Entrevista de Dom Fernando Arêas Rifan exclusiva para a Revista Eletrônica In
Guardia publicada em 06/06/2012.
In Guardia: Como é sempre bom começar do começo, o Sr. pode nos
dizer como foi a descoberta de sua vocação sacerdotal?
Dom Fernando: Por pura bondade de Deus, eu nasci numa família
católica. Meus avós eram muito piedosos, pessoas de oração. Meu pai era
congregado mariano, presidente da obra social da paróquia – dispensário do
Divino Espírito Santo – e minha mãe do Apostolado da Oração. Eu fui, desde
cedo, da cruzada eucarística, coroinha e cantor do coral na minha igreja
matriz. Nesse ambiente, surgiu a minha vocação, meu desejo de ser padre, como
eram os padres que eu conhecia. Isso estou falando do que acontecia comigo,
subjetivamente, porque na verdade não fui eu que escolhi ser padre, foi Nosso
Senhor que me chamou. Apesar de filho único, entrei para o seminário aos 12
anos de idade. E lá fiquei por 12 anos, até a minha ordenação sacerdotal, aos
24 anos de idade. Hoje tenho 37 anos de sacerdócio e 10 anos de episcopado.
In Guardia: Por que escolheu a então União Sacerdotal São João
Maria Vianney para exercer seu sacerdócio?
Dom Fernando: As coisas não eram assim naquele tempo. Era uma
paróquia, uma diocese e um seminário normais. Entrei para o seminário
diocesano, da Diocese de Campos, em 1963, e fui ordenado sacerdote pelo então
Bispo Diocesano de Campos, Dom Antônio de Castro Mayer, na Catedral Diocesana,
em 1974. Fui nomeado diretor diocesano do ensino religioso e pároco da Paróquia
de Nossa Senhora do Rosário, cargo que exerci por 10 anos, além de secretário
do Bispo. Tudo isso na Diocese de Campos. Não havia, naquela época, a União
Sacerdotal, que só foi criada em meados dos anos 80.
In Guardia: Sabemos que a Administração Apostólica São João Maria
Vianney tem um formato, digamos assim, diferente de Dioceses e Arquidioceses às
quais estamos acostumados. O Sr. pode nos explicar um pouco sobre como funciona
dentro do Direito Canônico?
Dom Fernando: A União Sacerdotal reunia os padres que foram tirados
das suas paróquias e igrejas pelo Bispo sucessor de Dom Antônio. Eles
continuaram atendendo o povo, em capelas particulares, numa situação
canonicamente anormal e mesmo irregular. Isso durou até o ano 2001, quando o
Beato Papa João Paulo II transformou a união sacerdotal em Administração
Apostólica, para regularizar aquela situação e conservar na plena comunhão da
Igreja esses sacerdotes (eram 25) e fiéis ligados às formas litúrgicas e
disciplinares anteriores do Rito Romano (Liturgia de São Pio V).
Canonicamente,
a Administração Apostólica é uma circunscrição eclesiástica equiparada a uma
Diocese (C.D.C. cânon 368), uma porção do povo de Deus, cujo cuidado pastoral é
confiado a um Administrador Apostólico, que a governa em nome do Sumo Pontífice
(cânon 371 §2). Ela se compõe, como as outras dioceses, de paróquias, párocos,
seminário próprio, cúria, religiosas, religiosos, catequistas e fiéis em geral.
A Administração
Apostólica Pessoal São João Maria Vianney foi criada pelo Decreto “Animarum
bonum”, da Sagrada Congregação para os Bispos, de 18 de janeiro de 2002,
oficializando juridicamente a vontade de Sua Santidade, o Papa João Paulo II,
expressa na carta autógrafa "Ecclesiae unitas", de 25 de dezembro de
2001. Eu sou o atual Bispo Administrador Apostólico, membro do Regional Leste 1
e da CNBB, de cujas reuniões participo normalmente.
Já faz 10 anos
da criação da nossa Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney,
evento que celebraremos durante todo esse ano de 2012, usando como lema a frase
do salmo 88: “Misericordias Domini in aeternum cantabo” – “Cantarei eternamente
as misericórdias do Senhor”, e como tema: “10 anos de graças: gratidão,
reflexão e missão”.
In Guardia: A Administração Apostólica tem hoje quantas paróquias,
clérigos, seminaristas e atinge quantos leigos efetivamente?
Dom Fernando: Hoje a Administração Apostólica tem 33 padres
incardinados, 13 paróquias, 3 Reitorias, umas 130 Igrejas e lugares de Missa,
35 seminaristas. Temos umas cem religiosas, 15 escolas e 2 asilos. Temos muitas
associações religiosas tradicionais e catequistas. Os fiéis são cerca de 30
mil. Mas a Administração Apostólica é aberta, para todos que desejarem nela
entrar, no território coincidente com a Diocese de Campos.
In Guardia: Como o Sr. vê a atual conjuntura das vocações
sacerdotais, tanto dentro como fora da Administração Apostólica?
Dom Fernando: O número dos nossos seminaristas sempre foi nessa
margem. Mas sentimos a falta de mais vocações, mesmo aqui na Administração
Apostólica. O baixo número de vocações em geral se deve à secularização da
sociedade, ao hedonismo reinante, à tibieza e falta de oração, à decadência das
famílias católicas, à falta de espírito de heroísmo e tendência individualista
entre os jovens. É claro que também a crise na Igreja influenciou e influencia
no baixo número de vocações.
In Guardia: Uma dúvida comum de muitos seminaristas e também
clérigos que nos acompanham é como funciona a formação dos seminaristas. Existe
alguma diferença fora do padrão de normalidade dos demais seminários? Quais as
matérias estudadas por eles e o que deles é exigido?
Dom Fernando: A formação dos nossos seminaristas é regulada pela
Congregação para a Educação Católica (para os Seminários e as Instituições de
Estudos), que aprovou nosso programa de estudos e regulamento. Aqui, portanto,
se estudam todas as matérias exigidas nos demais seminários e o regulamento é
semelhante: oração, retiros espirituais, conferências, vida de comunidade,
estudo, aulas, recreios, esporte, passeios, distrações etc. A diferença está na
disciplina mais tradicional e na Liturgia, porque, como toda a Administração,
conservamos a forma antiga do Rito Romano e o primado do canto gregoriano, ao
lado do polifônico. Temos uma equipe de bons padres formadores que se ocupa do
nosso Seminário.
In Guardia: Ainda sobre a Fraternidade Sacerdotal São Pio X temos
um Motu Proprio datado de 1988
chamado Ecclesia Dei que, embora
pequeno, tratou de forma bem direta as ordenações feitas por D. Lefebvre e a
não autorização por parte da Santa Sé. Pois bem, à época o Sr. já fazia parte
da então União Sacerdotal São João Maria Vianney. Como o Sr. e seus contemporâneos
viram, à época toda a situação? O Sr. pode nos contar um pouco dessa história?
Dom Fernando: Nós não éramos nem somos da Fraternidade Sacerdotal
São Pio X, mas sim padres diocesanos que com eles tínhamos em comum a Liturgia
na forma antiga e a formação tradicional. Foi um tempo de perseguição mais
forte à Missa na forma antiga e aos católicos que a conservavam. Na ocasião,
víamos as ordenações feitas por Dom Lefebvre como algo que seria necessário,
devido à crise, um caso de necessidade. Por isso as apoiamos.
Depois, estudamos
melhor os documentos do Magistério, especialmente a Encíclica Ad Apostolorum Principis, de Pio XII, o
Motu Proprio Ecclesia Dei Adflicta de
João Paulo II e especialmente a “Nota Explicativa” do Pontifício Conselho para
os Textos Legislativos, de 24 de agosto de 1996 (mas que só conhecemos no ano
2001), sobre a interpretação autêntica desse Motu Proprio Ecclesia Dei, onde, sobre o “estado de necessidade no qual Mons.
Lefebvre pensava se encontrar” se explica que “deve-se ter presente que tal
estado deve verificar-se objetivamente, e que não se dá jamais uma necessidade
de ordenar Bispos contra a vontade do Romano Pontífice, Cabeça do Colégio dos
Bispos. Isto de fato significaria a possibilidade de ‘servir’ a Igreja mediante
um atentado contra a sua unidade em matéria conexa com os próprios fundamentos
desta unidade”. Então chegamos à conclusão que não se poderia jamais ter tomado
aquela atitude, que realmente seria contra a doutrina e a Tradição da Igreja.
In
Guardia: Ainda sobre a FSSPX e o Motu Próprio Ecclesia Dei quanto menciona as ordenações
desautorizadas, nesse documento foi expressamente mencionado que (...) “tal ato foi
uma desobediência ao Romano Pontífice em matéria gravíssima”
(...) e ainda (...)”A raiz deste ato cismático pode localizar-se numa
incompleta e contraditória noção de Tradição.”
É assim que hoje a Administração Apostólica concebe aquela atitude?
Dom Fernando: Com já disse acima, tal conclusão se
impõe a quem tem como critério de verdade e orientação o Magistério da Igreja,
como temos e devemos ter.
A Nota Explicativa do Motu Proprio, citada
acima, falando dessas ordenações episcopais contra a vontade do Papa, procura
esclarecer: “Parece antes de tudo que o cisma de Mons. Lefebvre foi declarado
em relação imediata com as ordenações episcopais realizadas em 30 de junho de
1988 sem o mandato pontifício (cf. CIC, can. 1382). Todavia, aparece ainda
claramente pelos precedentes documentos que tal gravíssimo ato de desobediência
constituiu a consumação de uma progressiva situação global de índole
cismática”.
É pelo Magistério vivo da Igreja que se
pauta a nossa Administração Apostólica. Portanto, vemos aquela atitude do mesmo
modo que a vê o Magistério.
A
propósito, escrevi minha Orientação Pastoral – O Magistério vivo da Igreja,
onde explico bem a nossa posição. Se mudamos alguma atitude nossa, foi para nos
adequarmos às orientações do Magistério. Cito alguns trechos:
“Muitas vezes, na ânsia de defender coisas corretas e
sob pressão dos ataques dos opositores, mesmo com reta intenção podem-se
cometer erros e exageros que, após um período de maior reflexão, devem ser
retificados e corrigidos. São Pio X comentava
que no calor da batalha é difícil medir a precisão e o alcance dos golpes. Daí
acontecerem faltas ou excessos, compreensíveis, mas incorretos. Erros podem ser compreendidos e explicados,
mas não justificados. Santo Tomás de Aquino nos ensina: “Não se pode justificar
uma ação má, embora feita com boa intenção” (Decem praec. 6 (cf. C.I.C. 1759)”.
“Por essa razão, em carta ao Papa de 15/8/2001, os
sacerdotes da antiga União Sacerdotal São João Maria Vianney, agora constituída
pelo Papa em Administração Apostólica[1], escreveram:
"E se, por acaso, no calor da batalha em defesa da verdade católica,
cometemos algum erro ou causamos algum desgosto a Vossa Santidade, embora a
nossa intenção tenha sido sempre a de servir à Santa Igreja, humildemente suplicamos
o seu paternal perdão"”.
“É preciso sempre ajustar a
prática com os princípios que defendemos. Se reconhecemos as autoridades da
Igreja é preciso respeitá-las como tais, sem jamais, ao atacar os erros,
desprestigiá-las. Se houve algum erro ou exagero no passado quanto a isso, não
há nada de mais em se corrigir o erro. Os princípios, a adesão às verdades da
nossa Fé e a rejeição aos erros condenados pela Igreja continuam os mesmos. O
que é preciso é evitar as generalizações, ampliações e atribuições indevidas e
injustas. A justiça e a caridade, mesmo no combate, são imprescindíveis. Se
houve alguma falha também nesse ponto, corrigir-se não é nenhum desdouro.
Afinal, errar é humano, perdoar é divino, corrigir-se é cristão e perseverar no
erro é diabólico”.
Também ali explico a correta noção de Tradição, conforme o
Magistério da Igreja. E no meu livro “Considerações sobre as formas do Rito
Romano”, esclareci bem: “A Igreja ensina que a consciência subjetiva do fiel ou
do teólogo não é critério de verdade porque tal consciência subjetiva “não
constitui uma instância autônoma e exclusiva para julgar a validade de uma
doutrina... Opor ao Magistério da Igreja um magistério supremo de consciência é
admitir o princípio do livre-exame, incompatível com a economia da Revelação e
da sua transmissão na Igreja, assim como uma concepção correta da teologia e da
função do próprio teólogo. Os enunciados da Fé não resultam de uma investigação
puramente individual e de um livre exame da Palavra de Deus, mas constituem uma
herança eclesial. Se alguém se separa dos Pastores, que velam por manter viva a
tradição apostólica, é a ligação com Cristo que se encontra irreparavelmente
comprometida” (CDF, Instrução Donum
Veritatis).
É o Magistério que me faz conhecer o que pertence ou
não à Tradição apostólica: não sou eu que deve julgar o Magistério em função do
que posso compreender da Tradição. Se o Magistério não está acima da Tradição
nem da Sagrada Escritura, está acima de todas as nossas interpretações da
Tradição e da Sagrada Escritura. Isto é o que explicou claramente o Beato João
Paulo II ao então Cardeal Joseph Ratzinger: “... não é o antigo como tal nem o
novo em si mesmo o que corresponde ao conceito exato da Tradição na vida da
Igreja. Este conceito designa, com efeito, a fidelidade duradoura da Igreja à
verdade recebida de Deus através dos acontecimentos mutáveis da história. A
Igreja, como o pai de família do Evangelho, tira com sabedoria ‘de seu tesouro
o velho e o novo’ (cf. Mt 13,52), mantendo-se na obediência absoluta ao Espírito
da Verdade que Cristo entregou à sua Igreja como guia divino. Esta delicada
tarefa de discernimento a Igreja a cumpre por meio de seu Magistério autêntico
(cf. LG 25) (Carta In questo periodo ao Cardeal Ratzinger
(04-VIII-1988: AAS, 1988, pgs. 1121-1125).
In Guardia: Passando ao Motu
Proprio Summorum Pontificum o que o Sr. tem a nos dizer sobre a
disseminação do rito extraordinário em meio a Dioceses que antes sequer
imaginavam celebrar no rito antigo?
Dom Fernando: O Motu
Proprio Summorum Pontificum foi
grandemente aplaudido por nós e, graças a ele, pouco a pouco, muitas dioceses
têm adotado a Missa na forma antiga. Creio que o Motu Proprio serviu para dirimir muitos preconceitos. O Santo Padre
Bento XVI explicou que ele deseja a paz litúrgica na Igreja e que a Missa na
forma extraordinária poderá fazer muito bem à Liturgia em geral. Esperamos que
isso aconteça mais e mais. Aqui no Brasil, as coisas estão andando devagar,
pouco a pouco.
In Guardia: O que o Sr. diria para os párocos que desejam celebrar
no rito Tridentino, mas encontram alguma barreira de ordem pastoral? Como agir?
Dom Fernando: Os párocos, tendo formação tradicional, vão
compreender o que disse o Papa: que a Missa celebrada na forma antiga só poderá
fazer bem. É claro que é preciso ter correta orientação e adesão ao Magistério
da Igreja. E os párocos têm autorização dada diretamente pelo Santo Padre para
a celebrarem e permitirem sua celebração.
In Guardia: Presenciamos em várias Dioceses uma quantidade
razoavelmente grande de sacerdotes que gostariam de celebrar no rito
Tridentino, contudo o ensino do latim nos seminários não foi bem feito ou
simplesmente não aconteceu. Existe alguma forma mais fácil para esses
sacerdotes aprenderem o rito?
Dom Fernando: A nossa Administração Apostólica, em parceria com
outras dioceses, tem promovido pelo Brasil “Encontros Summorum Pontificum”, para incentivar e ensinar aos sacerdotes a
Missa na forma extraordinária. O primeiro encontro foi na Diocese de Garanhuns,
em 2010, o segundo na Arquidiocese do Rio de Janeiro, em 2011, e o terceiro
será na Arquidiocese de Salvador, Bahia, de 14 a 18 de setembro próximos,
com um dia aberto aos leigos. Estamos preparando também cursos práticos de
latim litúrgico. Para celebrar a Missa na forma extraordinária os sacerdotes
devem conhecer o latim, ao menos básico, e saber pronunciá-lo bem. Há muitos
missais bilíngues que poderão ajudar na tradução.
In Guardia: Passando às recentes notícias sobre as “negociações”
entre a Santa Sé e a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, o que o Sr. pode nos
dizer sobre as expectativas?
Dom Fernando: A expectativa é grande. Temos um grande desejo de que
eles regularizem sua situação canônica e resolvam logo esse problema da plena
comunhão com a Igreja. Pode ser muito difícil, dado a posição que eles tomaram
e que muitos deles mantêm, segundo seus escritos atuais. Mas, para Deus, nada é
impossível. Rezemos. E, se eles regularizarem sua situação com a Igreja e
afinarem sua doutrina com a do Magistério, serão muito bem-vindos e ficaremos
alegres com isso. Nós também recebemos a mesma graça.
Aliás,
quando o Santo Padre lhes levantou a excomunhão, para facilitar o caminho deles
à plena comunhão, eu escrevi aos quatro Bispos da Fraternidade:
“Eu e toda nossa Administração Apostólica Pessoal São João
Maria Vianney, seus sacerdotes e fiéis, os felicitamos e nos congratulamos de
todo o coração com V. Exas. pelo levantamento das excomunhões que vos atingiam
e agradecemos ao Santo Padre por este gesto de paternal misericórdia e
generosidade, que terá uma frutuosa repercussão em toda a Igreja. Como nós
também fomos objeto da mesma bondade do Santo Padre, que levantou a excomunhão
de Dom Licínio Rangel em novembro de 2001, o que nos conduziu à nossa completa
regularização em 18 de janeiro de 2002, nós estaremos sempre em oração para que
V. Exas. possam também chegar à completa regularização de toda a Fraternidade
São Pio X, como o desejou o Papa. Nós confiamos todo esse caso ao Imaculado
Coração da Santíssima Virgem, a quem V. Exas. com tanta confiança recorreram
para a sua solução”.
In Guardia: A FSSPX tem a teoria de que as discussões com a Santa
Sé têm como fim mostrar às autoridades eclesiásticas que a Fraternidade está plenamente
unida ao Magistério perene da Igreja Católica Apostólica Romana, à doutrina de
Nosso Senhor Jesus Cristo, ou como se diz, à Tradição da Igreja, ou seja, que
não haveria qualquer perigo de heresia, de ensino contrário à doutrina dos
Papas. Seria essa mesma a situação ou o Sr. vê de outra forma?
Dom Fernando: Se a Santa Sé aceitar isso, julgando assim, ótimo. Se
eles acertarem os ponteiros doutrinários e corrigirem, daqui em diante, muitas
afirmações e atitudes não perfeitamente consoantes com a doutrina católica, a
reconciliação será perfeita.
A Santa Sé disse que o problema deles é doutrinário.
Deles. Eles reconhecem que o problema é doutrinário, mas dizem que não é deles,
mas da Santa Sé, da Igreja (!). Rezemos para que eles afinem sua doutrina com o
Magistério vivo da Igreja. Afinal, é dogma de Fé,
definido pelo Concílio Ecumênico Vaticano I, que “esta Sé de São
Pedro permanece imune de todo erro, segundo a promessa de Nosso Divino Salvador
feita ao Príncipe de Seus Apóstolos: ‘Eu roguei por ti, para que tua Fé não
desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos’ (Lc 22,32)” (Const, Dog. “Pastor
Aeternus”, sobre a Igreja de Cristo, D-S 3070 e 3071). Esse mesmo Concílio Ecumênico Vaticano I define que “este
carisma da verdade e da fé, que nunca falta, foi conferido a Pedro e a seus
sucessores nesta cátedra...” (Const, Dog. “Pastor Aeternus”, sobre a Igreja
de Cristo, D-S 3070 e 3071). Como disse São Pio X: “O primeiro e maior critério
da fé, a regra suprema e inquebrantável da ortodoxia é a obediência ao
magistério sempre vivo e infalível da Igreja, estabelecido por Cristo columna et firmamentum veritatis, a
coluna e o sustento da verdade.” (Alocução Cum
vera soddisfazione, de 10/5/1909). Arvorar-se em juiz ou critério de
verdade no lugar do Magistério ou em juiz do Magistério seria pretensão
descabida.
In Guardia: Por diversas vezes vemos membros da FSSPX e mesmo
pessoas não ligadas a ela, mas que tem uma identidade de mais forte ligação com
ela, afirmarem que o Rito Novo favorece o surgimento de heresias e isso pode
levar a crer que, por esse motivo, não é legítimo. Como o Sr. vê tais
afirmações?
Dom Fernando: Esta opinião sobre a ilegitimidade do Rito Novo não
está de acordo com a doutrina católica e, por isso mesmo, não é aprovada pelo
Papa Bento XVI, cuja posição é bem outra.
Com efeito, o
Santo Padre, o Papa Bento XVI, em
sua Carta aos Bispos que acompanha o Motu Proprio Summorum Pontificum, afirma expressamente, como sendo
algo óbvio e lógico: “Obviamente, para viver a plena comunhão, também os
sacerdotes das Comunidades que aderem ao uso antigo, não podem, em linha de
princípio, excluir a celebração segundo os novos livros. De fato, não seria
coerente com o reconhecimento do valor e da santidade do rito a exclusão total do mesmo”. Está
claro, portanto, nas palavras do Santo Padre, que se deve reconhecer o valor e
a santidade da nova liturgia, e, em consequência, não excluí-la
totalmente.
Na minha
Orientação Pastoral – O Magistério vivo da Igreja, e no meu livro
“Considerações sobre as formas do Rito Romano”, explico bem:
“Levados pelo legítimo desejo de
conservar a riqueza litúrgica do rito tradicional e chocados, com razão, em sua
fé e piedade com os abusos, sacrilégios e profanações a que deu azo a reforma
litúrgica, os católicos da linha tradicional, não querendo ver a “liturgia
transformada em show” (Card. Ratzinger) nem querendo compartilhar com erros e
profanações que viam, apegaram-se legitimamente às formas tradicionais da
liturgia. Por isso, merecem toda a nossa compreensão, nossos louvores e nosso
apoio todos os que lutam pela preservação da Liturgia na sua forma
tradicional”.
“Assim também, em nossa Administração Apostólica, por
faculdade a nós concedida pela Santa Sé, conservamos o rito da Missa na sua
forma tradicional, isto é, a antiga forma do Rito Romano, como o fazem
igualmente muitas congregações religiosas, grupos e milhares de fiéis em todo o
mundo. Nós a amamos, preferimos e conservamos por ser, para nós, melhor
expressão litúrgica dos dogmas eucarísticos e sólido alimento espiritual, pela sua riqueza, beleza, elevação, nobreza e
solenidade das cerimônias, pelo seu senso de sacralidade e reverência,
pelo seu sentido de mistério, por sua
maior precisão e rigor nas rubricas, apresentando assim mais segurança e proteção contra abusos, não dando
espaço a “ambigüidades, liberdades, criatividades, adaptações, reduções e
instrumentalizações”, como lamenta o Papa João Paulo II (Enc. Ecclesia de
Eucharistia). E a Santa Sé reconhece essa nossa adesão como perfeitamente
legítima. Assim, por ser uma das
riquezas litúrgicas católicas, exprimimos através da Missa na sua forma
tradicional o nosso amor pela Santa Igreja e nossa comunhão com ela”.
“Mas jamais se pode usar a adesão
à Liturgia tradicional em espírito de contestação à autoridade da Igreja ou de
rompimento de comunhão. Há que se conservar a adesão à tradição litúrgica sem
pecar contra a sã doutrina do Magistério e sem jamais ofender a comunhão
eclesial. Ensina o Papa João Paulo II: ‘A
diversidade litúrgica pode ser fonte de enriquecimento, mas pode também
provocar tensões, incompreensões recíprocas e até mesmo cismas. Neste campo, é
claro que a diversidade não deve prejudicar a unidade. Esta unidade não pode
exprimir-se senão na fidelidade à fé comum ... e à comunhão hierárquica’ (Carta
apostólica Vigesimus quintus annus)”.
“Os limites, impostos pela teologia católica às reservas e
críticas, nos impedem, por exemplo, de dizer que o Novus Ordo Missae, a Missa
promulgada pelo Santo Padre Paulo VI, seja heterodoxa ou não católica. A sua
promulgação (feita pelo Papa Paulo VI e reeditada duas vezes por João Paulo II
e confirmada pelo Papa Bento XVI) (forma, no sentido filosófico) é a garantia
contra qualquer irregularidade doutrinal que pudesse ter havido na sua
confecção (matéria), embora ela possa ser melhorada na sua expressão litúrgica.
E é a sua promulgação oficial, e não o modo de sua confecção, que a torna um
documento do Magistério da Igreja”.
“Quem, na teoria ou na prática, considerasse a
Nova Missa, em si mesma, como inválida, sacrílega, heterodoxa ou não católica,
pecaminosa e, portanto, ilegítima, deveria tirar as lógicas consequências
teológicas dessa posição e aplica-la ao Papa e a todo o Episcopado residente no
mundo, isto é, a toda a Igreja docente: ou seja, sustentar que a Igreja
oficialmente tenha promulgado, conserve há décadas e ofereça todos os dias a
Deus um culto ilegítimo e pecaminoso – proposição reprovada pelo Magistério
(cf. notas 70 e 71) - e que, portanto, as portas do Inferno tenham prevalecido
contra ela, o que seria uma heresia. Ou então estaria adotando o princípio
sectário de que só ele e os que pensam como ele são a Igreja e que fora deles
não há salvação, o que seria outra heresia. Ademais isso não vem significar
absolutamente que estejamos aprovando abusos e profanações que ocorrem até com
certa frequência em Missas celebradas no novo rito. Estamos falando do rito em
latim tal qual foi promulgado pelo Santo Padre Paulo VI e aprovado pelos seus
sucessores”.
In Guardia: Alguns entendem que a melhor forma de “legalização” da
situação da FSSPX seria a criação de uma Prelazia Pessoal. Esse seria o melhor
caminho?
Dom Fernando: Após a afinação doutrinária, creio que essa seria a
melhor solução, como foi o nosso caso, a criação da Administração Apostólica
Pessoal. Mas isso depende muito das implicações canônicas e da convivência com
os Bispos nas suas respectivas dioceses. Creio que a Santa Sé está examinando
esta possibilidade.
In Guardia: O Sr. sempre tentou deixar bem claro em seus textos a
diferença entre o sagrado e o profano no ambiente propício para a celebração da
Santa Missa. O que o Sr, pode indicar como profano no Rito de Paulo VI, não
dentro dos abusos reconhecidamente cometidos, mas em relação ao rito como
consta nas rubricas? Existe esse ponto que podemos chamar “profano”?
Dom Fernando: Não posso dizer que haja algo de profano num rito
aprovado oficialmente pela Igreja, como é o caso da forma ordinária do Rito
Romano. E se houvesse algo profano, foi sacralizado pela aprovação da Igreja.
Mas, como já
explicamos, isso não quer dizer que o rito seja o melhor possível e que não
possa ser melhorado. Eu creio que o rito ordinário, por não ser tão preciso e
exigente nas rubricas como é o rito na forma extraordinária, pode dar azo a
muitos abusos, devido ao ambiente atual e à falta de formação teológica e litúrgica
de muitos.
Por exemplo, a
fórmula do rito atual: “com essas ou com
palavras semelhantes” (his vel similibus
verbis), foi escrita para pessoas de boa formação e de bom senso. Mas, para
os que não os têm, pode ser ocasião de introduzir muitas coisas profanas, como
nas saudações de início e fim da Santa Missa. Como comentou o então Cardeal
Ratzinger: “No novo Missal, encontramos muito frequentemente fórmulas como: sacerdos dicit sic vel simili modo (o
sacerdote diz assim ou de modo semelhante)... ou então: hic sacerdos potest dicere (aqui o sacerdote pode dizer)... Esta
fórmula do Missal oficializa de fato a criatividade; o padre se sente quase
obrigado a mudar um pouco as palavras, de mostrar que ele é criativo, que ele
torna presente à sua comunidade esta liturgia; e com esta falsa liberdade que
transforma a liturgia em catequese para esta comunidade, destrói-se a unidade
litúrgica e a eclesialidade da liturgia” (Card. Ratzinger, Autour de la question liturgique, 24 juillet 2001, Fontgombault).
Outro exemplo:
a possibilidade de se introduzir instrumentos considerados profanos, tais como
guitarras e baterias. Antigamente, e o seguimos na forma extraordinária, não se
podia tocar na Igreja quaisquer instrumentos de percussão, cujo som e timbre
criam um ambiente profano. Aliás, até hoje, é recomendado o uso do órgão, como
o instrumento mais próprio para a Igreja, o que infelizmente não é observado em
muitos lugares.
[1]
“Neste tempo forte do vosso ministério episcopal, que é a visita ad limina,
é para mim uma grande alegria acolher a vós que tendes o encargo pastoral da
Igreja na Região Leste 1 do Brasil, da qual fazem parte as dioceses do estado
do Rio de Janeiro e a ‘União São João Maria Vianney’, que eu quis constituir em
Campos como Administração Apostólica Pessoal” – Discurso do S. Padre o Papa
João Paulo II aos bispos do Regional Leste 1, na visita ad limina, 5 de
setembro de 2002.
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