Por Sávio Laet
Todos conhecemos a história da
queda dos nossos primeiros pais. Sabemos como
Adão e Eva numa pintura de
Lucas Cranach (1513-15).
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eles gozavam da intimidade com
Deus antes do pecado, e como, após o pecado, eles esconderam-se do Senhor. Mas
Deus os procurou, chamando-os: “Onde estás?” (Gn 3, 9). Esta voz do Senhor
ressoa pelos séculos, de sorte que podemos definir a história humana como a
história de Deus que procura reencontrar a sua criatura. Ora, em Cristo, Deus
reencontra-a. Nosso Senhor pôde dizer ao publicano Zaqueu – imagem do homem prevaricador – “(...) o Filho
do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10). Sim, Deus
veio nos procurar, veio encontrar-se conosco. A Encarnação é Deus mesmo que Se
“cansa” de nos chamar de longe. A Encarnação é Deus mesmo que se “cansa” de enviar
profetas para falarem em Seu nome. A Encarnação é Deus que se “cansa” de mandar
recados, cartas. Ele veio pessoalmente nos visitar: “Deus visitou o seu povo”
(Lc 7, 16). Ele veio falar conosco pessoalmente. O autor da Carta aos Hebreus
nos fala assim:
Muitas vezes
e de modos diversos falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes
dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos. É ele o resplendor de
sua glória e a expressão de sua substância. (Hb 1, 1-3).
Não mais por meio de profetas; não mais em livros, mas Deus em pessoa
veio nos buscar. A teologia do Novo Testamento é, pois, a teologia do encontro,
ou melhor, do reencontro de Deus com o homem no Verbo encarnado (Jo 1, 14). Na
passagem em que se diz: “(...) falou-nos por meio do Filho”, no original está
assim: “ἐλάλησεν ἡμῖν ἐν υἱῷ,
elálēsen hēmĩn en hyiȭ”.
Ora, a tradução que melhor expressa a ideia do autor é: “(...) falou-nos (em+o=
no) no filho” (Hb 1, 2). Em outras palavras, Deus nos falou na pessoa de
Cristo. Ele, Cristo, é a Revelação. Não fala em nome de Deus, é Deus; não
anuncia uma “mensagem de paz”, é a paz (Ef 2, 14); não traz uma “mensagem de
luz”, é a luz (Jo 8, 12). Não nos dá a alegria, “(...) é a nossa alegria [ipsa est et gaudium nostrum]”[1]. Não
aponta um caminho, não diz uma verdade, nem nos conduz a uma vida; antes, é o
caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6). Santo Agostinho explica este versículo
assim:
É nesse sentido
que o Senhor diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida (Jo 14, 6), isto é, por
mim se vem, por mim se chega, em mim se permanece [per me venitur, ad me pervenitur, in me permanetur].[2]
Nosso Senhor é o Α e o Ω (Apo 1,
8). Cristo não nos dá a ressurreição, é a ressurreição (Jo 11, 25). Em uma
palavra, Jesus é o grande “Eu sou (ἐγὼ εἰμί,
egṑ eimí)” (Jo 8, 58; Ex 3, 14), Deus
conosco (Mt, 1, 23). Ele é Deus que Se revela a Si mesmo. É Deus que revela
Deus. Daí Santo Agostinho dizer num Sermão:
“O Senhor falou-se de si mesmo, anunciou-se a si mesmo (Seipsum quippe locutus est, seipsum annuntiavit)”[3].
Cristo é o Verbo de Deus – que é Deus – que se fez carne (Jo 1, 14),
tornando-se, desta feita, uma Palavra não apenas inteligível e audível, mas
também visível, tocável, sensível. Deus, em Cristo, disse-nos uma Palavra
encarnada. E é esta Palavra – não outra – que a Igreja anuncia desde os
primórdios:
O que existia
desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o
que contemplamos e nossas mãos apalparam, é nosso tema: a Palavra da
vida. (...) O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos também a vós (...).
(I Jo 1, 1 e 3).
Em Cristo, Deus se tornou também alimento, ganhou um sabor, um gosto:
Eu sou o pão da
vida. (...) Minha carne é verdadeira comida e meu sangue é verdadeira bebida.
Quem comer a minha carne e beber meu sangue habitará em mim e eu nele. (Jo 6,
47 e 55 a 56).
Então, quem devemos anunciar e como devemos pregar? Comentando o capítulo
décimo do Evangelho de São João, em que Nosso Senhor afirma ser a Porta, Santo
Agostinho diz aos seus:
Procurando eu
entrar em vós, no vosso coração, prego a Cristo. Se eu prego outra coisa,
tentarei subir por outra parte. Cristo é pois para mim a porta por onde eu me
conduzo a vós. Entrei por Cristo, não nas paredes de vossas casas, mas nos
vossos corações.[4]
Alguém
poderia arguir-nos: mas as Sagradas Letras são 73 livros, compostos em
épocas distintas, com diferentes
gêneros literários e também por autores diversos. Sendo assim, como poderíamos
nos ater a Cristo? Porque todos os seus livros – responde a Tradição – encontram a sua unidade em Cristo. Toda
Bíblia não fala doutra coisa senão de Cristo. É em Cristo que as Escrituras se
unificam e tornam-se a Escritura, a Bíblia, um todo uno. E lê-la a partir de
Cristo, eis o que a Igreja faz desde os primórdios. Comentando um Salmo, assevera Santo Agostinho:
Uma só é a
palavra de Deus que se estende por todas as Escrituras; e através da boca de
muitos santos ressoa um só Verbo, que sendo no princípio Deus junto de Deus, lá
não consta de sílabas, porque está fora do tempo; e não devemos admirar que,
por causa de nossa fraqueza, ele desceu até às partículas de nossos sons,
quando desceu para assumir a fraqueza do nosso corpo.[5]
Mas
não foi justamente isso que Nosso Senhor tentou explicar aos discípulos de
Emaús? Diz o texto sacro: “E, começando por Moisés e percorrendo todos os
Profetas, interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito”
(Lc 24, 27). Santo Tomás, ao observar que Cristo – só depois da paixão –
mostrou aos discípulos que todas as Escrituras se referem a Ele, interpreta
belamente este gesto. Afirma que as Escrituras revelam o sacratíssimo coração
de Nosso Senhor, bem como o santíssimo coração do Senhor revela as Escrituras.
Destarte, quando o amantíssimo coração de Cristo foi aberto pela lança (Jo 19,
34), também as Escrituras foram abertas aos homens: “Não ardia o nosso coração
quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc
24, 32). Em outras palavras, só à luz do mistério pascal torna-se claro que
toda a Bíblia aponta unicamente para Cristo:
Pelo coração de
Cristo é entendida a Sagrada Escritura, que manifesta o coração de Cristo. Este
[coração] estava fechado antes da paixão, porque a Escritura era obscura. Mas
aberta esta [i.é., a Escritura] após a
paixão, os que a partir daí a compreendem, consideram e discernem de que modo
as profecias devem ser interpretadas.[6]
Somente
à luz dos padres e doutores, podemos entender o dito de São Paulo aos de
Corinto: “Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e
Jesus Cristo crucificado” (I Cor, 2, 2).
Mister é, pois, pregar a Cristo, levá-lO aos
corações! Como? Ora, o que temos a apresentar não é uma simples palavra, mas
uma Pessoa, que é o Verbo feito Carne. Nem mesmo é a palavra Cristo propriamente
que devemos anunciar, mas sim a pessoa de Cristo que devemos dar. O pregar com palavras
é um meio – necessário por certo – pois a fé vem pelo ouvir (Rm 10, 17), mas cujo
fim é Cristo nos corações. O Bispo de Hipona adverte aos de seu tempo:
Tens o nome, não tens a realidade. Cristo é um nome que
exprime uma realidade. Se quiseres que te aproveite o nome, deves professar a
realidade.[7]
As palavras valem por sua significação. Tira a significação à
palavra, e resta somente um ruído sem importância.[8]
Como isso se dá? Tal como Deus, em Nosso Senhor,
tornou-se uma Palavra encarnada, também o cristão deve tornar-se “(...) uma
carta de Cristo” (II Cor 3, 3), ou seja, deve pregar a Cristo também com a
palavra, mas sobretudo com a vida, com os seus membros (Rm 6, 19), com o seu
corpo (Rm 12, 1), enfim, com todo o seu
ser.
Mas por que Deus, em Cristo, fez-se homem? Já
sabemos que foi para revelar-Se, anunciar-Se. Todavia, foi também para se unir
a nós efetivamente. O Prólogo do
Evangelho de São João nos faz entrever algo do mistério. Diz-nos São João, que
o Lógos que era Deus (καὶ Θεὸς ἦv ὁ λόγος, kaì
Theòs ẽn ho lógos)” (Jo 1, 1) – sem deixar de sê-lo – fez-se carne:
“E o Verbo se fez carne (Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο,
kaì Theòs ho lógos sarx egéneto) e
acampou entre nós (καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν, kaì eskḗnōsen en hēmĩn)” (Jo 1, 14).
Com efeito, assumindo a natureza humana – sem deixar de ser Deus – a pessoa do Lógos assuntou a nossa natureza, unindo-a a
Deus. Se não, vejamos. São João nos diz que Cristo – Lógos feito carne – é o
Unigênito (μονογενής,
monogenḗs) do Pai (Jo 1, 18). Entretanto, acresce que, com
a Sua Encarnação, Nosso Senhor – aos que O receberam – fê-los filhos de Deus (τέκνα θεοῦ
γενέσθαι,
tékna Theoỹ genésthai) (Jo 1, 12). Estes – continua ainda o Evangelista –
nasceram de Deus (θεοῦ
ἐγεννήθησαν,
Theoỹ egennḗthēsan).
Agora bem, como conciliar: se Cristo é o
unigênito do Pai, como os homens tornaram-se filhos de Deus, nasceram de Deus?
Cristo deixou de ser o Unigênito? Decerto que não. Na verdade, os homens que
aceitam a Cristo, tornam-se filhos, no Filho, pois foi o Filho que os tornou
capazes de se tornarem filhos: “Mas aos que o receberam os tornou capazes de
ser filhos de Deus” (Jo 1, 12). São Paulo – que escreveu antes de São João –
ciente desta filiação, de Unigênito passou a chamar Cristo de Primogênito de
muitos irmãos (πρωτότοκον
ἐν
πολλοῖς
ἀδελφοῖς,
prōtótokon en polloĩs ádelfoĩs) (Rm 8, 29). E o mesmo São João – como se
dando conta desta filiação – celebra em sua Primeira
Carta: “Vede que grande amor o Pai nos mostrou: sermos chamados Filhos de
Deus (τέκνα θεοῦ
κληθῶμεν,
tékna Theoỹ klethȭmen) (...)” (I Jo 3, 1). Desta sorte, os primeiros
cristãos celebravam não somente Deus que veio a nós, mas – precisamente em
razão de Deus ter vindo a nós em Cristo – o fato de nós também termos ido a
Deus. Destarte, os cristãos cantavam também a ascensão da natureza humana em
Cristo. O homem feito “do pó da terra”, por Cristo, subiu ao Céu. O nosso
barro, em Cristo, tornou-se sublime:
Congratulemo-nos com a natureza humana, pois foi assumida de tal sorte pelo Verbo Unigênito, que é imortal no céu! A terra tornou-se tão sublime, que o pó tornado incorruptível foi sentar-se à direita do Pai.[9]
Os padres – gregos e latinos – uníssonos
celebravam esta elevação da natureza humana em Cristo. Santo Ireneu, no século
II, afirmava:
Este é o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem:
para que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se
tornasse filho de Deus.[10]
(...) o Verbo de
Deus, Jesus Cristo nosso Senhor, que na sua imensa caridade se fez o que nós
somos para nos elevar ao que ele é.[11]
Ora, mas Cristo é Deus. Assim, se Ele se fez
homem para que nos tornássemos o que Ele é, a sua Encarnação deificou o homem.
A Encarnação, portanto, não é somente o mistério de Deus que se fez homem – sem
deixar de ser Deus – mas do homem que, sem deixar de ser homem – em Cristo –
tornou-se partícipe da natureza divina. Pelo que Santo Atanásio, no
século IV, afirma: “Ele [Cristo] se fez homem para que fôssemos deificados”[12]. E Santo Tomás, no século XIII, citando uma homilia
natalina de Santo Agostinho, remata de forma claríssima: “Deus se fez homem
para que o homem fosse feito Deus [Factus
est Deus homo, ut homo fieret Deus]”[13].
Agora bem, isto significa uma espécie de
panteísmo? De forma alguma. Significa que nos unimos a Deus, como a pessoa do
Verbo uniu a si a nossa natureza? Não! Somos deificados por participação.
E o termo grego que expressa esta forma de participação é metékhein (μετέχειν). Este vocábulo indica um “ter com”, um
“co-ter”, ou simplesmente um “ter” em oposição a “ser” (Lauand). Aplicado ao
que dizemos, significa que, em virtude da nossa união com Cristo, passamos a
ter uma natureza divinizada, sem sermos duma natureza divina; dito doutra forma
ainda: por Cristo passamos a ter uma natureza divina, sem passarmos a ser
divinos por natureza. Ora, esta deificação se realiza através dos sacramentos
da Igreja, a começar pelo Batismo que nos associa a Cristo, tornando-nos consortes
da natureza divina: “θείας κοινωνοὶ
φύσεως, Theías koinōnoì fýseōs”
(II Pe 1, 4). Temos, então, que a Encarnação é Deus que Se revela a Si mesmo em
Cristo, mas que também nos busca, a fim de que voltemos a gozar da Sua
intimidade – mais – a fim de que nos tornemos Seus filhos em Cristo. Santo
Ireneu descreve esta “dialética” da Encarnação da seguinte forma:
Pois ele é o
Verbo de Deus, que habitou no homem e se fez Filho do homem para habituar o
homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no homem, segundo o beneplácito
do Pai.[14]
Agora, como podemos nos encontrar com Cristo, como podemos tocá-lO e ser
tocados por Ele concretamente? Certa feita, muitos contemporâneos de Nosso
Senhor O rodeavam e uma multidão O espremia, sem, no entanto, tocá-lO. Até que
Ele próprio disse: “Quem me tocou?” (Lc 8, 45). Pedro e os discípulos – vendo
que a multidão quase O esmagava – como que indignados, interpelaram-nO: “Vês a
multidão que te comprime e perguntas ‘Quem me tocou’?” (Mc 5, 31). Mas Nosso
Senhor insistiu: “Alguém me tocou; eu senti
(...)” (Lc 8, 46). Na verdade, era uma mulher que sofria de um fluxo de
sangue. E o que aconteceu neste toque? Comunicação. De Jesus, saiu uma força,
anunciada por Ele próprio: “(...) senti que uma força saía de mim” (Lc 8, 46);
da que sofria de hemorragia, foi a sua enfermidade que desapareceu. As
Escrituras dizem: “(...) ficara instantaneamente curada” (Lc 8, 47). Mas o que
a fez tocar Jesus e ser tocada por Ele, a ponto de ficar curada do seu mal? O
que estabeleceu esta comunhão, este contato? O Senhor responde: “Minha filha,
tua FÉ te salvou (...)” (Lc 8, 48). Na verdade, fisicamente, nem foi bem Nosso
Senhor que ela “tocou”, mas a “(...) orla do manto (...)” (Mt 9, 21). Tanto que
a pergunta de Cristo parece ter sido: “Quem tocou minhas roupas?” (Mc 3, 30).
E, no entanto, foi a Cristo que ela tocou: “Alguém me tocou (...)” (Lc 8, 46).
O que significa isso? Significa que nem todos os contemporâneos de Nosso Senhor
que fisicamente “esbarravam” nEle, tocaram-nO verdadeiramente, mas somente
aqueles que tinham fé! O mais das vezes, suspiramos por ter vivido no tempo de Cristo.
Porém, não foi o fato de a hemorroíssa ter vivido no tempo de Cristo que
possibilitou que Ela O reconhecesse como Deus, mas sim a sua fé. Aspiremos,
pois, a este dom de Deus: a fé! É a fé, portanto, que nos faz tocá-lO e ser
tocados por Ele. Sobre esta passagem, celebra Santo Agostinho num Sermão:
Mas aquele
tocar significa a fé (Sed ille
tactus fidem significat). Toca em
Cristo quem crê em Cristo (Tangit
Christum, qui credit in Christum). Pois também aquela mulher que padecia
de um fluxo de sangue disse para si mesma: se eu tocar a orla de seu manto, eu
serei salva. Tocou-a com a fé, e subsequentemente ficou sã, como havia
pressuposto. Ademais, para que soubéssemos o que é verdadeiramente tocar, o
Senhor disse depois a seus discípulos: “Quem me tocou?” Responderam os
discípulos: “A turba te comprime e perguntas: Quem me tocou?” E ele replicou: ‘”Alguém
me tocou”, quase que dizendo: “A multidão comprime, a fé toca.”[15]
Noutra Prédica, Santo Agostinho
faz a mesma reflexão:
Nós não
corremos para Cristo caminhando, corremos para Cristo acreditando. Não é pelo
movimento do corpo que nós nos aproximamos de Cristo, é pela vontade de
coração. A mulher que tocou a orla do vestido do Senhor, estabeleceu com ele um
contato mais estreito do que a multidão. Por isso o Senhor perguntou: “Quem me
tocou?” E os discípulos disseram admirados: ‘As multidões apertam-te e
comprimem-te, e perguntas: “Quem me tocou. E Jesus disse: Alguém me tocou”. A
mulher toca o Senhor, e a multidão comprime-o. Que quer dizer “tocou-o”? Quer
dizer: “acreditou”.[16]
Pela fé, nós podemos estar mais próximos de Nosso Senhor do que estiveram
os seus contemporâneos. Aliás, a fé – mesmo num plano natural e mais ainda no
sobrenatural – abarca, essencialmente, um aproximar-se, um tornar-se próximo.
Basta olharmos para a vida humana. De quem somos mais próximos? Somos mais
próximos daquelas pessoas em quem acreditamos. Assim na vida espiritual,
próximo do Senhor é aquele que nEle crê. Afirma Santo Agostinho que, assim como
nós nos movemos para onde queremos ir por meio de nossos pés, assim a alma se
move por meio da fé: “Acreditar é aproximar-se. Quem acredita aproxima-se, e
quem nega afasta-se. A alma não se move por meio de pés, mas de afetos”[17].
Por isso, a fé movimenta a alma para Deus. A fé compreende um aproximar-se, que
só alcança seu termo na visão, no encontro. Santo Tomás, com contundência,
afirma que a fé – quando verdadeira – não termina nas fórmulas ou enunciados, mas
na realidade em que se crê:
Ora, o ato do
que crê não se orienta para o enunciado, mas para a coisa: não formamos
enunciados a não ser para que tenhamos conhecimento das coisas, como acontece
na ciência, também na fé.[18]
Na verdade, ao dizê-lo, Santo Tomás não faz senão retomar a Tradição.
Santo
Agostinho já dizia que os bons espíritos têm um traço que lhes é
peculiar: “Aí está um traço marcante dos bons espíritos: amar nas palavras a
verdade e não as próprias palavras”[19].
São João Crisóstomo, comentando a Carta
aos Romanos, diz o mesmo: “(...) o sinal é inferior à coisa significada”[20]. Pois
bem, a fé – que sem dúvida passa pelo Símbolo professado –termina, contudo, no
estabelecimento dum contato espiritual entre nós e o mistério professado. Em
outras palavras, quando cremos, não cremos apenas em coisas futuras, mas
misteriosamente já fruímos daquela Vida que confessamos ser Cristo. O autor da Carta aos Hebreus é absolutamente claro
quanto a isso: “A fé é um modo de possuir desde agora o que se espera, um meio
de conhecer realidades que não se vêem” (Hb 11, 1). Tomás, quando abre o seu Compêndio de Teologia, afirma
categoricamente que a fé é um antegozo, um modo de possuir desde agora algo da
bem-aventurança eterna. A fé arrasta o futuro para o presente. A fé torna
presente, em mistério, o futuro. Diz o Santo Doutor:
A fé é uma
certa prelibação daquele conhecimento que nos fará bem-aventurados no futuro. O
Apóstolo disse que ela é a ‘substância das que se esperam’ (Hb 11, 1), fazendo
existir em nós, por certa incoação, as coisas que se esperam, isto é, a
felicidade futura.[21]
A bem da verdade, nem precisamos esperar os padres e doutores, quando o
próprio Senhor no-lo diz: “(...) aquele que crê tem a vida eterna” (Jo 6, 46). Portanto, desde já, pela fé, inicia-se
em nós a vida eterna! Daí Santo Agostinho dizer que, tal como a alma é a vida
do corpo, a fé é a vida da alma: “Donde provém a morte da alma?
De não haver
fé. Donde provém a morte do corpo? Da ausência da alma. Portanto a fé é a alma
da alma”[22]. E
quando morre a fé? Já dizíamos que a fé é um aproximar-se de Cristo. São Paulo
dirá que a fé é um modo de Cristo habitar em nosso coração: “(...) que Cristo
habite pela fé em vossos corações (...)” (Ef 3, 17). Sendo assim, a fé morre
quando nos afastamos de Cristo, quando O deixamos de lado, quando O esquecemos.
E como isso ocorre? Quando nos fiamos em qualquer outra coisa que não seja Ele.
Enquanto os discípulos tentavam domar as ondas apenas com as suas próprias forças,
foram tomados pelos ventos do medo e houve grande tempestade (Mt 8, 23 a 27). Com
efeito, nas Escrituras, o contrário de medo não é coragem, mas fé. A fé é a
nossa coragem. Tal como a alma é o princípio de movimento do corpo, assim a fé
é o princípio de movimento da alma: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl
4, 13). Donde o Doutor de Hipona dizer acerca da cena evangélica: se pela fé
Cristo habita em nossos corações, o fato de ele estar dormindo significava que
a fé dos discípulos também dormia. Ao contrário, Cristo ao ser despertado,
diz-nos que a fé dos discípulos tinha retornado. A grande bonança é Cristo
acordado no coração do fiel:
Se no interior
há fé, aí está Cristo a bramir. Se em nós há fé, está em nós Cristo. (...) A
tua fé tem a sua fonte em Cristo. Cristo está no teu coração. (...) O
esquecimento da fé é o sono de Cristo no teu coração. Se acordares Cristo, isto
é, se despertares a fé, que te diz Cristo que já está em certo modo acordado no
teu coração? (...).[23]
A exortação de São Paulo continua a ressoar pelos séculos: “Ó tu, que
dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará” (Ef
5, 14). O Apóstolo pede o despertar da fé!
A propósito, não é só o futuro que a fé – de certo modo – torna presente,
mas também o passado. Sim, a fé torna presente o passado. Ou melhor, ela não
permite que o passado seja passado, isto é, o que já passou e acabou. Isto
acontece de forma mais solene na liturgia eucarística – grande mistério da fé –
na qual o sacrifício do Calvário se perpetua. Não se repete, mas se pereniza pela
ação do Espírito Santo. Não acontece de novo, mas nunca se torna passado. Jamais
envelhece, pois não se encerra “num já passou”; antes, permanece sempre novo,
sempre único. O mistério é celebrado por Santo Agostinho que, ao falar da
paixão e ressurreição do Senhor, diz sobre a liturgia:
A verdade
indica [as coisas] que foram feitas e como foram feitas. A solenidade, ao
contrário, não os fazendo, mas os celebrando, não permite que os fatos pretéritos
sejam preteridos.[24]
De fato, pela fé – como que ultrapassando os limites do tempo –
experimentamos algo da eternidade; encontramo-nos naquele presente vivo pelo
qual tornamo-nos contemporâneos dos eventos da salvação e contemporâneos da
Igreja triunfante. A fé une o que o tempo separa.
Mas de qual fé estamos falando?
Sabemos que, “(...) sem a fé, é impossível
agradar a Deus” (Hb 11, 6).
Porém, São Tiago nos adverte: “Tu crês que há um só Deus? Ótimo! Lembra-te,
porém, que também os demônios crêem, mas estremecem” (Tg 2, 19). E conclui:
“Assim também a fé, se não tiver obras, está completamente morta” (Tg 2, 17).
Por vezes pensamos que a fé morta da qual nos fala São Tiago é – se bem que
morta – uma espécie de fé. Não, não é isto que ele nos diz. A fé morta não é
fé. Não há fé quando a fé é morta! Por outro lado, não se trata de pensar que dum
lado está a fé e doutro as obras; trata-se, ao contrário, de compreender que a
verdadeira fé produz obras. Como um corpo vivo não pode ficar imóvel, a fé – se
é fé – não pode ficar ociosa. São Tiago diz: “(...) o homem é justificado pelas
obras e não simplesmente pela fé” (Tg 2, 24). É preciso ponderar. Não se trata
de dizer que a fé seja estranha às obras ou as obras à fé, porque também as
obras sem a fé sobrenatural nada valem na ordem da salvação. A verdade está
aqui: a fé – e as obras que procedem dela – formam uma unidade; como no homem,
a vida do corpo é dada pela alma, assim as obras meritórias procedem da fé que
opera pela caridade. Daí São Tiago dizer: “Com efeito, como o corpo sem o sopro
de vida é morto, assim também é morta a fé sem as obras” (Tg 2, 26). Santo
Agostinho expressa isso da seguinte forma num Sermão: “O Senhor não separou da fé a obra; disse que a própria fé
já é uma obra. Trata-se da fé que opera pela caridade (Gal 5, 6)”[25].
Todavia, a fé verdadeira possui outros “sinais”. Diz São João que Deus
nos manda isso: “(...) que creiamos na pessoa de seu Filho Jesus Cristo (ἵνα πιστεύσωμεν τῷ
ὀνόματι τοῦ
υἱοῦ αὐτοῦ Ἰησοῦ
Χριστοῦ, hína pisteýsōmen tȭ onómati toỹ hyioỹ aytoỹ Iēsoỹ
Khristoỹ= Que nós creiamos no nome de seu Filho Jesus Cristo)” (I Jo 3,
23). Já sabemos que crer implica aproximar-se, implica entregar-se. Sabemos
também em quem devemos crer, a saber, em Cristo. No entanto, quantos são os que
buscam Cristo, mas não por causa de Cristo e, sim, por benesses temporais. Quantos
– meu Deus! – quantos O abandonam depois que recebem ou não conseguem o benefício
que buscam. É preciso dizer, estes não buscam Nosso Senhor, não querem ter
intimidade com Ele, procuram apenas um taumaturgo, um benfeitor. Buscam-nO, mas
não por causa dEle e, sim, por causa de vantagens temporais. A fé verdadeira, a
fé católica – grita Agostinho – é buscar Jesus por Jesus:
Quantos os que
não procuram Jesus senão para receber benefícios de ordem temporal! Está
envolvido num negócio, e procura a intervenção dos clérigos. Outro foge para a
Igreja, ao ver-se oprimido por um mais poderoso. Outro quer que se interceda a
seu favor junto de alguém que o tem em pouco apreço. Raras vezes se busca a
Jesus por causa de Jesus (Iesus propter
Iesum).[26]
Aos que O procuravam apenas por causa do pão material (Jo 6, 22 a 27),
Cristo disse que deveriam buscar o Pão do Céu, o Pão da Vida, que é Ele mesmo
(Jo 6, 35). Naquele episódio – comenta o Bispo de Hipona – Nosso Senhor estava
a dizer: “Procurais-me por vários motivos, e deveis procurar-me por causa de
mim mesmo (quaerite me propter me)”[27].
Então, qual é a fé verdadeira? A fé é um dom de Deus (Ef 2, 8). Ela não
procede das obras, não é um hábito que possa ser adquirido com esforço. Antes, a
fé é um presente de Deus, uma virtude infusa. E ela só é verdadeira quando
brota do amor, isto é, da caridade, que também é dom de Deus; a caridade nos
capacita a amar a Deus por Deus e ao próximo por Ele. A caridade nos capacita também
a crermos em Cristo por amor, a crermos nEle por Ele. Só quem crê porque ama,
crê verdadeiramente. Finalmente, a fé – porque procede do amor – une-nos uns
aos outros, é um movimento que nos faz “abandonar” o nosso “eu” para nos abraçarmo-nos num “nós”. Melhor, faz com
que integremos o nosso “eu” num “nós”. A fé nos une a Cristo, nos faz Corpo de
Cristo. Em uma palavra, a fé é, por essência, um evento eclesial. Adverte-nos
Santo Agostinho que qualquer outro tipo de “crença” não é fé. Quem não crê por
amor, tem uma “fé” natural que até os demônios possuem. Exorta o santo Bispo:
Que acrediteis
nele, e não somente que lhe presteis crédito. Quem acredita nele, presta-lhe
crédito; mas não se segue que sempre acredita nele quem lhe presta crédito. Os
demônios também lhe prestavam crédito e não acreditavam nele. (...) Que é,
pois, acreditar nele? É amar acreditando, dedicar-se acreditando, ir para ele
acreditando, e ser incorporado nos seus membros. Tal é a fé que Deus exige de
nós; mas Deus não encontra o que exige, se não der o que deseja encontrar.
(...) Não se trata de qualquer fé, trata-se da fé que opera pela caridade. Haja
em ti esta fé.[28]
E o que a fé nos dá? A vida eterna! Mas o que é a vida eterna? A rigor, é
Deus mesmo. Porém, tentemos entender este mistério um pouco mais de perto. Afirma
Nosso Senhor: “(...) a vida eterna é esta: que eles te conheçam a ti, o único
Deus verdadeiro, e aquele que enviaste, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Observemos,
porém, que para um judeu piedoso, conhecer não era algo somente ou
preponderantemente teórico. Na Bíblia, a palavra conhecer significa coabitar,
ou seja, unir-se com aquele que se conhece. Se não há isso, não há verdadeiro conhecimento
para o judeu. Ora, é justamente este conhecimento que a fé nos dá. Não somente um
conhecimento de “saber acerca de”; não se trata simplesmente de um saber de
“ouvir dizer”, mas sim de um saber que provém do experimentar Deus. Santo
Tomás, quando fala deste conhecimento, usa um exemplo muito simples. Uma coisa
é saber o que é a castidade quando se conhece, estudando, o que é o hábito da castidade;
outra, é saber o que é a castidade quando se é casto. Assim, uma coisa é saber,
estudando, algo de Deus; outra, é saber quem é Deus por tê-lO em nós, por nos
envolvermos com Ele, por Ele ter-se tornado familiar a nós, por gozarmos da Sua
intimidade. Em uma palavra, conhecemos a Deus quando nos tornamos Seus
consortes. Ora, é precisamente este saber – ratificamos – que a fé inicia em
nós e que se desabrocha pela caridade e que se consumará na glória. A fé não
termina na confissão de fórmulas, mas nAquele que confessamos: Deus! Este é o
saber que nos salva. Diz Santo Tomás:
Assim, no
que diz respeito à castidade, aquele que aprendeu a ciência moral julga bem em
conseqüência de uma inquirição racional; enquanto aquele que tem o hábito da
castidade julga bem por uma certa conaturalidade com ela. Assim, portanto, no
que diz respeito às realidades divinas, ter um julgamento correto em virtude de
uma inquirição da razão pertence à sabedoria, que é uma virtude intelectual.
Mas, julgar bem as coisas divinas por modo de conaturalidade pertence à
sabedoria enquanto é um dom do Espírito Santo. Dionísio, falando de Hieroteo,
diz que ele é perfeito no que se refere ao divino “Não somente por apreendê-lo, mas também por experimentá-lo.”[29]
Ora, este conhecimento experiencial de Deus provém do Espírito Santo. São
Paulo fala sobre este conhecer aos Coríntios, explicando: “Quem, pois, dentre
os homens conhece o que é do homem, senão o espírito do homem que nele está?”
(I Co 2, 11). Na sequência, ele aplica a analogia: “Da mesma forma, o que está
em Deus, ninguém o conhece senão o Espírito de Deus” (I Co, 2, 11). Pois bem,
diz São Paulo: “Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito
que vem de Deus” (I Co 2, 12). O Apóstolo raciocina. Se quem conhece a Deus não
é senão o Espírito de Deus, e se este nós O recebemos, ele no-lo foi dado
“(...) a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus (I Co 2, 12). Na
verdade, em virtude de estarmos unidos a Cristo como membros do Seu Corpo
Místico – e sendo Cristo Deus – de algum
modo tornamo-nos “(...) participantes da natureza divina” (II Pe 1, 4),
participando – decerto de modo imperfeito – também do conhecimento de Cristo:
“Nós, porém, temos o pensamento de Cristo” (I Co 2, 16). Ora, é desta sabedoria
que Santo Tomás fala, a saber, a que procede dum contato espiritual com Deus.
Este é o conhecimento que se aprofunda nos grandes místicos, como São João da
Cruz, e é diverso – nunca contrário – à sabedoria teológica.
Agora bem, como chegar a este conhecimento saboroso de Deus? Através da
oração. Procuremos adentrar, por um instante, no mistério da oração cristã. No
meio dum Sermão sobre o Evangelho de
São João, Santo Agostinho nos dá uma pista: “Não receeis a solidão (nolite solitudinem
formidare).[30] A
que exatamente o Santo Doutor se refere? Na verdade, ele nota que Nosso Senhor,
quando queria estar com o Pai, retirava-se. Donde advertir os seus:
É difícil
ver-se Cristo quando se está no meio da multidão. O nosso espírito tem
necessidade de solidão; é na concentração do espírito que se pode ver Deus, e
essa é fruto da solidão. A multidão faz barulho, e a visão de Deus exige
silêncio. Não procureis Jesus na multidão, porque Jesus não faz parte dela, mas
passai para além de toda multidão.[31]
De fato, Nosso Senhor mesmo é o primeiro a nos testemunhar que a oração
reclama, algumas vezes, que recuemos. Diz-nos São Marcos que, por ocasião do
episódio da transfiguração, “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os
levou, sozinhos, para um lugar
retirado sobre a Montanha” (Mc 9, 2). E afirma que “Ali foi transfigurado
diante deles” (Mc 9, 2). Ali, no lugar retirado, na solidão da Montanha, Deus
mostrou-se. Noutro episódio, enquanto disse aos demais discípulos que
permanecessem ali, afastou-se com os seus diletos. Disse: “‘Sentai-vos aí enquanto vou até ali para orar’. Levando Pedro e os dois
filhos de Zebedeu” (Mt 26, 36-37). São Lucas – sempre atento à dinâmica da
oração – acresce que Ele “(...) afastou-se
deles mais ou menos um tiro de pedra (...)” (Lc 22, 41). E o que aconteceu
naquela solidão? O Adorável Redentor revelou o seu íntimo aos seus discípulos,
abriu Sua alma amantíssima. Diz o texto Sagrado: “(...) começou a
entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes: ‘Minha alma está triste até a
morte’” (Mt 26, 37-38). No segredo, começou a segredar-lhes. Mas o texto de São
Marcos vai mais longe, ao dizer que Nosso Senhor “(...) indo um pouco mais adiante, caiu por terra, e orava (...)” (Mc 14, 35). São Lucas
afirma ainda que algo aconteceu quando Nosso Senhor ficou absolutamente sozinho
em oração: “Apareceu-lhe um anjo do céu, que o confortava” (Lc 22, 43). O que
temos aqui? O conforto de Deus dá-se na solidão. Deus também quer nos consolar,
que se revelar a nós, a cada um segundo a medida da graça. No Evangelho de São
Mateus, quando Nosso Senhor fala da oração, é claro quanto a isso: “Tu, porém,
quando orares, entra no teu quarto e, fechando tua porta, ora a teu Pai (...)”
(Mt 6, 6). E diz mais: “(...) ora a teu Pai que está lá, no segredo; e teu Pai,
que vê no segredo, te recompensará” (Mt 6, 6). Deus está no segredo, Deus vê no
segredo. Deus habita no silêncio. Deus nos vê no segredo. Na solidão e no
silêncio, iremos encontrar-nos com Deus, pois Ele mora por lá e nos espera.
Precisamos do “ali” da oração, que se opõe ao “aqui”. A oração é um movimento
da graça que, por um momento, “segrega-nos” do mundo para nos fazer encontrar
com Aquele que, no secreto, deseja secretar-nos a Sua santíssima vontade.
Precisamos constantemente voltar-nos àquele deserto, onde podemos ficar a sós
com Deus. “Ele porém permanecia retirado em lugares desertos e orava” (Lc 5,
16). Não se trata de quietismo, pois da oração sempre saímos renovados, como
veremos.
Dizíamos neste texto que devemos pregar a Cristo. Mas como anunciar a
Cristo? São Paulo diz aos Coríntios: “(...) minha palavra e minha pregação nada
tinham da persuasiva linguagem da sabedoria, mas eram uma demonstração de
Espírito e poder (...)” (I Cor 2, 4).
Mas por que o Espírito Santo é necessário na pregação cristã? Porque é o
Espírito quem vivifica as Escrituras e faz com que não apenas as leiamos, mas
escutemos nelas a voz de Cristo. Di-lo-á o próprio Senhor:
Quando vier o
Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de
si mesmo (...) Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e
vos anunciará. (...) ele receberá do que é meu. (Jo 16, 13, 14 e
15).
O que diz Nosso Senhor? Afirma que o Espírito não trará uma nova
Revelação; antes, ensinará à Igreja o verdadeiro sentido da palavra de Deus.
Ele dirá as palavras de Cristo. A bem da verdade, as Escrituras foram
inspiradas pelo Espírito. Ora, se é Ele quem as inspirou, quem melhor do que
Ele para explicá-las? Outrossim, se o Espírito – como diz o Senhor – “(...) vos ensinará tudo e vos recordará tudo
o que vos disse (...)” (Jo 14, 26), é a voz e a doutrina de Cristo que o
Espírito nos traz. Destarte, urge termos a graça do Espírito. Neste sentido, já
Santo Tomás dizia que, “(...) também a letra do evangelho mataria, a não ser
que estivesse presente, interiormente, a graça da fé que cura”[32].
E quem confere esta graça? Responde o mesmo Tomás: “(...) a própria graça do
Espírito Santo dada interiormente”[33]. Desta
sorte, pela ação do Espírito, a letra da Bíblia ganha, por assim dizer, uma voz;
torna-se, então, audível, encarnada, contemporânea a nós. Daí dizer Santo
Agostinho: “O Evangelho é a voz de Cristo (Os Christi, Evangelium est. [os, oris, significa boca, fala, voz])”[34]. De mais a mais, o mesmo Bispo de Hipona dizia
que, quando lia o Evangelho – ao ouvir a voz de Cristo – era tomado de santo
temor. Num dos seus Sermões, chega a
dizer: “O Evangelho me aterroriza [terret
me evangelium]”[35].
Onde recebemos o Espírito Santo? Antes de tudo, no Batismo (Rm 6). Porém,
também pela oração. Dizem as Escrituras: “(...) no momento em que Jesus, também
batizado, achava-se em oração, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre
ele (...)” (Lc 3, 19). Obviamente que Nosso Senhor já tinha o Espírito Santo.
Ele é Deus. Todavia, o mistério do Batismo de Cristo nos diz algo: a oração é
sempre o momento em que o Céu se abre e recebemos o Espírito Santo.
E como dizíamos acima, a oração não nos aliena da realidade, mas nos dá
força para enfrentá-la. Tentemos entender isso melhor. As Sagradas Letras dizem
que “Jesus, pleno do Espírito Santo, voltou do Jordão; era conduzido pelo
através do deserto, durante quarenta dias (...)” (Lc 4, 1 e 2). O que nos diz o
hagiógrafo? O próprio Espírito nos impele como ao Senhor à oração no deserto.
Mas o texto sacro continua: “Jesus voltou para a Galiléia, com a força do
Espírito, e sua fama espalhou-se (...)” (Lc 4, 14). O que nos diz o texto? Afirma
que o mesmo Espírito que nos inspira à oração impulsiona-nos à ação. No
episódio da Transfiguração, o mesmo Cristo que levou os discípulos à montanha,
fê-los descer dela – à revelia de Pedro (Lc 9, 34) – ao encontro da multidão:
“No dia seguinte, ao descerem da montanha veio ao seu encontro grande multidão”
(Lc 9, 37). A oração cristã nos leva à ação, ao encontro da multidão. Na
verdade, a oração – inclusive a de intercessão – é conditio sine qua non para
que haja uma pregação cristã. Assim nos ensina o Doutor de Hipona em seu manual
de exegese cristã: “(...) orando por si e por aqueles a quem falará, deve ser
orante, antes de ser orador”[36] .
E ainda: “(...) fala após ter rezado (...)”[37].
Uma última questão – porém, a mais importante – é saber: quem deve,
prioritariamente, pregar a Cristo? Recordemos que nos capítulos do Evangelho de
São João (14-16) em que Nosso Senhor fala do Espírito Santo como aquele que instrui,
este discurso era destinado aos onze. E hoje, quem são os sucessores dos
Apóstolos? O Papa e os Bispos a ele (i.é., ao Papa) obedientes. Portanto, foi a
eles, primeiramente, que Cristo prometeu a assistência do Espírito. A eles o
múnus de exercer a docência. A eles, por conseguinte, o condão de pregar a
Cristo. Desta feita, os leigos só podem trazer uma palavra apostólica, quando obedientes
aos sacerdotes obedientes aos Bispos, e estes, por sua vez, obedientes ao Sumo
Pontífice. Encerramos este pequeno texto com a máxima agostiniana, que nos
convida à unidade e à obediência à Igreja: “Eu, na verdade, não creria no
Evangelho se não me impulsionasse a isto a autoridade da Igreja Católica”[38].
[1] AGOSTINHO.
Comentário ao Evangelho de São João: A
Ceia do Senhor. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de
Coimbra, 1952. v. IV. LXXXIII, 1.
[2]
AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. Trad.
Nair de Assis Oliveira. Rev. Paulo Bazaglia e Honório Dalbosco. São Paulo:
Paulus, 2002. I, 34, 38.
[3] AGOSTINHO.
Comentário ao Evangelho de São João:
Luz, Pastor e Vida. 2ª ed. Trad.
José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra: Gráfica de Coimbra, 1960. v. III. LIV, 6.
[4] Idem. Ibidem. XLVII, 2.
[5]
AGOSTINHO. Comentário aos Salmos.
Trad. Monjas Beneditinas. Rev. H. Balboco. São Paulo: Paulus, 1998. v. III.
103, IV, 1.
[6] TOMÁS
DE AQUINO. Super Psalmo. 21,11.
Disponível em: <http://www.corpusthomisticum.org/cps21.html>.
Acesso em: 15/01/ 2014. (A tradução, para o português, é nossa).
[7] AGOSTINHO.
Comentário ao Evangelho de São João:
Luz, Pastor e Vida. XLV, 5.
[8] Idem. Ibidem.
[9] AGOSTINHO.
Comentário ao Evangelho de São João: A
Ceia do Senhor. LXXVIII, 3.
[10] IRENEU
DE LIÃO. Contra as Heresias. 2ª ed.
Trad. Lourenço Costa. Rev. H. Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995. III, 19, 1. p.
336.
[11] Idem. Op. Cit. V, Prefácio. p.
518.
[12] ATANÁSIO.
A Encarnação do Verbo. Trad. Orlando
Tiago Loja Rodrigues Mendes. São Paulo: Paulus, 2002. VI, 54, 3. p. 198.
[13] TOMÁS
DE AQUINO. Suma Teológica. Trad.
Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. III, 1, 2, C.
[14] IRENEU. Op. Cit. III, 20, 2. p. 340.
[15] AGOSTINHO.
Sermo 243. 2, 2. In: Obras Completas de San Agustín XXIV:
Sermones (4.ª). Trad. Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1983. p. 485. (A tradução para o português e o negrito são nossos. Como se
trata de uma edição bilíngue, o mais das vezes optamos por seguir o original
latino).
[16] Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. XXVI, 3.
[17] Idem. Ibidem. XLVIII, 3.
[18] TOMÁS
DE AQUINO. Suma Teológica. Trad.
Aimom- Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. II-II, 1, 3, ad 2.
[19] AGOSTINHO.
A Doutrina Cristã. IV, 11, 26.
[20] JOÃO
CRISÓSTOMO. Homilias Sobre a Carta aos
Romanos. Trad. Mosteiro da Mãe do Cristo. Rev. Iranildo Bezerra Lopes. São
Paulo: Paulus, 2010. Oitava Homilia. p. 148.
[21] TOMÁS
DE AQUINO. Compêndio de Teologia. 2ª
ed. Trad. Odilão Moura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. I, II, 1.
[22] Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Luz, Pastor e Vida. XLIX, 14.
[23] Idem. Ibidem. XLIX, 19.
[24] AGOSTINHO.
Sermo 220. 1. p. 227. In: Obras Completas de San Agustín XXIV:
Sermones (4.ª). Trad. Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1983. p. 485. (A tradução para o português e os destaques são
nossos. Como se trata de uma edição bilíngue, o mais das vezes optamos por
seguir o original latino).
[25] AGOSTINHO.
Comentário ao Evangelho de São João:
Médico e Alimento. 2ª ed. Trad. José Augusto Rodrigues Amado. Coimbra:
Gráfica de Coimbra, 1954. v. II. XXV, 12.
[26] Idem. Ibidem. XXV, 10.
[27] Idem. Ibidem.
[28] Idem. Ibidem. XXIX, 6.
[29] TOMÁS
DE AQUINO. Suma Teológica. II-II,
45, 2, C. (O negrito é nosso).
[30] AGOSTINHO.
Comentário ao Evangelho de São João: A
Ceia do Senhor. XCIII, 4.
[31] Idem. Comentário ao Evangelho de São João: Médico e Alimento. XVII, 11.
[32] TOMÁS
DE AQUINO. Suma Teológica. I-II,
106, 2, C.
[33] Idem. Ibidem.
[34]
AGOSTINHO. Sermo 85. 1, 1. In: Obras Completas de San Agustín X: Sermones
(2.ª). Trad. Lope Cilleruelo, Moises M.ª Campelo, Carlos Moran y Pio De Luis.
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1983. p. 498. (A tradução para o
português e os destaques são nossos. Como se trata de uma edição bilíngue, o
mais das vezes optamos por seguir o original latino).
[35] AGOSTINHO.
Sermo 339. 4. In: Obras Completas de San Agustín XXVI:
Sermones (6.ª). Trad. Pio De Luis. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1985. p. 9. (A tradução,
para o português, é nossa).
[36]
AGOSTINHO. A Doutrina Cristã. IV,
16, 32.
[37] Idem. Ibidem. IV, 18, 34.
[38]
AGOSTINHO. Réplica a la carta llamada
«del Fundamento». 5, 6. In: Obras
Completas de San Agustín XXVI: Escritos antimaniqueos (1.ª). Trad. Pio De Luis.
Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1986.. p. 391. (A tradução, para
o português, é nossa).
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