Por Paulo Henrique Cremoneze
William Shakespeare, o famoso bardo inglês,
retratou a virtude da fortaleza, a coragem heróica em muitos dos seus escritos,
principalmente nas peças rotuladas como “dramas históricos”. Uma delas é
especialmente emblemática em tal aspecto e reproduz de forma romanceada um dos
mais bonitos e fortes capítulos da história inglesa, HENIQUE V.
Particularmente, devo muito ao drama histórico
Henrique V, pois atravessava um momento de aridez espiritual e a peça, tanto
quanto os livros religiosos, inspirou-me a retomar a caminhada fiel, sob o
manto da Igreja, rumo à Jerusalém celeste que espero um dia habitar.
Henrique V foi um dos últimos reis católicos da
Inglaterra (convém lembrar que Henrique VIII, o vil, rompeu com Roma e a Igreja
Católica e fundou sua própria igreja, a anglicana, perseguindo a matando
católicos, sacerdotes, religiosos e fiéis leigos, bem como protestantes, tanto
que estes, os protestantes, especialmente os puritanos, foram para as trezes
colônias na América do Norte e ajudaram a fundar os Estados Unidos da América).
Na sua peça majestosa, o famoso trovador inglês –
misturando elementos de fé, exaltações heróicas, princípios cavalheirescos –,
narra os fatos históricos com singular brilhantismo, servindo o texto, em seu
todo, para encantar e motivar as pessoas em suas batalhas diárias. Uma das
passagens mais bonitas é a que trata da famosa e verídica Batalha de Azincourt,
solo francês, com destaque ao discurso do bravo rei Henrique V, cujas palavras
motivaram seus soldados e mudaram os fatos daquele dia, transformando uma
iminente derrota numa vitória consagradora.
A Batalha de Azincourt é uma das mais importantes e
impressionantes batalhas da história. Imortalizada por William Shakespeare num
dos seus mais famosos dramas históricos, Henrique V, ela traduz sentimentos
virtuosos como coragem e determinação. O discurso feito pelo Rei inglês Henrique
V é eloqüente e inspirador. Por meio deste emocionante discurso, ele fortaleceu
os ânimos dos seus guerreiros, nobres e comuns, agigantando-os diante de um
adversário mais numeroso e descansado.
Vamos imaginar a cena: as primeiras horas da manhã
de um dia frio, chuvoso, espessa névoa baila sobre o campo. O pequeno exército
do Rei Henrique V em território inimigo, após meses de aguerrida campanha
militar, conquistando cidades e espaços, mas a elevado custo. Um exército de
homens-farrapos, sujos, exaustos pelas batalhas e marchas contínuas, famintos,
feridos pela saudade de casa e pelas baixas dos amigos de campanha, um exército
vitorioso até aquele momento, mas alquebrado em seu orgulho. Este exército
vê-se, da noite para o dia, em campo aberto, a planície de Azincourt, diante de
adversário cinco vezes mais numeroso, descansado, em sua própria terra natal,
alimentado e bem armado. Olhar para o exército inimigo era o mesmo que olhar
para o espectro da morte!
Qualquer um temeria diante de derrota atroz que se
mostrava iminente. Qualquer outro rei poderia se acovardar e se deixar tentar
pela rendição. Não Henrique V. Ele confiava na justeza de sua causa. Havia
deixado rufar os tambores da guerra em seu coração porque sabia que estava
amparado pelo melhor Direito e que o emprego da força era, então, a única forma
de materializar a justiça.
Sua vida e a vida de seus compatriotas não seriam
dadas em vão. A honra da Inglaterra estava em jogo e a própria dignidade do
povo inglês, encarnada na figura corajosa e destemida do seu líder maior. E se
a causa de Henrique V era uma causa justa, decerto Deus estaria ao lado dos
ingleses, protegendo-os na batalha heróica, assim acreditava piamente o grande
rei (que, aliás, se encontrou com São Bernardo de Claraval anos depois,
recuando na tentação de ordenar Bispos em atenção ao grande santo).
Pouco antes do embate com o exército francês,
Henrique V ouviu um dos seus oficiais lamentar a ausência de combatentes do
lado inglês, praguejando os “dez mil desses homens da Inglaterra que hoje nada
estão fazendo!”.
Em resposta, Henrique V profere um discurso
arrebatador, um discurso que desperta a coragem no coração de cada membro do
seu exército, um discurso que vence o temor e motiva profundamente o seu
exército. O discurso de um verdadeiro líder, de alguém engajado em transformar
a realidade. Palavras de um homem inspirado por Deus!
Partes deste mesmo discurso merecem ser
reproduzidas e guardadas para a eternidade, como fontes de constante inspiração
diante das adversidades da vida:
“Quem expressa esse desejo? Meu primo Westmoreland?
Não, meu simpático primo, se estivermos destinados a morrer nosso país não tem
necessidade de perder mais homens do que nós; e se vivermos,quanto menos
formos, maior será para cada um a parte que nos caberá de honra. Deus assim o
deseja! Por favor, não desejes um homem a mais. Por Júpiter! Não tenho a
cupidez do ouro e pouco me importa que vivam as minhas custas; sinto pouco que
outros usem minhas roupas; essas coisas exteriores quase não tem importância em
meus desejos; mas, se for pecado cobiçar a honra eu sou a mais pecadora das
almas existentes. Não, por minha fé, meu primo, não desejes um homem mais da
Inglaterra. Paz de Deus! Não desejaria perder tão grande honra, pela melhor das
esperança, pois um homem a mais talvez quisesse partilhá-la comigo.Oh! Não
anseies por um homem mais! Proclama, antes, através do meu exército,
Westmoreland, que pode retirar-se aquele que não tiver coragem para lutar;
entreguem-lhe o passaporte e ponham-lhe na bolsa algum dinheiro para que possa
viajar; não desejaríamos morrer em companhia de um homem que tivesse medo de
acabar como nosso companheiro. Hoje é o dia da festa de São Crispim, quem
sobreviver a este dia voltará são e salvo para casa, ficará na ponta dos pés
toda vez que falarem no dia de hoje e crescerá só com o nome de São Crispim.
Quem sobreviver a este dia e chegar à velhice, anualmente na vigília desta
festa, convidará os amigos e dir-lhes-á: “Amanhã é dia de São Crispim.” Então
arregaçará as mangas e, ao mostrar as cicatrizes,dirá: “Recebi estas feridas no
dia de São Crispim. “Os velhos esquecem,entretanto,aquele que de tudo se tiver
esquecido,lembrar-se-á, mesmo assim, com satisfação, das proezas que realizou
naquele dia.E então,nossos nomes serão tão familiares em suas bocas quanto os
nomes de seus parentes; o Rei Henrique, Bedford, Exeter, Warwick, Talbot,
Salisbury e Glócester ressucitarão na lembrança viva e saudável com taças
espumantes.Está história será ensinada pelo bom homem ao filho e, desde este dia
até o fim do mundo, a festa de São Crispim e São Crispiniano nunca passará sem
que esteja associada à nossa recordação, de nosso pequeno exército, de nosso
feliz pequeno exército de nosso bando de irmãos; porque, aquele que hoje verter
o sangue comigo será meu irmão; por muito vil que seja, está jornada enobrecerá
sua condição e os cavaleiros que agora permanecem na Inglaterra, deitados no
leito, sentir-se-ão amaldiçoados pelo fato de não se encontrarem aqui e
considerarão de baixo preço a própria nobreza, quando ouvir falar um daqueles
que combateram conosco no dia de São Crispim!”.
Um brado de guerra, como a soma dos rugidos de mil
leões, explodiu e ecoou depois das palavras do Rei Henrique V e o exército
transformou-se completamente, com os olhos vidrados nos inimigos como os das
águias em suas presas! De homens-farrapos, os soldados de Henrique V passaram a
ser homens-lobos, mensageiros do caos!
Depois do discurso, motivados, seus homens partiram
para a batalha cruenta que durou quase todo um dia. O verde da planície da
Azincourt foi tingido pelo escarlate do sangue dos milhares de guerreiros que
tombaram naquela oportunidade, cujo desenrolar dos fatos pareceu um prenúncio
do Juízo Final. O dia foi dos ingleses. Do lado francês, a vergonhosa e
humilhante derrota. Milhares e milhares de soldados tombaram diante das espadas
inimigas. Poucas baixas do lado inglês. Uma vitória quase milagrosa! Comovidos
pelo discurso do Rei Henrique V, os soldados ingleses multiplicaram suas forças
e lutaram como centauros ferozes e enlouquecidos, abrindo aos franceses às
portas do pior dos infernos!
Qual o segredo do Rei Henrique V? De onde proveio
tanta sabedoria e em hora tão oportuna? Como ele conseguiu motivar suas tropas?
Muitas são as respostas. As palavras do Rei Henrique V eram palavras sinceras,
nascidas de suas entranhas e do seu coração. Não foram palavras vazias ou
empoladas, mas palavras que expressavam a natureza corajosa de um homem
destemido. Palavras, isso é muito importante frisar, acompanhadas de um poderoso
testemunho de vida e de fé.
Henrique V não apenas falava, mas também fazia. Não
se limitou ao discurso, mas foi o primeiro a empunhar a espada e, à frente do
exército, entregar-se a batalha, arriscando sua própria vida e protegendo a de
seus comandados. Depois da batalha ele, como sempre, era o mais exausto, o mais
ferido, o mais coberto de sangue, seu e do inimigo. Ninguém de boa-fé resiste à
força de um testemunho. E testemunhar com ações corajosas era a marca principal
do bravo rei Henrique V.
Pensamos, contudo, que o Rei tocou o coração do seu
exército porque, antes de tudo, o próprio texto de Shakespeare mostra isso,
ele, humildemente, bom católico, incorporou os ensinamentos cristológicos de
orar e vigiar. Enquanto as tropas dormiam, na noite anterior a batalha, o Rei
Henrique V guardou vigília. Visitou seus soldados, confortando-os. Verificou
pessoalmente os preparativos finais para a batalha. Contemplou as cenas da
guerra e, humildemente, prostou-se suplicando a misericordiosa ajuda de Deus.
Numa comovente prece, pediu a Deus: “Reveste de aço
os corações de meus soldados! Defende-os do medo; tira-lhes a faculdade de
contar, se o número de nossos adversários tiver que lhes retirar a coragem!…
Hoje, não, meu Deus!”. Logo depois ele pede perdão pelos crimes e pecados de
seus antepassados e dos seus próprios e com o coração contrito e humilhado
assume compromissos diante de Deus de mudança de vida, finalizando de forma
muito bonita, lembrando o glorioso Ricardo Coração-de-leão, bravo cruzado,
prometendo: “Farei mais ainda; mas tudo que puder fazer será pouca coisa, visto
que minha penitência deve vir depois de haver implorado perdão para tudo
isto!”.
A súplica humilde e penitente do Rei Henrique V
propiciou a graça de Deus, fortaleceu seu espírito e permitiu, com seu próprio
exemplo de vida, o encorajamento dos seus soldados e a vitória final.
Aliás, ao saber da vitória, dos números
impressionantes, um punhado de ingleses mortos e milhares de franceses
tombados, o Rei Henrique V, mais uma vez demonstrando sabedoria que não pode
ser jamais esquecida, retirou de si qualquer glória pela vitória, decretando
que seria punido com a morte quem se ufanasse do triunfo daquela vitória, pois
à ninguém competiria qualquer mérito senão a Deus que abençoou o corajoso
exército inglês naquele dia, no dia da batalha de Azincourt!
E que esse mesmo espírito, corajoso, virtuoso
(especialmente no que tange à virtude cardeal da Fortaleza), fidedigno à Deus,
seja o espírito a nos alimentar cotidianamente nas lutas diárias e nos motive
sempre e em todos os campos de nossas vidas.
Ao longo de nossa trajetória, enfrentamos muitas,
pequenas ou grandes, batalhas de Azincourt. Por mais dolorosa que a adversidade
se nos revele, é preciso encará-la com coragem, pois sua aparência devastadora,
sua imagem amplificada, como era a do exército francês diante do exército em
frangalhos do rei Henrique V, não pode e não será maior do que a nossa
determinação em vencer e vencer por amor a Deus. Conseguiremos converter esse
desejo de vitória, essa vocação ao sucesso, se conseguirmos, antes, nutrir em
nosso comportamento moral a virtude da Fortaleza.
Cada “não” que dissermos às fraquezas, aos vícios,
aos comportamentos equívocos, será um sim à verdade e um sim ao triunfo. A arma
que dispomos para tanto, sedimentada na fé resoluta, é a virtude da fortaleza.
A virtude da fortaleza é nossa poderosa aliada no
combate ao mal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário