Por Carlos
Ramalhete
Em 1919 meu avô fez
vestibular, com exames orais e escritos. Dentre outras, havia prova oral de
latim. Em 2001, um analfabeto passou em nono lugar no vestibular. No princípio
do século passado, havia faculdades de Filosofia, Direito, Medicina e Engenharia.
Ano passado, vi cartazes anunciando uma faculdade de “visagismo e estética
capilar” (sim, senhoras e senhores, faculdade de cabeleireiro!).
Alguma coisa está
errada. Não adianta tentar tapar o sol com uma peneira: algo está muito errado.
Perdeu-se, na verdade, o sentido da expressão “ensino superior”. O ensino
superior, como o nome indica, deveria ser de nível mais elevado. Em termos de
ensino, um nível mais elevado significa algo mais árduo, mais complexo, mais
aprofundado. Peço perdão aos cabeleireiros, visagistas e esteticistas
capilares, mas dificilmente se poderia argumentar que “escova japonesa” é
matéria para curso superior.
Por mais que doa ao
igualitarismo feroz que hoje domina a sociedade, é necessário reconhecer que o
ensino superior deve forçosamente ser restrito para que continue sendo
superior. Não falo de restrições financeiras, mas de uma restrição natural: a
intelectual. Há quem tenha capacidade intelectual para estudos superiores, e há
quem não a tenha. Pessoas péssimas podem tê-la, e pessoas maravilhosas podem
não a ter; não há nisso nenhum mérito próprio.
Quando, contudo, um
contra-senso tão absoluto quanto “universidade para todos” se torna projeto de
governo, vale temer que o próximo projeto seja engravidar todos os homens ou
fazer salada de todas as plantas. É tão possível ter-se uma universidade que
realmente seja um local de ensino superior e ao mesmo tempo tenha “todos” como
alunos quanto prometer a gravidez ou a palatabilidade universais.
Há pessoas que têm
fortíssimos talentos naturais, sem que tenham a capacidade intelectual ou o
interesse necessários para passar por um verdadeiro ensino superior. Conheço
vendedores que ficariam ricos com uma loja de cortadores de grama no deserto do
Saara, mas penaram enormemente enquanto confinados aos bancos escolares e
simplesmente não têm interesse algum pela leitura. Eu, por outro lado, iria à
falência vendendo cerveja gelada e água mineral no mesmo deserto, mas preciso
me conter para não gastar todo o meu parco salário em livros. Isso não me faz
melhor nem pior que o bom vendedor; seria contudo impossível ignorar que somos
diferentes.
Para que uma sociedade seja saudável, é preciso que haja pessoas diferentes |
Para que uma
sociedade seja saudável, é necessário que haja pessoas diferentes: bons
vendedores, bons carpinteiros, bons pedreiros, bons agricultores e bons estudiosos.
Uma política educacional sensata não pode nem querer fazer universitários de
todos nem, como se tentou fazer no Camboja, transformar toda a população em
agricultores. O que se pode obter com este tipo de política é simplesmente o
fim do ensino superior ou da agricultura. No Camboja houve fome generalizada;
no Brasil temos a mais triste indigência intelectual.
Como parte do mesmo
projeto de massificação da faculdade, foram para escanteio os cursos técnicos,
da escola normal aos cursos de metalurgia, química e outras disciplinas, que
levaram ao crescimento do país na segunda metade do século passado. Hoje não
vale mais a pena fazer um curso técnico: às disciplinas especificamente
técnicas tornou-se obrigatório somar todas as disciplinas do Ensino Médio,
fazendo com que os cursos técnicos demorem um tempo enorme, valendo mais a pena
– justamente! – fazer um curso dito superior.
O resultado é que
pessoas talentosas, que seriam excelentes técnicos, artesãos, pedreiros,
professoras do ensino fundamental ou vendedores, são mantidos afastados do
mercado de trabalho por anos, ocupando vagas do ensino superior. Ao mesmo
tempo, as disciplinas do ensino superior são empobrecidas e niveladas por
baixo, para que a imensa multidão de pessoas que não deveriam estar lá tenha
capacidade de entendê-las. As faculdades de Direito formam hoje técnicos em
legislação positiva, que sabem direitinho qual é o artigo do Código que se
aplica a tal situação sem que sejam capazes de dizer o que é o Direito, de
dissertar sobre o conceito de justiça ou, sequer, de passar na prova da OAB. Ao
mesmo tempo, o diploma do IME, do ITA ou de outras instituições que ainda se
podem dizer de ensino superior não é mais nem menos “diploma universitário” que
o obtido pelo graduado em moda, dança, “visagismo e estética capilar” ou
reforma de móveis.
Se quiserem que eu
engravide, ao menos já sou barrigudinho. Só tenho medo da salada de
comigo-ninguém-pode.
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