segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Divagando sobre o sofrimento. Primeira parte.

É muito comum nos flagrarmos em pensamentos como: se Deus é onipotente então pode tudo, se pode tudo poderia acabar com o sofrimento do mundo. Certo?

Esse argumento por demais simplório arrebata multidões de semi-analfabetos religiosos que sequer ousam parar por cinco minutos para pensar na besteira que estão falando. Infelizmente é assim.

Carta Apostólica Salvifici Doloris do nosso Beato então Papa João Paulo II, começa da seguinte maneira:

1. « Completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja ». (Col 1, 24)

Por ora é bom deixar essa história de Corpo de Cristo ser a Igreja um pouquinho de lado. Aos poucos chegamos lá.

A questão toda é: se Deus é amor, e disso ninguém discorda por ser preceito bíblico, então não quer sofrimentos. A medida que o sofrimento existe, mas Deus é amor e não quer o sofrimento e é onipotente podendo inclusive acabar com esse sofrimento, então Deus não seria nem onipotente, porque não pode acabar com o sofrimento ou, por outro lado, não seria amor porque não quer acabar com o sofrimento. Isso provaria que ou Deus é perverso ou não existe e o mundo caminha de forma aleatória na história.

O argumento, a princípio causa alívio nos ateus e ojeriza nos cristãos, contudo ambos costumam não saber do que estão concordando ou discordando, apenas o fazem por absoluto orgulho de vencer uma tênue discussão.

Em princípio é importante entender que a onipotência de Deus não significa que Ele pode tudo inclusive o ilógico, o incoerente. Deus não pode fazer de um círculo um quadrado porque isso é contra toda a lógica. Um círculo é sempre um círculo e essa é uma verdade que nem a matemática nem os historiadores de cunho esquerdista podem mudar. Podem mudar, sim, o conceito de círculo para, assim, tentarem mudar a essência. Normalmente é esse o caminho usado. A falácia é a ordem do dia.

Mas voltando, Deus não pode fazer o incoerente porque é perfeito e perfeição não admite incoerência. Incoerente somos nós que somos imperfeitos. A incoerência é inerente à imperfeição. Faz parte dela. Deus criou regras para que não só o Universo material fosse regido, mas tudo quanto há de material e espiritual. Essas regras são universais na falta de uma palavra que seja mais abrangente.

Pergunta-se o seguinte: se Deus criou regras para tudo, qual seria a coerência dessas regras se Ele mesmo ou alguns seres ou coisas estivesses fora dessas regras? Deus criou as regras que Ele mesmo obedece, por livre vontade, mas obedece. Nós não escolhemos, mas Ele poderia ter escolhido não seguir tais regras. Poderia? Não, não poderia, porque é coerente, é perfeito. Essa perfeição o obriga a seguir as regras que fez para tudo e para todos. Isso explica, por exemplo, o livre-arbítrio.

O livre-arbítrio que existe e negá-lo seria desfazer todo o argumento cristológico, seria absolutamente ilógico se alguém fosse forçado ao não-sofrimento. Deus estaria incorrendo em um erro crasso ao impor à humanidade o não-sofrimento porque iria contra outra lei criada por Ele mesmo: o livre-arbítrio. Deus não pode incorrer em erro porque é perfeito. Deus segue, por isso todas as regras que Ele mesmo criou, ao contrário de nosso Congresso Nacional.

Por todos esses argumento chegamos ao seguinte: se seguirmos o raciocínio de que Deus pode tudo, inclusive o ilógico, estaríamos dizendo três coisas: 

- primeiro que Deus não é perfeito porque iria querer o ilógico, portanto o incoerente; 

- segundo que Deus pode ir contra as regras que ele mesmo criou;

- terceiro que Deus e o sofrimento podem coexistir já que um Deus-amor pode ser ilógico e querer o sofrimento, uma vez que atacou o segundo ponto que seria a sua própria lei do livre-arbítrio.

Vamos resolver a questão, portanto.

Deus é totalmente amor, não é 90% amor, é 100% amor. Isso é algo que só podemos imaginar em teoria, nunca em prática já que só Deus é amor, 100% amor. Pois bem, Se é totalmente amor então não pode permitir o sofrimento porque o sofrimento é mau. Esse argumento é falacioso, como já mencionamos acima, justamente porque partiu do pressuposto de que o sofrimento é mau, o que não necessariamente é verdade. Muitas vezes deixamos que algo de "mau" aconteça (um sofrimento) para que algo de bom se sobressaia. O sofrimento, portanto, necessariamente, não é mau.

Acontece que, por um sofrimento imediato nos fechamos ao argumento de que algo de bom pode vir daquilo. É como uma criança que é castigada. Para ela aquilo é algo intrinsecamente mau, embora nem saiba o significado de intrinsecamente. O problema é que a criança apenas vai pensar no momento e não na situação como um todo. Já o adulto não, ele pensa na situação como um todo e no futuro crescimento daquela criança com aquele castigo. A criança não tem capacidade intelectual, muito menos emocional de entender isso.

Por outro lado, o ser humano, adulto ou não, também não tem condições plenas e ilimitadas, espiritualmente falando, de entender o que aquele castigo (sofrimento), o que aquele mal momentâneo, pode lhe trazer de bom. Não consegue sequer imaginar que algo de bom pode advir daquele mal absurdo que ele presencia naquele momento histórico. Não entende que Deus está fora da história. Que Deus criou o tempo e não se sujeita a ele. Que Deus vê tudo de fora e sabe exatamente o que acontecerá se modificar essa ou aquela peça no tabuleiro. No xadrez precisamos muitas vezes sacrificar cavalos, rainha, bispos, torres e peões para que o rei sobressaia e vença a partida. Deus vê de fora, é o jogador, nós somos a partida que fica infeliz por perder algumas peças, mas não percebemos que a perda dessas peças gerará a vitória final.



E por fim, para sustentar o argumento de que o sofrimento é mau e que Deus não quer o mau pois é bom e por isso não existe, precisaria sustentar o argumento e que um universo livre do sofrimento necessariamente seria melhor que um mundo com o sofrimento. Algum de vocês conhece um mundo sem sofrimento para nos servir de parâmetro? Não? Então não podemos provar que necessariamente um mundo sem sofrimento seria melhor pelo simples fato de que não podemos comparar.

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