Por Ian Farias
“O
povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas
sombras da morte, uma luz resplandeceu” (Is 9,1).
Depois
do período proposto pela Igreja para a preparação do Natal, eis que hoje chegamos
ao grande dia! É nascido um menino para a humanidade! Um Deus que se faz homem,
um homem que é Deus. A leitura do profeta Isaías requer de nós um olhar
contemplativo voltando-nos à gruta de Belém, mas sem esquecer-nos dos dias tormentosos
do exílio babilônico o qual fora submetido o povo. As palavras proféticas mais
do que uma narração do passado da descendência judaica, tornaram-se para os
pastores uma concretização e para nós uma esperança. Transcorrendo o cativeiro
babilônico sob o poder de Ciro, a esperança do povo judeu tornava-se sempre
mais escassa e inconsistente. Ecoava o brado dos exilados que sofriam sob
pesados trabalhos, impostos e escravidão. Entretanto, o oráculo do profeta
anuncia uma centelha de esperança, uma esperança que não se fundamentava em
falsas concepções e em deuses vazios, mas na promessa do verdadeiro e
Altíssimo. Esta profecia não se restringe tão somente à libertação da
Babilônia, mas é também um preclaro sinal messiânico. Os versículos precedentes
ao capítulo 9 são um verdadeiro poema que inicia-se com a bonança e conclui-se
com os dias terríveis para os povos.
A
quem se dirigia esta profecia? Os exegetas dizem tratar-se da destruição do
reino da Samaria. O profeta ainda fala de um retorno dos deportados, que relacionava-se
não aos judeus que voltariam da Babilônia, mas aos israelitas exilados para
outro extremo da Assíria. Para nós, porém, estas palavras dirigem-se além de
limites históricos e contextos territoriais e sociais da época. Na sociedade
hodierna cada vez mais tende o homem a fazer desaparecer a luz da fé e a
esperança de um retorno ao Deus verdadeiro. Lançamo-nos no ideal de sermos
senhores de si e esquecemos o senhorio de Deus, que não manipula, não impõe,
não força a nossa ação, mas ao contrário: requer de nós apenas o testemunho
verdadeiro do discipulado. Como pude retratar em minha carta para o
encerramento do ano da fé: “Para
os que creem, o testemunho não é privilégio, mas exigência e necessidade de um
autêntico discipulado”.
Outrora andou em escuridão o povo
exilado, outrora estavam os pastores na escuridão, hoje o homem torna-se um ser
das trevas quando procura eliminar Deus da vida social e da própria vida
religiosa ao depositar a confiança em garantias tão inseguras e ao edificar sua
fé em bases tão insólitas e solitárias. O profeta afirma que sem Deus,
sem a
sua luz grandiosa e guiadora, o povo estava envolto apenas em sombras, pois residia
na escuridão. Algumas traduções dizem: “habitavam uma região tenebrosa”. A
tradução latina de tais palavras nos fala precisamente: “habitantibus in regione umbræ
mortis – habitavam na região das sombras da morte”. O
homem sem Deus fenece! Sua sabedoria torna-se vã e o seu esforço inútil. É, de
certo, um estado de morte se este já não mais vive, mas torna-se um suicida:
decreta a si o seu fim porque decreta a independência do seu Criador. O homem
tem necessidade de Deus, mas não uma necessidade que o torne dependente, que o
manipule, como o fazem as drogas, os jogos e outros vícios. A necessidade de
Deus, que é inerente ao homem, parte do principio de que sem Este a humanidade perde
o seu norte, caminha para o precipício e para o descerramento do vazio
existencial.
E
daqui faz o homem encontrar-se consigo nas palavras de Isaias para descrever o
cenário que entrou e tomou os horizontes do mundo em nossos dias. O ser humano
parece ter sido talhado em sua capacidade de perceber Deus, de senti-Lo; está
sempre a procurar subterfúgios para ab-rogar-se de prestar contas a Deus de
todo o bem feito e do amor exercido já nesta terra. Muitos de nós dizemos que não
temos tido tempo suficiente para Deus. Sempre nos consumimos em afazeres cotidianos.
E o que tributamos ao Senhor? Apenas aquilo que nos sobra, ou ainda, nada. Quem
não tem tempo para Deus, perde o seu tempo. O encontro do homem com Deus é o
encontro com a própria esperança, consigo e com sua existência. Só quem
redescobriu o sentido de estar em Deus, redescobriu, deveras, o sentido de
viver. Quem não confia seu tempo ao Senhor não é herdeiro da promessa à qual
fez aos antigos profetas. De fato, ainda hoje concretiza-se aquilo que está
escrito: “Todo calçado que se traz na batalha, e todo manto manchado de sangue
serão lançados ao fogo e se tornarão presa das chamas” (v4).
Sim,
ainda sentimos o peso do bastão do opressor e os calçados que marcham ruidosos.
Presenciamos as vestes manchadas de sangue, muitas vezes de inocentes que são aniquilados
ainda
em ventre materno, devido à perda do sentido verdadeiro da vida. Penso
ainda de modo particular na veste dos cristãos que são manchadas de sangue por
confessarem sua fé no verdadeiro Deus, sobretudo aqueles que habitam no Oriente
Médio. Confiantes na luz da esperança predita já pelo profeta, queremos pedir:
Senhor, compadecei-Vos de nossos pecados. Livrai-nos das vestes manchadas de
sangue e do bastão dos opressores. Vós que viestes na fragilidade de uma criança,
mostrai ao mundo que o verdadeiro poder não reside nos armamentos e nas
técnicas de destruição, mas na força propulsora do amor que renova e dá vida.
Que possamos ser homens da vida renovada e firmada na esperança do Reino
vindouro.
Guerreiro da Fé. |
Por
outro lado, pervade nosso interior o júbilo desta noite que ainda mais uma vez
ressoa em nossos ouvidos: “Não tenhais medo! Eu vos
anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo. Hoje, na cidade de
Davi, nasceu para vós um Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11). O
nascimento de Cristo é a concretização da esperança predita pelo profeta. Deus
está presente! Ele é verdadeiramente o Emmanuel
– Deus conosco. Ainda se ignorado e rejeitado pelos seus,
Cristo sinaliza para o verdadeiro caminho, onde já não mais prevalece o medo
que outrora aflorava na consciência do povo judeu. Ele renova todas as coisas,
como bem nos recorda o Apocalipse (cf. 21,6). Nasce para nós o renovador. Mas,
que tipo de renovador é Jesus? Seria um renovador social? Não, não é! Tampouco
um renovador político ou religioso. Jesus é sim o renovador do homem, do seu
coração e da sua vida; é “gerado do Pai antes de todos os
séculos, Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não criado, consubstancial ao Pai” (Credo
Nisceno-constantinopolitano).
Contraposta às palavras do profeta, o evangelista
narra a esperança e a coragem como próprias da eminente chegada do Salvador.
Não temer é próprio de quem crê, quem está firme em Deus e permite que Ele
adentre o seu coração e lá faça a sua morada. O Menino que chega não nos priva
da liberdade de dizemo-Lo “não”; não invade o nosso livre-arbítrio, mas é da
sua boca que emana as palavras: “Eis que estou à porta, e bato; se
alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele
cearei, e ele comigo” (Ap 3,20). Neste sentido é que a mesa eucarística
torna-se para nós sinal da unidade e do reencontro com Cristo: Ele ceia conosco,
entra livremente em nosso coração e nos concede um outro tempo além dos limites
cronológicos. Para os gregos três eram as instâncias de tempo: o Chronus que refere-se ao tempo cronológico; o Kairós, o tempo da graça em que algo
especial acontece; e o Aion, o tempo
sagrado e eterno, sem nenhuma mesura cronológica: aquilo que hoje diríamos ser
o tempo de Deus. O Menino-Deus permeia estes três aspectos e nós somos também
parte de tal. De Deus viemos, do Aion,
o tempo em que não há tempo; estamos inseridos no Chronus e fazemos já aqui a experiência do Kairós, momento surpreendente da graça de Deus em nossa vida.
Porém, ainda que constantes no Chronus,
o espírito cristão deve sempre voltar-se ao Aion,
ao definitivo encontro com Deus na consumação da salvação.
Neste período nos cercam as falsas
concepções de espírito natalino que o mundo nos oferece. O que de fato é o
natal? Não é esta falsa paz de espírito da mundaneidade; tampouco é este
período somente de confraternização familiar ou, até para muitos, um espírito
de tristeza. O Natal é bem mais que isto: é o reconhecimento da grandeza na
fragilidade, do poder naquela aparente fraqueza. O Senhor vem! Faz-se um de
nós, nos chama de modo singular: nisto consiste a grandeza do Natal. O divino
se humaniza para dar um novo olhar a nossa humanidade. Não queremos e não
podemos nos contentar com este falso espírito de confraternização que a mídia
propõe. O Natal só tem sentido com Cristo, se está firmado nos princípios
cristãos. Caso contrário, toda comemoração será vã. Por isso a festa da
natividade de Nosso Senhor nos faz reconhecer que em tudo há uma supremacia:
aquela do amor. Onde o amor não é conhecido, ou é rejeitado, também o próprio
Deus é aniquilado. Que outra explicação haveríamos de dar com mais profundidade
e realismo senão a de que Deus desce para se fazer amor?
A perspectiva do amor é algo fascinante
na teologia da vida. Nosso Senhor nos ensinou muito bem como o amor,
personificado Nele, se manifesta: doação, renúncia. Quem ama não se retém, mas
se doa, se abre ao outro para caminharem juntos ao coração de Deus. Amor é
"doa-ação" (ação-doada), doar-se, a si e suas ações, esvaziar-se do
individualismo e compartilhar-se com aquele a quem nós nos damos. Por isso a
renúncia que o amor carrega não nos traz perdas, mas completa-nos. Só quem tem
o coração todo disponível a Deus pode renunciar por amor e para o amor.
Peçamos ao Senhor que nos ilumine com a
sua luz nesta noite santa, para que se dissipem todos os sinais de trevas e
todos os tormentos. Que ressoe no mundo a boa notícia dita aos pastores e
anunciada a nós por meio de Deus pela boca dos seus ministros: “Hoje vos nasceu o Salvador, Cristo o
Senhor”.
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