domingo, 23 de março de 2014

03/03/2014 - Santa Missa, bênção e imposição das cinzas. Papa Francisco.

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Basílica de Santa Sabina  
Quarta-feira, 3 de Março de 2014

«Dilacerai os vossos corações e não as vossas vestes» (Jl 2, 13).

Com estas palavras penetrantes do profeta Joel, a liturgia introduz-nos hoje na Quaresma, indicando na conversão do coração a característica deste tempo de graça. O apelo profético constitui um desafio para todos nós, sem excluir ninguém, e recorda-nos que a conversão não se reduz a formas externas nem a propósitos indefinidos, mas compromete e transforma a existência inteira a partir do centro da pessoa, da sua consciência. Estamos convidados a empreender um caminho no qual, desafiando a rotina, nos devemos esforçar por abrir os olhos e os ouvidos, mas sobretudo o coração, para irmos além do nosso «pequeno horto».

Abrir-se a Deus e aos irmãos. Sabemos que este mundo cada vez mais artificial nos faz viver numa cultura do «fazer», do «útil», onde sem nos darmos conta excluímos Deus do nosso horizonte. Mas assim excluímos também o próprio horizonte! A Quaresma convida-nos a «despertar», a recordar-nos que somos criaturas, simplesmente que nós não somos Deus. Quando observo, no pequeno ambiente quotidiano, algumas lutas de poder para ocupar espaços, penso comigo mesmo: estas pessoas brincam de Deus Criador. Ainda não compreenderam que elas não são Deus!

E também em relação ao próximo, corremos o risco de nos fecharmos, de o esquecermos. Todavia, somente quando as dificuldades e os sofrimentos dos nossos irmãos nos interpelam, só então podemos encetar o nosso caminho de conversão rumo à Páscoa. Trata-se de um itinerário que abrange a cruz e a renúncia. O Evangelho de hoje indica os elementos deste percurso espiritual: a oração, o jejum e a esmola (cf. Mt 6, 1-6.16-18). Estes três elementos exigem a necessidade de não nos deixarmos dominar pelas aparências: o que conta não é a aparência; o valor da vida não depende da aprovação dos outros nem do sucesso, mas daquilo que temos dentro de nós.

O primeiro elemento é a oração. A oração é a força do cristão e de cada pessoa crente. Na debilidade e fragilidade da nossa vida, podemos dirigir-nos a Deus com confiança filial e entrar em comunhão com Ele. Diante de tantas feridas que nos angustiam e que poderiam tornar o nosso coração insensível, somos chamados a mergulhar no mar da oração, que é o oceano do Amor ilimitado de Deus, para saborear a sua ternura. A Quaresma é tempo de oração, de uma prece mais intensa, mais prolongada, mais assídua e mais capaz de nos tornar responsáveis pelas necessidades dos irmãos; prece de intercessão, a fim de rogar a Deus por tantas situações de pobreza e de sofrimento.

O segundo elemento qualificador do caminho quaresmal é o jejum. Devemos estar atentos a não praticar um jejum formal, ou que na verdade nos «sacia» porque nos faz sentir bons. O jejum só tem sentido se incide deveras sobre a nossa segurança, mas também se beneficiar o nosso próximo, se nos ajudar a cultivar o estilo do bom Samaritano, que se inclina sobre o irmão em dificuldade cuida dele. O jejum comporta a escolha de uma vida sóbria, segundo o seu estilo; uma existência que não desperdiça, uma vida que não «descarta». Jejuar ajuda-nos a treinar o coração para a essencialidade e a partilha. É um sinal de tomada de consciência e de responsabilidade perante as injustiças e os abusos, especialmente em relação aos pobres e aos mais pequeninos; é sinal da confiança que depositamos em Deus e na sua Providência.

Terceiro elemento, a esmola: ela indica a gratuidade, porque na esmola damos a alguém de quem nada esperamos receber em troca. A gratuidade deveria ser uma das características do cristão que, consciente de ter recebido tudo de Deus gratuitamente, ou seja, sem qualquer mérito, aprende também a doar aos outros de modo gratuito. Hoje muitas vezes a gratuidade não faz parte da vida diária, onde tudo se vende e tudo se compra. Tudo é cálculo e medida. A esmola ajuda-nos a viver a gratuidade do dom, que é liberdade da opressão da posse, do medo de perder aquilo que possuímos, da tristeza de quem não quer compartilhar o seu bem-estar com o próximo.


Com os seus convites à conversão, providencialmente, a Quaresma desperta-nos, acorda-nos do torpor e do risco de irmos em frente por inércia. A exortação que o Senhor nos dirige através do profeta Joel é vigorosa e clara: «Voltai para mim com todo o vosso coração» (Jl 2, 12). Por que motivo devemos voltar para Deus? Porque algo não funciona em nós, na sociedade e na Igreja, e porque temos necessidade de mudar, de fazer uma transformação. E isto chama-se precisar de conversão! Mais uma vez, a Quaresma vem dirigir-nos o seu apelo profético, para nos recordar que é possível realizar algo de novo em nós mesmos ao nosso redor, simplesmente porque Deus é fiel, sempre fiel, porque não pode renegar-se a si mesmo, continua a ser rico de generosidade e de misericórdia, sempre pronto para perdoar e recomeçar de zero. Ponhamo-nos a caminho com esta confiança filial!

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