quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O deserto: pedagogia da vida espiritual.


Por Paulo Henrique Cremoneze
  
Sempre amei o deserto, mesmo antes de conhecê-lo. Depois que estive algumas vezes na Terra Santa (Israel) e na Turquia, vendo-o de perto, passei a ama-lo mais. No deserto as paixões são serenadas, os afetos ordenados e o ego mortificado. No deserto, a alma enamorada de Deus tem condições mais favoráveis para um encontro íntimo, uma via mística de purificação. O deserto, em sua aridez, expõe a beleza bruta da Criação, dá um novo sentido à vida. No silêncio do deserto, ouve-se a voz de Deus no sibilar do vento e na força das particulas de areia. Quem ama o deserto sente a constante nostalgia do vazio que em si mesmo tem tudo. 

O deserto toca fundo em minh´alma e me convida à contemplação.

Por isso, procuro todos os dias estabelecer um momento de deserto, um lugar, alguns minutos em que vivo, mesmo em meio ao caos urbano e as ocupações regulares cotidianas, o espírito do deserto.

Ao deserto caminhou Abrãao, quando chamado por Deus.

Pelo deserto vagou Moisés e o povo escolhido, confiando sempre na providência Divina, depois da fuga do Egito.

No cume do Monte em meio ao deserto, Deus concedeu aos homens, por meio de Moisés, seus dez mandamentos.

No deserto que a Sagrada Família buscou refúgio quando em grave risco de morte.

Para as entranhas do deserto, o Senhor Jesus foi preparar-se para a missão confiada por Deus e o início de sua vida pública.

No deserto vivia o precursor, o maior dos profetas, João Batista, quem batizou o Senhor, exatamente nas águas de um rio que cortava a aridez na Terra Santa.

No deserto, Jesus, verdadeiro homem e verdadeiro Deus, enfrentou e venceu o demônio.

E também no deserto, provavelmente no monte Tabor, Jesus tranfigurou-se antecipando Sua Glória, a glória da ressurreição.

O deserto tem mesmo esse significado: transformação.

A força selvagem do deserto, avassaladora, transfigura àqueles que a enfrentam com as armas da fé e da coragem, do destemor e da esperança.

O deserto, mais do que qualquer outro lugar, se faz metáfora perfeita do paradoxo vida e morte.

Na aparente capa da morte, que marca o deserto como um signo indelével, tem-se a vida em plenitude, testada, mortificada, potencializada, glorificada.

Há, sem o risco de tangenciar eventual heresia, algo de Sacrário no Deserto, pois lá a fornalha viva do amor de Deus pode ser encontrada.

Não à toa, a sarça que ardia sem se consumir e pela qual Deus falou a Moisés se fez visível no deserto.

Há um especial amor de Deus pelo deserto.

O deserto é pedagógico pois na solidão em meio a aridez, mais do que nunca, o homem vivencia a experiência bendita de poder confiar única e exclusivamente em Deus.

É no deserto que as palavras de Isaías ganham uma dimensão escatológica: "Eu sou o Senhor, teu Deus, que te toma pela mão e te diz: não temas, eu te ajudarei".

Também é no deserto que o homem melhor entende a força invulgar do Salmo que diz: "Bendito é o Senhor, meu rochedo, que adestra minhas mãos para a guerra e os meus dedos treina para a peleja".

Encarar e vencer o deserto, seja o real, seja o metafórico, o deserto d´alma, requer atos de heroísmo e espírito de guerreiro, firme e decidido.

Convém repetir: Deus fala no deserto e cala fundo no coração de quem o busca com sinceridade.

A maior parte das pessoas não pode fazer como os antigos "padres do deserto" fizeram. Eles "fugiram" para as vastidões desérticas do norte da África ou do Oriente Médio, a fim de viverem com pureza e radicalidade o amor de Deus.

Isso, muito comum nos primeiros tempos da Cristandade, não é mais a realidade concreta dos dias correntes.

Mas os ensinamentos daqueles santos homens até hoje incentivam a busca do chamadodeserto pessoal, o momento de abençoada solidão e profundo desapego, em que o homem que crê olha para o Céu e ao mesmo tempo para o seu interior, conhecendo a si mesmo para, então, penetrar nos mistérios inefáveis de Deus.

Esta é a grande lição do deserto, a essência da voz que nele clama e num brado de súplica e de amor, grita por Deus.

No deserto, mais do que em qualquer outro lugar que o homem, combatente espiritual, derrama aquilo que os monges ortodoxos do médio oriente chamam de "lágrimas de Penthós", lágrimas que fundem, em sucessivas e torrenciais particulas d´água, amor, alegria, contrição, dor, penitência e sabedoria.

O choro perde razão e flui como um dom, um ato de amor, em que a plenitude é alcançada. Lágrimas que brotam do coração e apenas passam pelos olhos.

Lágrimas que regam o solo árido, mas sobrenaturalmente fértil, do deserto d´alma, do deserto de Deus.

Termino com um comentário extramamente interessante feito pela amiga  LUCIANA COSTA FIGUEIRA a respeito do "deserto": Nunca estive fisicamente no deserto. Creio que, em algumas situações, trazemos o deserto para perto de nós. Nos momentos de tristeza, de sofrimento, de dúvidas e até mesmo de alegria. Nesses momentos nos cercamos do silêncio e da calamaria do deserto para que possamos ter a paz e tranquilidade que precisamos para continuar a jornada. Ficamos assim, livres e desempedidos das intervenções que nos rodeiam para agirmos de acordo com nossa mente e nosso coração.. (...)


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