Por Paul
Medeiros Krause
Onde se permite o aborto de anencéfalos não há
estado de direito. A Constituição protege a vida, e não "a vida
viável" ou "a vida de qualidade". O Supremo Tribunal Federal
desrespeitou a Constituição ao permitir o aborto de anencéfalos.
Lamentavelmente, o homem costuma repetir os mesmos
erros do passado. Muitos se indignam, por exemplo, com o fato de a escravidão
do negro já ter sido admitida. A indignação é louvável e justíssima; o problema
é não enxergar a escravidão – na verdade, algo muito pior – acontecendo em
nossos dias.
O assassinato silencioso de homens e mulheres
inocentes no ventre de suas mães – sim, assassinato que alguns tentam
dissimular por meio de malabarismos semânticos como o uso da expressão
“interrupção da gravidez” – é algo de que nos envergonharemos brutalmente no
futuro. Ele é uma chaga aberta da sociedade atual.
No Brasil, não há mais Estado de Direito. E isso
desde que o Supremo Tribunal Federal, por oito votos contra dois, decidiu que o
anencéfalo é um ser humano de segunda categoria, cujo direito à vida é inferior
a um suposto direito de bem estar psíquico de suas mães. Observe-se, porém, que
esse suposto direito de bem estar psíquico é também uma falácia, pois os
relatos de mães que levaram a termo a gravidez de anencéfalos é de grande
serenidade, de paz e sensação de dever cumprido.
Várias objeções podem ser feitas à decisão do STF.
Em primeiro lugar, ele usurpou competência do Congresso Nacional, atuando como
legislador positivo e criando hipótese de aborto eugênico não prevista pela
lei.
Além de usurpar competência do Congresso Nacional,
a inovação legislativa promovida pelo STF – aliás, contrária à vontade da
população – atenta contra a Constituição, visto que o direito à vida,
agasalhado pelo seu art. 5.º, não possui condicionantes ou adjetivos: a
Constituição protege a vida, não a “vida viável”, “a expectativa de vida” ou “a
vida de qualidade”. Isso sem falar em que seria temeridade enveredar por
definir o que seja “vida viável”, “expectativa de vida” (dias, meses ou anos?)
ou “vida de qualidade”. A medicina não é ciência exata. Mas o STF entendeu que
o anencéfalo não é uma “vida de qualidade”.
Se no passado houve um grupo de homens – utilizo a
palavra “homens” no sentido de ser humano – destituído de praticamente todo e
qualquer direito, os escravos, hoje surge novo grupo de homens considerados de
segunda categoria: os nascituros e, no específico caso dos anencéfalos, as
“vidas sem qualidade”.
Já tive oportunidade de dizer que o entendimento do
STF equivaleria a afirmar que um homem, um ser humano, é determinado por uma
régua escolar: 10 cm de cérebro, 15 cm disso ou daquilo. Ora, isso é eugenia.
Não é o tamanho do cérebro que define o que é o homem. O que define um homem é
ser um indivíduo da nossa espécie.
Dizer que o anencéfalo é um ser morto constitui uma
falsidade gritante, visto que ele apodreceria dentro do ventre materno, gerando
inúmeras complicações de saúde, coisa que não ocorre. Tanto não ocorre que não
é invocado, no caso do anencéfalo, o inciso do Código Penal que trata do aborto
terapêutico, isto é, o que é realizado para salvar a vida da mãe.
Demais disso, alguns outros pontos chamam a atenção
no debate sobre a legalização do aborto (a questão do anencéfalo é apenas o
dedo mindinho da discussão). As feministas reivindicam um direito próprio; um
suposto direito de autodeterminação sexual, de bem estar psíquico e de fazer o
que quiserem com o seu corpo.
Não obstante, a própria existência do Poder
Judiciário e das regras de impedimento e suspeição existentes no direito
processual demonstram que ninguém é bom juiz da própria causa. Por mais idônea
que seja a parte interessada, ao defender um direito (ou suposto direito)
próprio, entra o componente passional, que compromete um juízo isento,
imparcial.
Por essa razão, os argumentos feministas devem ser
tomados com extrema cautela, porque são passionais e desviam o foco da
discussão.
Por outro lado, os que se opõem à legalização do
aborto defendem direitos de terceiros, não estão atuando em causa própria. Só
por aí começam a levar vantagem sob o aspecto da imparcialidade. Não há, no
caso, motivações egoísticas, mas motivações altruístas. Os defensores dos
homens não nascidos protegem direitos de terceiros.
Outro aspecto, é que os abortistas, em regra,
utilizam malabarismos, contorcionismos verbais, temendo que o público
compreenda qual é o fenômeno real que se passa: o derramamento brutal de sangue
humano inocente. Ao invés de o Estado colocar o seu aparato a serviço e na defesa
dos seres humanos mais indefesos, os nascituros com má-formação (essa é a
lógica do Estado de Direito!), ele faz exatamente o contrário: se põe do lado
do mais forte (essa é a lógica da barbárie). No confronto entre a mãe e o feto
malformado, prefere o Estado optar pelos direitos da primeira, chamando o
segundo de “matéria morta”, de “vida sem qualidade”. Isso não é de espantar,
pois o negro também já foi considerado uma coisa, mera propriedade do seu
senhor. Mas talvez, pelo menos, tenha sido considerado uma coisa viva.
Seria interessante submeter os abortistas a um
teste. Gostaria de perguntar-lhes o seguinte: caso os senhores estivessem
convencidos de que o anencéfalo é um ser humano vivo, a sua opinião sobre o
aborto ou interrupção da gravidez de anencéfalos seria diferente? Acredito que
não seria. As distinções semânticas utilizadas pelos defensores do aborto
destinam-se apenas a facilitar a consecução dos seus objetivos. Para o
abortista, não importa tanto o fenômeno real. Ele quer o resultado: a liberação
da prática. Ao contrário, para os defensores dos homens em gestação, entender o
fenômeno real é imprescindível. Os fatos determinam qual é a regra de direito
aplicável.
Por último, fica às pessoas de boa vontade a
advertência: é o Presidente da República que escolhe os Ministros do STF. Um
voto mal empregado pode resultar em derramamento de sangue. Será que não temos
uma culpa gravíssima no caso?
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