesionar, de perpetrar crime, como instrumento de
agressão. Uma liberdade mal utilizada configura abuso, ilícito. Não é raro que
a imprensa, sob pretexto de informar, desinforme, confunda ou suscite juízos
temerários contra representantes de confissões religiosas.
Não
me impressiona o argumento da vedação absoluta a qualquer censura
prévia. Por
que razão o sentimento religioso não pode ser mantido intacto, devendo tolerar
ofensas e agressões, para só depois ser reposto ao status quo ante mediante indenização ou reparação civil, que é
sempre inexata, imprecisa e estimativa? Se há a garantia constitucional à
liberdade religiosa, a lesão a ela deve ser coibida, e não somente facultada a
recomposição do direito lesado. Não há direito de lesar. Jornalistas e artistas
defendem, em causa própria, um suposto direito absoluto. Não lhes assiste,
porém, o direito de violar previamente a esfera jurídica de outrem, facultando
a este outrem apenas reparação posterior. O direito não vive de reparos, não
vive de remendos, de catar os cacos. Tolerar a ofensa a direito para permitir
tão somente reparação posterior equivale a aniquilar o mesmo direito. Cacos
juntados nunca equivalem ao vaso íntegro. Se há o bem jurídico, ele exige
proteção prévia. A indenização há de ser a exceção, e não a regra. Pois o
ordenamento jurídico oferece mecanismos para que a agressão seja impedida e não
se configure. Legítimo, pois, será o recurso prévio, cautelar, ao Poder
Judiciário. A tese da inexistência de censura prévia é uma armadilha.
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