Por Ian
Farias
Solenidade do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo
Nesta noite, marcada
pela esperança novamente cintilante, o Senhor desce ao nosso encontro, se faz
um de nós e, assumindo esta condição, abre à humanidade as portas da salvação e
da vida nova. A antífona da Missa nesta noite santa inicia-se com as palavras
do salmista: “Dominus dixit ad me: Filius
meus es tu, ego hodie genui
te – O Senhor me disse: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei” (Sl 2, 7). Essa
frase, que primariamente pertencia ao rito da coroação do rei de Israel que em
seu chamamento era introduzido como “filho de Deus”, hoje é usada pela Igreja
no reconhecimento da filiação divina de Cristo e da sua eterna geração no Pai.
O salmo 2º é uma
leitura prefigurativa daquele menino frágil e indefeso que hoje desce à terra,
repleto de majestade e poder, tendo como único sinal a humildade e o canto dos
anjos, que ouvimos no Evangelho. Aquele que é gerado por Deus desde toda a
eternidade aceita também ser gerado no ventre de Maria, submetendo-se à
condição da temporalidade e da morte. Ele é verdadeiramente Deus conosco! Ainda
hoje o Filho – professado no Credo como consubstancial
ao Pai – continua a ser gerado em Deus. Hoje também Deus vem ao nosso encontro,
fala ao nosso coração e quer ser acolhido por cada um de nós.
Santo Irineu de Lyon
escrevera de forma significativamente profunda: “O esplendor de Deus dá a vida.
Consequentemente, os que veem a Deus recebem a vida. Por isso, aquele que é
inacessível, incompreensível e invisível, torna-se compreensível e acessível
para os homens, a fim de dar a vida aos que o alcançam e veem. Assim como viver
sem a vida é impossível, sem a participação de Deus não há vida... Ao mesmo
tempo [o Verbo], mostrou também, por diversos modos, que Deus é visível aos
homens, para não acontecer que, privado totalmente de Deus, o homem chegasse a
perder a própria existência. Pois a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do
homem é a visão de Deus” (Lib. 4,20,5-7:Sch 100, 640-642.644-648).
Com o seu nascimento
Jesus nos permite participar de Deus. Nós recebemos a verdadeira vida! Se em
primeiro plano o pecado parecia ter vencido o homem decaído, em última
instância há sempre a graça de Deus e aquele sinônimo que devemos atribuir-lhe:
“amor”.
Onde há reconhecimento
da glória de Deus, há de igual forma vida e esperança. Onde não se dá glória a
Deus se dá glória às ideologias subjetivas e contrárias ao verdadeiro sentido
da fé e da vida. Onde Ele não é adorado, mas antes, é desprezado e negado,
prevalecem os obstáculos entre o divino e o humano: Ele não pode falar e
tampouco ser escutado.
Irineu reafirma que
Deus se compraz e é glorificado no “homem vivo”. Que coisa podemos entender
destas palavras? Que sentido possui a vida nesta noite em que o seu Autor
assume nossa condição? Poderíamos responder a estas perguntas com a mesma afirmação
paulina escutada na segunda leitura: O homem vivo é aquele que abandona a impiedade
e as paixões mundanas e vive neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade (cf.
Tt 2,12). Quanta injustiça e
impiedade imperam no mundo onde Deus deveria reinar! Quantos homens velhos que
não se abriram ao Menino que vem, permanecendo, assim, na dramática situação
narrada pelo Profeta Isaías: “Botas de tropa de assalto, trajes manchados de sangue...”
(Is 9,4). A marca do exílio israelita na Assíria ultrapassa os limites
históricos e assume uma dimensão espiritual e sempre atual. Ainda hoje podemos
acompanhar a catastrófica situação dos prófugos e refugiados, de modo
particular os cristãos do Oriente Médio, forçados a deixarem sua pátria pela
realidade que se lhes sobreveio, ou, muitas vezes, rejeitados em outros lugares.
Mas a profecia de Isaías estende-se com uma consoladora promessa: “... tudo
será queimado e devorado pelas chamas”. Como não rezarmos nesta hora: Sim,
Senhor, sabemos que onde não existem homens vivos não haverá vida digna. Fazei
brilhar a vossa luz sobre aqueles que praticam a impiedade e a injustiça. Queimai
os calçados ruidosos e os trajes manchados de sangue, sobretudo os daqueles que
negam o direito à vida aos indefesos: que ainda não nasceram ou os que já estão
acometidos pela fragilidade da idade avançada. Sejais Vós a verdadeira vida numa
sociedade que se ampara na lógica da força e do poder e nega-se a abraçar a
humildade e ser portadora da “grande alegria” comunicada pelos anjos aos
pastores.
Voltemos
ainda à afirmação de Irineu: “A vida do homem é a visão de Deus”. A leitura do
profeta Isaías nos faz relato de um caos primígeno, já transcrito no início do
livro dos Gênesis, quando ainda nada tivera sido criado. O caos é uma não-vida,
portanto, uma realidade tenebrosa, obscura. Com este pressuposto, a frase de
Irineu que atribui a visão de Deus, isto é, a sua ação, à vida do homem, entrelaça-se
com a primeira leitura e podem ser postas lado a lado. O pecado quebra a
harmonia da criação e restabelece a realidade primitiva: quando a mão de Deus
nada tivera criado havia somente o caos, o prenúncio da morte. Desta forma,
somente se permanece alimentado pela esperança e pela certeza da ação de Deus,
o homem pode passar da morte à vida, pode ser visão de Deus e pode ser glória
para Deus.
No fim, podemos pensar que o próprio Filho de Deus entra na
História humana de forma visível, subjuga-se ao tempo (Chronos) e às condições físicas do homem. Poderíamos perguntar-nos:
Como receberíamos Jesus hoje? O que faríamos se Maria e José batessem hoje à nossa
porta? Quando Deus quis entrar no tempo dos homens, os homens quiseram sair do
seu tempo (Chronos) e do tempo da
Graça (Kairós). Criaram, por
conseguinte, subterfúgios e, como Adão, esconderam Dele o seu rosto. É certo
que a glória de Deus em sua totalidade só poderá ser contemplada quando
estivermos purificados de todas as nossas faltas e participarmos do convívio
dos eleitos. Mas Deus nos permite, pelo nascimento de Seu Filho, contemplarmos
de antemão a prefiguração do Seu poder e da sua glória.
O
Evangelho nos relata o cenário que Maria e José encontraram na fria noite em
Belém. Mais do que hospedarias fechadas para um pobre casal, os corações
encontravam-se cerrados no comodismo e no egocentrismo. Quem está fechado em si
não se dá conta de que Deus mesmo está a bater à sua porta e que pede espaço e
abrigo. Bateu outrora nas hospedarias em Belém e não encontrou lugar. Bate
também hoje e não encontra espaço porque estamos atarefados com coisas pretensamente
“importantes”. O tempo para Deus parece tornar-se cada vez mais escasso e
disputado com o ativismo das tarefas diárias. A ausência de lugar para o Menino
foi aprofundada e aludida na sua essência pelo evangelista João ao escrever: “Veio
para o que era Seu, e os Seus não O acolheram” (Jo 1, 11).
Peçamos
que o Senhor nos conceda um coração aberto a acolhê-Lo. Peçamos que o nome de
Deus seja solevado e a salvação entre em nossos lares por meio d’Aquele que
hoje pede o nosso amor, a nossa atenção e os nossos cuidados. Faze que reine a Paz
como promessa do Teu Reino ao reconhecermos que sem Vós toda paz é utópica e
toda ideologia é falha. Que a Tua Luz nos conduza à Belém para também nós adorarmos
o mistério que ali se fez alcançar. Amém!
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