domingo, 9 de março de 2014

A Batina do pobre. A diferença entre quem serve e quem é servido.


Por Carlos Ramalhete.

Costumo dizer que a única coisa boa que a TV Globo já fez no Brasil foi não deixar as pessoas esquecerem que padre usa batina. Para a imensa maioria das pessoas, hoje em dia, padre de batina é coisa que só se vê em novela. É uma pena.

Além das questões legais (o Código de direito canônico manda usar, sendo contudo legalmente permitida no Brasil a sua substituição pelo "clergyman") e espirituais (a batina é um sacramental), há uma questão social e psicológica que me parece estar sendo deixada de lado por muita gente boa.

É simples: a batina é um uniforme. A diferença maior entre o pobre e o rico, entre quem serve e quem é servido, é que o pobre, geralmente, trabalha de uniforme. Seja o faxineiro ou o trocador do ônibus, o porteiro ou a mocinha que serve atrás do balcão, é a impossibilidade de escolha do vestuário que designa quem está ali para servir.

É até curioso perceber como é geralmente fácil descobrir o dono de uma lanchonete ou padaria: enquanto os empregados estão todos de uniforme, frequentemente com direito até a touquinhas tampando os cabelos, o dono é o único sujeito atrás do balcão que não usa uniforme. É como um delegado de polícia entre soldados da PM, como um doutor que passa altaneiro entre os faxineiros que, anônimos, varrem os corredores.

O objetivo primeiro do uniforme é justamente este: a negação da personalidade. É
por isso que os "bacanas" fogem do uniforme como o Diabo da cruz, mas o impõem aos menos afortunados. O faxineiro é o faxineiro; o "bacana" é o Doutor Fulano. Doutor Fulano usa gravatas vistosas, terno que brilha, sapatos engraxados. O faxineiro é invisível, não tem nome, não tem brilho, não tem nada que não o seu humilde serviço, que só é percebido quando não é feito. Ele é faxineiro.

Um pesquisador da USP fez uma curiosa experiência, que lhe valeu um livro ("Homens invisíveis - Relatos de uma humilhação social", de Fernando Braga da Costa, ISBN 8525038911): uniu-se aos faxineiros da própria universidade, onde estudava e tinha amigos e colegas aos magotes. Ele simplesmente sumiu. Desapareceu atrás do uniforme: pessoas que sempre o cumprimentavam não mais o viam, amigos passavam por ele sem perceberem sua existência... De homem, de personalidade que faz escolhas (inclusive de vestuário), ele passou a ser um ente categorial: um faxineiro sem nome, invisível como os meios-fios que lava e as latas de lixo que esvazia.

O mesmo acontece com a mocinha atrás do balcão, com o motorista do ônibus ("aquele ônibus me fechou!"), com, em suma, todos os pobres que a sociedade não quer ver afirmados como pessoas.

O padre que usa batina afirma-se, assim, categorial: ele não é o Fulano, mas é um padre, é alguém que está ao serviço dos outros. A batina é um componente da pobreza evangélica, que é negada quando o padre se dá ao luxo de escolher roupa, parecer "bacana", de poder escolher - ao contrário do faxineiro ou da moça atrás do balcão - se vai ou não servir.

O padre de roupa social parece um "doutor", alguém que é percebido como uma pessoa que faz escolhas, que atende quem quer atender, que ou bem não está "no serviço" ou bem é importante o suficiente para definir os termos do seu serviço, como o dono da padaria. Para os mais pobres, isso é algo que faz do padre uma figura psicologicamente distante. Quem é faxineiro, quem é trocador, quem trabalha de uniforme reconhece sempre que por trás do uniforme há um ser humano. Mas também reconhece no uniforme o sinal do serviço, o sinal da disponibilidade para atender. Quem é "bacana", quem trabalha sem uniforme, vê do mesmo modo no uniforme do padre - a batina - um sinal de disponibilidade.

A disponibilidade do padre é e deve ser absoluta, por não ser, como é o caso dos outros trabalhadores de uniforme, algo limitado a uma dada situação. O trocador do ônibus, fora do veículo, não é trocador: é apenas trabalhador, identificado como tal pelo seu uniforme. Mas o padre nunca está "fora do serviço", porque não serve à companhia de ônibus, mas a Deus e, por Ele e n'Ele, aos homens.

Passar desapercebido, como passa o faxineiro quando vestido com suas roupas de folga, não é para o padre uma opção. Ele deve estar disponível para o escarro do herege e para a confissão do fiel, porque não há folga no seu serviço.

O mesmo, evidentemente, vale para o hábito religioso das freiras e frades: se eles o usam, mostram estar "em serviço", mostram estar à disposição para quem precise de uma oração, para quem precise de ajuda. Chega a ser engraçado ouvir de alguns padres a justificativa furadíssima de que não usam batina porque querem se identificar com "o pobre"! Só se for com o pobre de folga... ou com o rico que alguns pobres sonham em ser.

Pobre usa uniforme quando trabalha. Quem o dispensa, ou melhor, quem a ele não é obrigado, é a madame - e o que há de freira fantasiada de madame! -, é o "doutor"- e o que há de padre com roupa social, entrando ou saindo de um carro, indistinguível, para todos os que estão em torno, de qualquer rico acumulando bens e negando serviço!

O uso do "clergyman", a meu ver, apresenta também este problema: é próximo demais de um terno, de uma roupa de quem, por sua posição social, pode se dar ao luxo - negado ao pobre - de negar seu serviço. Como todos sabem, o uso do "clergyman", originalmente, uma roupa usada por "pastores" protestantes, surgiu na Igreja como uma forma de apagar a identidade do sacerdote, tornando-o indistinguível dos protestantes em lugares onde padres corriam o risco de ser atacados na rua, tamanho o sentimento anti-católico.

É por isso, por ser em cada país diferente a situação do clero, que a legislação canônica faculta às Conferências episcopais de cada país autorizar ou não o uso do "clergyman" em substituição à batina. Presume-se que a Conferência possa distinguir se é ou não necessário "esconder" o padre. No Brasil, é ridícula a idéia de que isso seja necessário, o que faz da permissão dada pela CNBB um abuso de um direito lícito. Em outras palavras: é permitido usar o "clergyman" no lugar da batina no Brasil, mas não existem as razões que autorizariam esta substituição, apenas o frio texto da lei.

Cumpre mesmo observar que só reconhece no "clergyman" uma roupa de padre quem já é "de Igreja", quem já viu padres assim vestidos. A TV Globo, graças a Deus, manteve viva a percepção nas massas afastadas da Igreja de que padre usa batina: para quem não é "de Igreja", o "clergyman" indica que seu portador é um "pastor" protestante, não um padre.

Há ainda outra razão para o uso da batina, igualmente importante: a simbologia deste um uniforme específico. Assim como a roupa do faxineiro o faz ser indiscutivelmente um faxineiro e a roupa do motorista faz com que ele não seja confundido com o atendente da lanchonete, a batina mostra que ali há um padre. O hábito não faz o monge, mas o identifica.

Isto tem vários benefícios. Para o padre, há o benefício imediato de que sua condição será sempre reconhecida antes mesmo que abra a boca. Por exemplo, a mocinha que vê o rapaz bonito vestido de batina vai logo suspirar que é um "desperdício", sem achar que ele possa ser um namorado em potencial. Isto vai livrar o padre de algumas tentações mais perigosas que a média, e vai livrar a mocinha de um desapontamento sério. Afinal, a moça honesta não tenta seduzir o padre que ela sabe ser padre, mas pode tentar e conseguir seduzir o padre que ela não identificou como tal e que, por fraqueza, não desfez o malentendido. A chance de um momento de fraqueza se transformar em uma relação desorganizada duradoura é muito menor para o padre cuja batina à vista afasta desde logo as moças honestas. Resta-lhe apenas lidar com as que querem um "troféu" sacrílego, mas estas dificilmente quereriam uma relação duradoura. São quedas de que é mais fácil se levantar.

Do mesmo modo, o reconhecimento do padre como tal faz com que ele seja chamado na rua quando há um acidente e alguém jaz moribundo, para ministrar-lhe os sacramentos, quando há uma crise espiritual em andamento, o que pode salvar uma alma e mesmo uma vida (conheço um padre que, reconhecido pela batina, foi chamado numa lanchonete e convenceu uma moça a não abortar), quando há, em suma, a necessidade do seu serviço.

E, finalmente, o padre de batina, como a freira ou o frade de hábito, servem como "homens-sanduíche" (aquelas pessoas com placas enormes na frente e nas costas, anunciando a compra de ouro ou os serviços de uma lanchonete): eles anunciam que Deus não esqueceu de nós. A simples visão de um padre ou freira pode servir, e serve, para muita gente como um "recado" de que devem se emendar, devem procurar voltar à Fé. É uma presença da Igreja no mundo, mais forte que os sinos da Matriz ou que milhares de campanhas de propaganda. É um bem enorme prestado à sociedade, um lembrete de que há algo além da cobiça, da luxúria, do orgulho.

Que Deus abençoe todos os padres e religiosos que andam pelo mundo sem medo de mostrar que, como qualquer outro pobre, estão em serviço. Um serviço, porém, que não acaba e que não tem folga: o serviço do Bem.

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