Por Ian Farias.
Reverendíssimo Pe. Othon Carlos, Pároco desta Paróquia de Santo Antônio, Estimados irmãos e irmãs,
Reverendíssimo Pe. Othon Carlos, Pároco desta Paróquia de Santo Antônio, Estimados irmãos e irmãs,
Vê-se reunida hoje esta Igreja paroquial para louvar o
Excelso Senhor que por bem tão grande nos tem dado como abrigo não o teto da
Igreja pedra, mas o teto do universo, isto é, o céu, que segundo nos narra a
Escritura, é o local da morada de Deus. E daqui convém que hoje vos profira esta
predica para que não ressoe somente aos corações dos católicos, mas de todos os
homens e mulheres desta estimada comunidade, de forma que todos sintam-se
abraçados e tocados pelo amor de Deus manifestado até o seu extremo ato no
sacrifício da cruz, e todos abracem e toquem a Deus, Autor da vida e da
misericórdia.
Nosso Senhor Jesus
Cristo, depois de cravado na Santa Cruz para sofrer a Paixão a fim de nos
salvar, proferiu sete palavras que ficaram consignadas no coração da Igreja.
Essas Palavras de Cristo na Cruz, objeto de meditação dos Santos Padres e
Doutores, compõem um tesouro singular que o Senhor nos deixou no momento em que
consumava o Mistério de nossa Redenção e do qual hoje desejo meditar convosco.
Grande e feliz coincidência que me conceda a providência divina pregar
este sermão no dia em que celebra os seus 87 anos de vida o Santo Padre o Papa
emérito Bento XVI, o qual muito me ajudou em preparo desta meditação com suas
exímias obras. Por ele rezemos uma Ave Maria neste momento.
"Pater,
dimitte illis, non enim sciunt quid faciunt – Pai, perdoa-lhes, pois não sabem
o que fazem" (Lc 23,24).
Sendo Cristo crucificado estas são as
primeiras palavras postas à sua boca pelo evangelista São Lucas. Podemos
imaginar o grande tormento e a grande dor que sentira, já dilacerado pelas
dores físicas, sentia-Lhe aprisionar uma dor maior: a da ingratidão, do
desprezo, do escárnio. Ainda assim não hesita em clamar o perdão dos que Dele
zombavam e cravavam atrozmente os pregos em suas mãos e pés. Oh, dor cruel e
virulentos golpes que por nós sofrera o Senhor!
Aquele que sem mácula entra no mundo é maculado pela dor e pelo sangue,
causa sobretudo da Redenção que somente o próprio Deus poderia oferecer em seu
próprio favor para a remissão dos pecados.
Clama pelo “Pai”. Ainda na cruz – e por que
não: sobretudo na cruz! – clama pelo “Abba”.
Mais atado à cruz estava o Senhor pelo amor e
pela misericórdia que pelos pregos. Sendo Filho de Deus não poderia Ele, de
fato, descer da Cruz e manifestar a plenitude do seu poder àqueles que dele
zombavam naquela hora que aparentava ser o término? “Se
és Filho de Deus, desce da cruz” (Mt
27,40). No Monte das Oliveiras Jesus deixa claro a Pedro que era aquela hora
necessária para cumprir-se o objetivo da sua vinda e o querer de Deus, que não
é um detrator de Si, um masoquista, mas é o portador da salvação, da esperança
e da vida renovada à humanidade perdida em seu pecado. Afirmou Jesus a Simão: “Pensas tu que eu não
poderia apelar para o meu Pai, para que ele pusesse à minha disposição, agora
mesmo, mais de doze legiões de anjos? E como se cumpririam então as Escrituras,
segundo as quais isso deve acontecer?” (Mt 26, 53-54). Não o faz porque sabe
que passando pela morte a glória manifestar-se-á ao mundo como uma
potencialidade do querer divino em vista da fragilidade do homem.
Esta primeira palavra, proferida quase que simultânea a crucifixão, concretiza
o que outrora Jesus dissera no Sermão da Montanha: “Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos
odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem” (Mt 5,44). De fato, não sente ódio; não clama
por vingança; não amaldiçoa. Implora o perdão para os que o prendem ao madeiro
do suplício e motiva este perdão: “Não sabem o que fazem”. Quantas pessoas
ainda hoje não “sabem o que fazem” quando violentam a fé do povo com leis ou
ideologias que virulentamente são apresentadas ou impostas? Quantos não “sabem
o que fazem” quando racionalizam a fé de tal forma que a expõem ao senso do
ridículo? Quantos não sabem o que fazem ao criarem intrigas na comunidade e
afrontarem a autoridade presbiteral ou episcopal, colocando-se como uma ovelha
desgarrada e desregrada do redil do Senhor?
A ignorância, de fato, salva. Mas não queiramos permanecer ignorantes,
pois há uma gritante divergência entre aquele que é ignorante por falta de
acessibilidade de meios que o ajudem, e aqueles que querem permanecer ignorantes.
Em sua trilogia Jesus de Nazaré, o
Santo Padre Bento XVI, escreveu: “A ignorância reduz a culpa, deixa aberta a
estrada para a conversão. Mas não se trata simplesmente de uma desculpa, porque
ao mesmo tempo revela uma insensibilidade do coração, uma insensibilidade que
resiste ao apelo da verdade” (p.190).
Porém, é relevante que também façamo-nos uma pergunta que apela à nossa
consciência cristã e social e convida-nos a uma purificação dos pensamentos:
Aceito-me incondicionalmente como sou e me respeito? Aqui vale-nos dizer que
este respeito não tange somente ao viés moral, ético, como também ao respeito
consigo, seu corpo. Pessoas que se usam de meios indevidos para embelezar o
corpo ou praticam atos inaceitáveis como o aborto, o sexo desregrado e uma vida
de vaidades corporais. Estes não fazem do seu corpo um templo onde Deus habita,
mas destroem-no e afugentam Deus de suas vidas. A estes endereçadas estão
palavras de São Paulo: “Se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá”
(1Cor 3,17). Portanto façamos desta
hora o preciso momento para o perdão e para a sensibilidade, reconhecendo que
quem não perdoa a si também não poderá perdoar os outros e quem não se aceita,
tampouco aceitará os demais.
Rezemos: Senhor Jesus Cristo, Vós que perdoastes os vossos algozes,
clamastes a misericórdia de Deus e regenerastes a humanidade com vosso perdão,
concede-nos a graça de também nós perdoarmos aqueles que nos atacam e almejam
por ver a nossa destruição. Concede-nos não apenas palavras, mas sobretudo amor,
esperança e compaixão para acolhermos aqueles que se empenham a nos denegrir, e
concede-me, de igual forma, que não denigra os demais, vivendo a autenticidade
de filhos vossos.
"Amen dico tibi: Hodie mecum eris in paradiso – Em verdade te
digo: hoje estarás comigo no Paraíso" (Lc
23, 43).
A segunda palavra de Jesus manifesta-se
como consolo àquele bandido crucificado, mas também a cada um de nós, de forma
particular, dirigem-se estas palavras. Dois ladrões foram crucificados
juntamente com Jesus, segundo narram-nos os evangelistas. A respeito destes
dois Mateus e Marcos usam a mesma terminologia que João usara para designar
Barrabás: lestes (bandido). Esse termo, contudo, não designa que fossem
larápios, surripiadores de objetos alheios, mas foram desta forma qualificados
pela resistência contra o poder romano, sendo crucificados com Jesus por serem
culpados deste mesmo crime, e sendo classificados como bandidos.
Mas, diferente dos outros dois que
possivelmente teriam participado da insurreição com Barrabás, o gênero de
delito de Jesus é diverso. Pilatos bem sabia que nada tinha Jesus em mente
desse gênero, e assim no letreiro da cruz ele encontra motivação para o crime
do qual culpá-Lo: “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” (Jo 19, 19). Ali desvenda-se
tudo aquilo que em vida Jesus evitara definir-Se, como o título de rei o qual
associa-o de imediato a Sua Paixão.
Há na narração uma discordância entre
os evangelistas sobre quantos dos bandidos zombavam Jesus: se um, como nos
narra São Lucas (23, 39), ou se dois, como narra São Marcos (15,32). Entretanto
creiamos que um apenas dele zombasse, para que no quadro das sete palavras
também esta segunda assuma sua posição fundamental e indispensável. Se na
primeira palavra nos chamara atenção o caráter da misericórdia de Deus, agora
vemos mais uma vez manifesta esta misericórdia para com o ladrão arrependido,
já na iminência da sua morte, com uma palavra de cunho escatológico: Paraíso.
Esvaindo as forças lentamente Jesus entra em suas últimas horas. Entre Cristo e aquele homem
transcorre um tênue diálogo, reduzido a duas frases essenciais: “Jesus,
lembra-te de mim quando entrares em teu Reino” – “Hoje mesmo estarás comigo no
Paraíso”.
Chama o ladrão não pelos títulos do Senhor: Mestre, Rabi, Cristo,
Nazareno... Mas o chama pelo nome “Jesus”, isto traduzindo significa: “Deus salva”, um nome próprio para aquela
hora, e um nome que designa toda a missão de Jesus no decorrer de sua vida. Por
outro lado a palavra Paraíso constitui-se
de forma enigmática: O que é este?
Poderíamos defini-lo como um jardim florido e fértil, no qual é
caracterizada uma imagem acalentadora do Reino dado àqueles que nesta vida
lutaram, cansaram-se e agora são convidados ao abraço paterno de Deus.
“Aquele que antes da culpa nos proibiu
de pecar, uma vez que a cometemos, não cessa de nos esperar para conceder-nos o
perdão. Vede que nos chama precisamente Aquele que nós desprezamos.
Afastamo-nos d’Ele, mas Ele não se afasta de nós” (São Gregório Magno, Homilia
34 sobre os Evangelhos).
São Gregório Magno. |
Estas palavras de São Gregório Magno,
Papa e Doutor da Igreja, assumem um caráter de definição diante desta frase de
Jesus e assinala aquilo que não cessa de ocorrer em nossos dias, marcados
sobretudo pela falta de amor, de misericórdia e de um olhar benevolente sobre o
próximo. Jesus não nos despreza pela nossa fraqueza, olha-nos com amor,
chama-nos pelo nome, invade nossa alma e nos revigora com uma marca indelével
de que somos chamados a sermos portadores do perdão como Ele fora, a amarmos
como Ele amou, a testemunharmos como Ele testemunhou.
A frase de Gregório também é uma alusão
direta ao livro dos Gênesis, que em seu início narra a constituição do mundo, a
criação dos seres e a criação do homem. Deus adverte o ser criado à sua imagem
e semelhança para que não o desobedeça nem sinta-se tentado a comer da árvore
que lhes produziria a morte, em troca da inteligência e do pecado. Preço alto a
ser pago à negligência dos primeiros pais no Sacrifício redentor de Cristo. A
desobediência fere a vida do homem em Deus e com Deus, e não se constitui como
via de seguimento para os que desejam entrar no Paraíso, que não é um espaço físico, mas a contemplação perene da
face de Deus.
“Hoje estarás comigo no Paraíso”.
Consoladora afirmação! Não diz o Senhor que seria amanhã ou mais tarde, mas
“hoje”. O homem que confia na ação salvadora de Deus experimenta da sua graça,
contempla a sua eterna visão e é chamado a adentrar no paraíso dos justos e dos
eleitos.
E agora, rezemos: “Jesus, lembrai-Vos de mim, quando, vendo as
minhas infidelidades, me sinto tentado ao desespero.
Jesus,
lembrai-Vos de mim, quando, depois de repetidos esforços, me vejo ainda no
fundo do vale.
Jesus,
lembrai-Vos de mim, quando todos se tiverem cansado de mim e mais ninguém me
der confiança, vendo-me sozinho e abandonado” (Card. Joseph Zen Ze-Kiun,
Meditação da Via Sacra 2008).
"Mulier, ecce filius tuus; ecce
mater tua – Mulher, eis aí teu filho; eis
aí a tua mãe." (João 19,26-27).
A terceira palavra é marcada pela docilidade de Jesus para com a sua
mãe, que permanecia em pé, junto à cruz, ao lado de João, o discípulo amado. Contempla,
do alto da Cruz, os que o acompanharam até o suplício e lhe foram fiéis. Como
Maria, nesta hora, queremos também nós ficar juntos a cruz. Queremos usufruir
da graça de Cristo que se estende a toda a humanidade; queremos tomá-la por mãe
e leva-la à nossa casa.
Mas meditar as palavras de Jesus é meditar a realidade transcendental
que elas trazem consigo. Toda palavra dirige-se não somente aos ouvidos, mas
sobretudo ao coração. O ouvido é um dos meios pelo qual a palavra entra,
verbaliza-se na boca, mas vem pelo ouvido.
Estas palavras de Jesus tratam-se de uma última vontade sua. Ele é único
filho de sua Mãe, que, depois de sua morte, ficaria sozinha no mundo, aquém de
alguém que por ela velasse. Pensado nisto é que o Filho, ali, pendente, quase
às últimas horas, confia-a ao discípulo amado, que o evangelho não denomina
quem é, mas apenas fala do discípulo amado, que acreditamos ser certamente
João. A tradução literal do texto é ainda mais forte; poderíamos dizer de uma
acolhida ao próprio íntimo, ao “eu” do discípulo, ao seu contexto de vida.
“Mulher”, esta é a expressão que Jesus se utiliza para dirigir-se a
Maria. Sabemo-lo que não é a única vez que Ele se refere com tal adjetivo a
Ela, mas em todo o Evangelho Jesus não escusa em dizê-lo. E aqui deveríamos
fazer uma ressalva do importante papel de Maria e da expressão que Jesus usava
para com ela. Não a chamava “Mulher” pejorativamente, mas a elevava, a
destacava entre as demais mulheres como a Nova
Eva, pela qual Ele iniciaria aquilo que no livro do Apocalipse é predito:
“Eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,6).
A renovação dada no mistério salvífico de Cristo é iniciada em Maria,
que responde com um sim ao chamado de
Deus. Por isso Ela é, como todos os seres humanos, chamada a ser partícipe do
novo céu e da nova terra (cf. Ap 21,1) que são iniciados com a restauração de
Cristo de todas as coisas, ou, ainda mais, Ele mesmo é a novidade do Pai,
Aquele que oferece vida plena e sacia o eternamente o homem, já não dando-o um
pão material, mas sendo Ele próprio o Pão da Vida.
Mas voltemos à análise desta nossa quarta palavra. Jesus apresenta Maria
ao discípulo amado, agora de uma forma íntima, com espírito de filiação. Ela no-La
dá por mãe. Eis aí a nossa Mãe! Eis aquela a quem poderemos recorrer em nossas
necessidades! Segui-la é deixar-se guiar pelo próprio Cristo, que, em sua
ausência, confia-nos a sua misericórdia e maternidade. Não ao poder, pois este
dá-lo a Pedro, mas o amor e a misericórdia, que são instintos da feminilidade e
que em Maria são próprios da sua natureza.
Depois, porém, dirige-se ao discípulo: Eis a tua mãe! Temos tomado Maria por Mãe ou a renegamos? Ela tem
se tornado para nós aquela que aponta o caminho para o Cristo ou não a vemos de
tal forma? A aceitação de Maria, no entanto, não deve ser bandeira de
catolicidade, e quem o faz reduz a Virgem a um simples apoio para suas
convicções religiosas. Ela é mais que isto! Ela é a Mãe do Verbo Encarnado,
pela qual o Unigênito inicia a renovação da humanidade, a primeira a contemplar
a concretização do novo céu e da nova terra.
Rezemos: Senhor Jesus Cristo, que no suplício da Cruz quisestes dar-nos
a Vossa Mãe como nossa Mãe, concede que a humanidade contemple na figura de
Maria o início dos novos céus e da nova terra, para que possamos ser também nós
partícipes deste Reino salvífico. Vós, Maria, que vistes cumprir-se as
proféticas palavras de Simeão, sentindo transpassar a espada de dor, olhai
pelas mães que sentem a dor da perda de seus filhos, dos marginalizados, dos
esquecidos, dos incompreendidos.
Jesus e Maria, dou-Vos o meu coração e a alma minha. Jesus e Maria,
assisti-me na última agonia. Jesus e Maria, expire em paz entre Vós a alma
minha.
“Sitio – Tenho sede” (Jo 19,28)
Não nos é de admirar que o resultado de todo o desgaste físico de Jesus
resuma-se nestas palavras. Quando era crucificado, como era costumeiro
fazer-se, ofereceram-no uma bebida anestesiante para atenuar-Lhe o sofrimento.
Jesus recusa esta bebida. Aquele que oferecera a água viva à samaritana, junto
ao poço de Jacó, agora pede ser saciado. O Senhor tem sede! O corpo esvaído
pelo cansaço, pela dor, perdeu, consequentemente, muito líquido, muito sangue,
e por isso clama por um pouco de água. Deram-lhe, no entanto, uma esponja
embebida de vinagre e fel, para anestesiar a dor. Jesus prova, mas não bebe.
Quanto sofrimento e dor, Senhor, Vos causaram! Quantas pessoas vos
viraram a face, quando mais precisáveis. Vós, porém, permanecestes impassível,
com rosto firme, com o espírito decidido. Tens sede de água, mas ainda mais,
tens sede de almas que sedentas possam buscar-Vos e confiem-se plenamente à Vossa
Misericórdia.
Fazendo menção da sede que Jesus tem de respeito, de reconhecimento, de
centralidade na vida do homem, e das constantes “quedas” que esta sede causa
para a vivência sadia e coerente do Evangelho, recordo as palavras do então
Cardeal Ratzinger, que disse:
“Mas não deveríamos pensar também em tudo quanto Cristo tem sofrido na
sua própria Igreja? Quantas vezes se abusa do Santíssimo Sacramento da sua presença,
frequentemente como está vazio e ruim o coração onde Ele entra! Tantas vezes
celebramos apenas nós próprios, sem nos darmos conta sequer d’Ele!
Quantas vezes se contorce e abusa da sua Palavra! Quão pouca fé existe em
tantas teorias, quantas palavras vazias!... A traição dos discípulos, a recepção indigna
do seu Corpo e do seu Sangue é certamente o maior sofrimento do Redentor, o que
Lhe trespassa o coração. Nada mais podemos fazer que dirigir-Lhe, do
mais fundo da alma, este grito: Kyrie,
eleison (Senhor, tende piedade de nós) – Senhor, salvai-nos (cf. Mt
8, 25)” (Via Sacra 2005).
Que a nossa sede de buscar a Deus seja aquela já prefigurada no salmo:
“A minh’alma anseia por Deus e deseja o Deus vivo” (Sl 42). O homem sem Deus é sedento de completude, sente-se só,
perdido. O grande entrave dos ateus com a religião e com o reconhecimento da
existência de Deus é a soberba da não aceitação de que alguém lhes é superior. Deus
não é uma conclusão mítica de pressupostos religiosos, não é uma ideologização
da fé ou alguém que o homem tenha criado para justificar as suas carências.
Definitivamente pensa-Lo assim é reduzir a tal ponto o pensamento divino que
entrelaça-se com os deuses míticos e outras formas que o mesmo homem toma para
saciar as suas aparentes necessidades.
Sentimos ainda pertinentes as palavras do Salmo 69: “Deram-me vinagre a
beber” (v. 22), ou ainda as palavras do canto servo sofredor: “Esperava que ela
produzisse uvas boas, mas só produziu uvas azedas” (Is 5,2). O povo de Israel,
que deveria produzir boa colheita, só oferece a Deus vinagre. Mas também nós
devemos indagar-nos: Quantas vezes oferecemos uvas azedas a Deus, quando deveríamos
oferecer-lhe boas uvas? Quantas vezes a Igreja ofereceu e oferece vinagre a
Deus ao invés de uvas?
Rezemos: Senhor, fonte de água viva, verdadeira água que sacia os que
têm sede de verdade, fortalece os que peregrinam neste mundo sedentos de Ti e
da Tua palavra. Livrai-nos da moda que destrói, do pensamento que julga, da
palavra que difama. Vós que Sois o Onipotente e o mistério incompreensível
manifestai o Vosso amor e tornai-nos aptos a sermos discípulos da verdade,
bebendo no manancial de água que não seca jamais.
"Elói,
Elói, lama sabachthani? – Deus, meu Deus, por
que me abandonaste?” (Mc 15,34)
Esta frase ganha um destaca no conjunto, por ter
sido a única registrada tanto por Marcos como por Mateus, e por ter sido
transmitida a nós em outra linguagem: o aramaico. Mas qual o sentido desta frase
mistagógica? Jesus teria se sentido abandonado por Deus ou seria um grito
delirante emanado em meio à dor?
Nenhuma das duas possibilidades parecem-me verdadeiras ou de possível
cogitação. Sim, também Jesus sentiu as dores atrozes dos pregos, a sede, as
lacerações, mas este estado físico não lhe foi condicional também no estado
psíquico, uma vez que permaneceu firme, resistiu, e não perdeu seu estado de sã
consciência, de uma transparente sensibilidade.
Alguns afirmam – e possivelmente seja o mais certo a se atestar – que
Jesus estava rezando a Deus o conhecido salmo 21: “Meu Deus, meu Deu, por que
me abandonastes? E permaneceis longe de meu grito e minha prece” (v.1). A prece
de Jesus é elevada hoje ao Pai, seu sacrifício, seu amor.
O grito de Jesus não é um grito isolado; une-se, contudo, às milhares de
vozes que, ainda hoje, clamam pela presença de Deus, por sua ação salvífica e
consoladora e por uma resposta aos tormentos ainda constantes no decorrer dos
séculos. Pendendo na cruz Jesus não repudia a Sua condição divina e humana, ou
mesmo o Seu Pai, mas grita seu nome: “Meu Deus”. Chama-O com um pronome
possessivo. Mas por que o chama “Meu” e não “nosso”, como ensinara a rezar no Pai nosso? Porque no Pai nosso rezamos nós, filhos, por todos
e com todos para Deus; na cruz reza somente Jesus ao Pai, um clamor Daquele que
finda suas horas na terra.
Em sua carta Encíclica Deus
Caritas est, no primeiro ano do seu pontificado, o Santo Padre Bento XVI
dir-nos-á sobre este grito de Cristo: “Muitas
vezes não nos é concedido saber o motivo pelo qual Deus retém o seu braço, em
vez de intervir. Aliás Ele não nos impede sequer de gritar, como Jesus na cruz:
« Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mt 27, 46). Num diálogo orante, havemos
de lançar-Lhe em rosto esta pergunta: «Até quando esperarás, Senhor, Tu que és
santo e verdadeiro? » (Ap 6,
10)... O nosso protesto não quer desafiar a Deus, nem insinuar n'Ele a presença
de erro, fraqueza ou indiferença. Para o crente, não é possível pensar que Ele
seja impotente, ou então que « esteja a dormir » (cf. 1 Re 18, 27). Antes, a verdade é que até
mesmo o nosso clamor constitui, como na boca de Jesus na cruz, o modo extremo e
mais profundo de afirmar a nossa fé no seu poder soberano. Na realidade, os
cristãos continuam a crer, não obstante todas as incompreensões e confusões do
mundo circunstante, «na bondade de Deus e no seu amor pelos homens» (Tt 3, 4). Apesar de estarem imersos
como os outros homens na complexidade dramática das vicissitudes da história,
eles permanecem inabaláveis na certeza de que Deus é Pai e nos ama, ainda que o
seu silêncio seja incompreensível para nós.” (nº 38).
Não o compreendemos Senhor, mas o amamos, confiamos na Vossa bondade e
no vosso desígnio, nos curvamos à Vossa sabedoria e amamos o Vosso querer a
ponto de tomá-lo como nosso. Gritemos
também nós! Com confiança, não com dúvida.
Na tribulação do mundo somos chamados à certeza
vitoriosa: o grito de Cristo não tira a nossa convicção de que a vitória do ser
humano não ergue-se sobre o poder, o bem estar, o sucesso, o prazer, mas na
sincera esperança de que ainda que nada disso tenhamos, o essencial sempre
teremos: a fé, a esperança e a caridade. Esta mesma esperança que “manifesta-se praticamente nas virtudes da paciência,
que não esmorece no bem nem sequer diante de um aparente insucesso, e da
humildade, que aceita o mistério de Deus e confia n'Ele mesmo na escuridão. A
fé mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por nós e assim gera em nós a
certeza vitoriosa de que isto é mesmo verdade: Deus é amor! Deste modo, ela
transforma a nossa impaciência e as nossas dúvidas em esperança segura de que
Deus tem o mundo nas suas mãos e que, não obstante todas as trevas, Ele vence,
como revela de forma esplendorosa o Apocalipse,
no final, com as suas imagens impressionantes” (Deus Caritas est, 39).
Rezemos: Jesus, verdadeiro Homem e
verdadeiro Deus, nascido de Maria, pendente no patíbulo da Cruz, olhai para a
nossa fraqueza, compadecei-Vos das nossas dúvidas, dos nossos momentos de
fraqueza e da nossa falta de confiança. Somos fracos e pobres, Senhor, e a
nossa natureza parece às vezes incontrolável diante da nossa fé. Cremos em Vós,
somos servos da Vossa Misericórdia.
“Consummatum est – Está consumado” (Jo 19, 30).
A penúltima palavra
de Jesus resume-se na adesão filial ao projeto salvífico do Pai. Ele é o
Sacrifício eterno que, uma vez oferecido na cruz, perpetua a presença de Deus
na sua Igreja. Tudo está terminado! Tudo foi feito como quis o Pai! Cristo
sofre o isolamento, a dor da ingratidão, mas consola-se no querer de Deus e na
aceitação filial do cumprimento do mistério da paixão e da glória.
Ainda em meio à dor
Jesus não faz a sua vontade, mas contenta-se unicamente em cumprir o querer de
Deus. Quantos são, Senhor, os que hoje não fazem a tua vontade, mas seguem os
próprios ideais e realizam os seus caprichos? Quantos os que fogem à sua
vontade e depois lamentam-se das escolhas por vezes erradas? Dá-nos sábias
escolhas para nossas decisões; conforma-nos à vontade de Deus, ao Seu desígnio.
Porém, aqui ainda
cabe-nos uma ulterior meditação, não restrita somente à palavra de Jesus mas
atual também a nós. Como podemos cumprir bem a vontade de Deus. Não basta
cumpri-la, mas bem cumpri-la. Muitas pessoas compreendem erroneamente a vontade
de Deus, e mais ainda, não só compreendem, como também agem de modo equivocado
com relação a ela. Senhor são tantas as vezes que o culpamos quando as coisas
não procedem conforme nosso querer, esquecendo-nos que elas deve encaminhar-se
como Tu queres.
Santo Agostinho
definiu a vontade como liberdade, isto é, a faculdade pela qual somos louváveis
no bom agir e reprováveis no mal agir. Essas escolhas, para o Santo, é fruto da
liberdade do homem e nos torna responsáveis pelas nossas decisões e ações.
Nisto procede a dimensão moral do homem. Porém, a escolha consciente de uma
atitude de reprovação constitui o pecado, e, portanto, não é uma decisão de
Deus, senão uma responsabilidade unicamente nossa.
Assim,
não podemos e não devemos atribuir a Deus as consequências das nossas atitudes
irresponsáveis e imprudentes. Deus nos ama, por isso nos oferece o Seu desígnio
como fonte de vida e salvação. Quando nos opomos ao querer de Deus manifestado
em sua Igreja, opomo-nos consequentemente ao próprio Deus. Este querer não se
dá em outro lugar senão em nossa vida. Esta não se forma como lugar da
violência e da depredação. A vida não é para a imoralidade, parafraseando São
Paulo (cf. 1Cor 6,13). Defendê-la é
premissa cristã para ingressar como membro do Corpo Místico de Cristo, é
prerrogativa para a vida plena prometida por Jesus e esta só se dá, de fato, quando
cumprimos humildemente o querer de Deus.
O
cristão que não se porta decentemente diante do mundo, será indecentemente
tratado diante do poder das trevas.
Rezemos com Santo
Afonso Maria de Ligório:
“Desculpe, Jesus, os meus impuros olhares. Os
outros não podem ver em mim Vossa luz e Vossa imagem.
Desculpe, Jesus, o meu corpo desejoso de prazeres.
Ninguém consegue descobrir em mim um pouco de Vós.
Desculpe, Jesus, o meu coração cheio de ódio e
egoísmo. Ninguém consegue descobrir nele o Vosso amor”.
"Pater, in manus tuas commendo spiritum meum – Pai, em
tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc 23,46).
Chegamos
assim a última palavra de Jesus. Enfim não mais tendo forças entrega ao Pai o
espírito. As três horas de agonia são tão compridas, parecem sem fim. Mas elas
chegam e findam as horas terrenas de Jesus. Há uma dinamicidade teológica na
morte de Jesus, mas há apenas uma chegada à conclusão de pensamentos: sem a
morte de Cristo o homem não seria redimido, a humanidade seria destruída pelo
seu pecado e Satanás reinaria no coração da humanidade.
“Ó admirável poder da Cruz! Ó inefável glória
da Paixão! Nela se encontra o tribunal do Senhor, o julgamento do mundo, o
poder do Crucificado!” (São Leão Magno,
Papa e Doutor da Igreja). Nesta Cruz Cristo julga o mundo, salvo o homem e
aqueles que não quiserem ser salvos, agindo como autênticos filhos de Deus, serão
nelas repreendidos e condenados, ouvindo aquelas palavras duras que o Justo
Juiz proferirá: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado
para o diabo e seus anjos” (Mt 25,41).
Maldito o homem que
não põe a sua confiança no Senhor, mas nos prazeres e nos objetos supérfluos
que sucumbiram no dia temerário do Juízo divino. Atentai fiéis desta estimada
Paróquia! Atentai ao que diz o Senhor! Atentai-vos para a morte do Filho de
Deus! Não depositemos a nossa fé nas pessoas, no mundo, nas coisas. Lembremos
que o salmista é enfático ao afirmar: “Só em Deus a minha alma tem repouso, só
ele é meu rochedo e salvação” (Sl
61).
Jesus neste último
instante clama ao Pai, o Pai o
acolhe. Fazer a experiência de Deus é lançar-se em suas mãos, mesmo que não a
vejamos; é entregar-Lhe o espírito. Mais uma vez faço alusão ás palavras do
Papa Bento XVI que dizia que esta experiência pode ser vislumbrada como um
salto no escuro, no desconhecido. Não obstante as orações, o amor e todo o
arcabouço teológico e espiritual, Deus sempre parecer-nos-á alguém desconhecido,
mas jamais indiferente! Ele nos conhece bem, conhece as nossas necessidades e
nos convida a sermos partícipes do Reino vindouro. Procuremos sempre torná-Lo
presente em nossa vida. Que Ele seja o nosso guia e não nos deixe perder-nos
nas sombras da morte.
Rezemos: Jesus,
morto na Cruz, como Ti queremos confiar nosso espírito a Deus. Queremos ser
fiéis testemunhas, coerentes testemunhas, que doam a vida incansavelmente para
que um dia possamos participar do eterno convívio. Não nos deixes desviar-nos
nas insidiosas estradas. Queremos ser vossos, todos vossos, inteiramente
vossos. Pela vossa morte libertai-nos das prisões da alma, que dilaceram a
nossa fé e engessam o nosso testemunho. Amém!
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