Por Carlos Ramalhete.
Costumo
dizer que a única coisa boa que a TV Globo já fez no Brasil foi não deixar as
pessoas esquecerem que padre usa batina. Para a imensa maioria das pessoas,
hoje em dia, padre de batina é coisa que só se vê em novela. É uma pena.
Além
das questões legais (o Código de direito canônico manda usar, sendo contudo
legalmente permitida no Brasil a sua substituição pelo "clergyman") e
espirituais (a batina é um sacramental), há uma questão social e psicológica
que me parece estar sendo deixada de lado por muita gente boa.
É
simples: a batina é um uniforme. A diferença maior entre o pobre e o rico,
entre quem serve e quem é servido, é que o pobre, geralmente, trabalha de
uniforme. Seja o faxineiro ou o trocador do ônibus, o porteiro ou a mocinha que
serve atrás do balcão, é a impossibilidade de escolha do vestuário que designa
quem está ali para servir.
É
até curioso perceber como é geralmente fácil descobrir o dono de uma lanchonete
ou padaria: enquanto os empregados estão todos de uniforme, frequentemente com
direito até a touquinhas tampando os cabelos, o dono é o único sujeito atrás do
balcão que não usa uniforme. É como um delegado de polícia entre soldados da
PM, como um doutor que passa altaneiro entre os faxineiros que, anônimos, varrem
os corredores.
O
objetivo primeiro do uniforme é justamente este: a negação da personalidade. É
Um
pesquisador da USP fez uma curiosa experiência, que lhe valeu um livro
("Homens invisíveis - Relatos de uma humilhação social", de Fernando
Braga da Costa, ISBN 8525038911): uniu-se aos faxineiros da própria
universidade, onde estudava e tinha amigos e colegas aos magotes. Ele
simplesmente sumiu. Desapareceu atrás do uniforme: pessoas que sempre o
cumprimentavam não mais o
viam, amigos passavam por ele sem perceberem sua existência... De homem, de
personalidade que faz escolhas (inclusive de vestuário), ele passou a ser um ente
categorial: um faxineiro sem nome, invisível como os meios-fios que lava e as
latas de lixo que esvazia.
O
mesmo acontece com a mocinha atrás do balcão, com o motorista do ônibus
("aquele ônibus me fechou!"), com, em suma, todos os pobres que a
sociedade não quer ver afirmados como pessoas.
O
padre que usa batina afirma-se, assim, categorial: ele não é o Fulano, mas é um
padre, é alguém que está ao serviço dos outros. A batina é um componente da
pobreza evangélica, que é negada quando o padre se dá ao luxo de escolher
roupa, parecer "bacana", de poder escolher - ao contrário do
faxineiro ou da moça atrás do balcão - se vai ou não servir.
O
padre de roupa social parece um "doutor", alguém que é percebido como
uma pessoa que faz escolhas, que atende quem quer atender, que ou bem não está
"no serviço" ou bem é importante o suficiente para definir os termos
do seu serviço, como o dono da padaria. Para os mais pobres, isso é algo que
faz do padre uma figura psicologicamente distante. Quem é faxineiro, quem é
trocador, quem trabalha de uniforme reconhece sempre que por trás do uniforme
há um ser humano. Mas também reconhece no uniforme o sinal do serviço, o sinal
da disponibilidade para atender. Quem é "bacana", quem trabalha sem
uniforme, vê do mesmo modo no uniforme do padre - a batina - um sinal de
disponibilidade.
A
disponibilidade do padre é e deve ser absoluta, por não ser, como é o caso dos
outros trabalhadores de uniforme, algo limitado a uma dada situação. O trocador
do ônibus, fora do veículo, não é trocador: é apenas trabalhador, identificado
como tal pelo seu uniforme. Mas o padre nunca está "fora do serviço",
porque não serve à companhia de ônibus, mas a Deus e, por Ele e n'Ele, aos
homens.
Passar
desapercebido, como passa o faxineiro quando vestido com suas roupas de folga,
não é para o padre uma opção. Ele deve estar disponível para o escarro do
herege e para a confissão do fiel, porque não há folga no seu serviço.
O
mesmo, evidentemente, vale para o hábito religioso das freiras e frades: se eles
o usam, mostram estar "em serviço", mostram estar à disposição para
quem precise de uma oração, para quem precise de ajuda. Chega a ser engraçado
ouvir de alguns padres a justificativa furadíssima de que não usam batina
porque querem se identificar com "o pobre"! Só se for com o pobre de
folga... ou com o rico que alguns pobres sonham em ser.
Pobre
usa uniforme quando trabalha. Quem o dispensa, ou melhor, quem a ele não é
obrigado, é a madame - e o que há de freira fantasiada de madame! -, é o
"doutor"- e o que há de padre com roupa social, entrando ou saindo de
um carro, indistinguível, para todos os que estão em torno, de qualquer rico
acumulando bens e negando serviço!
O
uso do "clergyman", a meu ver, apresenta também este problema: é
próximo demais de um terno, de uma roupa de quem, por sua posição social, pode
se dar ao luxo - negado ao pobre - de negar seu serviço. Como todos sabem, o
uso do "clergyman", originalmente, uma roupa usada por
"pastores" protestantes, surgiu na Igreja como uma forma de apagar a
identidade do sacerdote, tornando-o indistinguível dos protestantes em lugares
onde padres corriam o risco de ser atacados na rua, tamanho o sentimento
anti-católico.
É
por isso, por ser em cada país diferente a situação do clero, que a legislação
canônica faculta às Conferências episcopais de cada país autorizar ou não o uso
do "clergyman" em substituição à batina. Presume-se que a Conferência
possa distinguir se é ou não necessário "esconder" o padre. No
Brasil, é ridícula a idéia de que isso seja necessário, o que faz da permissão
dada pela CNBB um abuso de um direito lícito. Em outras palavras: é permitido
usar o "clergyman" no lugar da batina no Brasil, mas não existem as
razões que autorizariam esta substituição, apenas o frio texto da lei.
Cumpre
mesmo observar que só reconhece no "clergyman" uma roupa de padre
quem já é "de Igreja", quem já viu padres assim vestidos. A TV Globo,
graças a Deus, manteve viva a percepção nas massas afastadas da Igreja de que
padre usa batina: para quem não é "de Igreja", o
"clergyman" indica que seu portador é um "pastor"
protestante, não um padre.
Há
ainda outra razão para o uso da batina, igualmente importante: a simbologia
deste um uniforme específico. Assim como a roupa do faxineiro o faz ser
indiscutivelmente um faxineiro e a roupa do motorista faz com que ele não seja
confundido com o atendente da lanchonete, a batina mostra que ali há um padre.
O hábito não faz o monge, mas o identifica.
Isto
tem vários benefícios. Para o padre, há o benefício imediato de que sua
condição será sempre reconhecida antes mesmo que abra a boca. Por exemplo, a
mocinha que vê o rapaz bonito vestido de batina vai logo suspirar que é um
"desperdício", sem achar que ele possa ser um namorado em potencial.
Isto vai livrar o padre de algumas tentações mais perigosas que a média, e vai
livrar a mocinha de um desapontamento sério. Afinal, a moça honesta não tenta
seduzir o padre que ela sabe ser padre, mas pode tentar e conseguir seduzir o
padre que ela não identificou como tal e que, por fraqueza, não desfez o
malentendido. A chance de um momento de fraqueza se transformar em uma relação
desorganizada duradoura é muito menor para o padre cuja batina à vista afasta
desde logo as moças honestas. Resta-lhe apenas lidar com as que querem um
"troféu" sacrílego, mas estas dificilmente quereriam uma relação
duradoura. São quedas de que é mais fácil se levantar.
Do
mesmo modo, o reconhecimento do padre como tal faz com que ele seja chamado na
rua quando há um acidente e alguém jaz moribundo, para ministrar-lhe os
sacramentos, quando há uma crise espiritual em andamento, o que pode salvar uma
alma e mesmo uma vida (conheço um padre que, reconhecido pela batina, foi
chamado numa lanchonete e convenceu uma moça a não abortar), quando há, em suma,
a necessidade do seu serviço.
E,
finalmente, o padre de batina, como a freira ou o frade de hábito, servem como
"homens-sanduíche" (aquelas pessoas com placas enormes na frente e
nas costas, anunciando a compra de ouro ou os serviços de uma lanchonete): eles
anunciam que Deus não esqueceu de nós. A simples visão de um padre ou freira
pode servir, e serve, para muita gente como um "recado" de que devem
se emendar, devem procurar voltar à Fé. É uma presença da Igreja no mundo, mais
forte que os sinos da Matriz ou que milhares de campanhas de propaganda. É um
bem enorme prestado à sociedade, um lembrete de que há algo além da cobiça, da
luxúria, do orgulho.
Que
Deus abençoe todos os padres e religiosos que andam pelo mundo sem medo de
mostrar que, como qualquer outro pobre, estão em serviço. Um serviço, porém,
que não acaba e que não tem folga: o serviço do Bem.
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