Por Carlos
Ramalhete
Movido por um
saudável entusiasmo com São Tomás de Aquino, há quem não entenda muito bem o
que é a filosofia e para que ela serve, e assim corra o risco de cair numa
idolatria pseudo-tomista.
Ora, ensina-nos o
próprio São Tomás que "studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur
quid homines senserint, sed qualiter se habeat veritas rerum" ("o
estudo da filosofia não trata do que as pessoas pensaram, mas da verdade das
coisas"; isso deveria ser tatuado no lado de dentro das pálpebras de quem
quer que procure estudar filosofia).
Filosofia é
um instrumento, é uma forma de organizar a razão... para entender o mundo
de maneira correta. Ela não começa e nem acaba com S. Tomás, mesmo que ele nos
tenha fornecido o arcabouço da melhor filosofia ao aprimorar o pensamento
aristotélico. Não interessa o que São Tomás pensou; interessa a verdade do que
ele pensou e como isso pode nos ajudar a perceber a verdade das coisas, que,
isto sim, é o importante. Poderia não ter sido São Tomás a desenvolver este
ferramental, que ele ia funcionar do mesmo jeito. São Tomás poderia ter dito
uma besteira, e ela seria uma besteira do mesmo jeito. Mas o ensino filosófico
dele é maravilhoso não por ser de um Doutor da Igreja (Doutores da Igreja não
são necessariamente filósofos, e podem fazer má filosofia ou costurar meias
mal; a teologia, não a filosofia, deles é o que faz com que a Igreja lhes tenha
dado este título), sim por ser ótimo para perceber a verdade das coisas.
Isto significa que
estudar São Tomás não é nem pode ser um fim em si; ao contrário, devemos
estudar, e muito, São Tomás para que possamos usar o ferramental magnífico que
ele desenvolveu para estudar o mundo. Aliás, para que estudemos corretamente
Deus e o mundo. Não adianta rigorosamente nada estudar S. Tomás e não aplicar o
estudado a tudo o que nos cerca; seria como comprar o melhor microscópio do
mercado e nunca tirar a tampa da lente, contentando-se em ler e reler o manual,
brincar com todos os controles, etc.
Filosofia é uma
coisa, e teologia é outra. Aquela é a serva desta, porque sem o estudo daquela
dificilmente se poderia entender corretamente esta (sem estudar metafísica não
dá pra entender chongas de sacramentologia ou de cristologia, por exemplo). A
Revelação, recebida, preservada e ensinada pela Igreja, é uma Verdade que não
passa, e que podemos usar como parâmetro para julgar a verdade de outras
coisas, de pensamentos teológicos, de algumas descobertas filosóficas que tocam
a teologia, etc. Mas a filosofia não trata da Revelação; ela é um instrumento
que nos ajuda a entender coisas reveladas, por ser um instrumento de
compreensão de tudo.
O estudo da
filosofia, assim, não serve para "inventar novidades", sim para
entender, com o auxílio do ferramental filosófico (que, mais uma vez, não
se limita a São Tomás), a verdade acerca do que nos cerca. E o que nos
cerca pode perfeitamente bem não ter chongas a ver com a Revelação, e pode
perfeitamente ser um problema inédito.
Por exemplo, são
questões filosóficas as questões que hoje se colocam sobre o valor da vida (o
que é um feto? É um ser humano? Faz parte da mãe? Está vivo?), sobre os limites
da autoridade do Estado (ele pode inventar que dois barbados juntos são uma
família? Ele pode desarmar os cidadãos? Ele pode proibir
bebida/cigarro/gordura?), etc.
O que a filosofia
tem a fazer é descobrir a verdade das coisas: descobrir o que é o Estado,
descobrir o que é a vida, a família, o feto, o ser humano, a mãe, a comida, o
cigarro, a bebida, a arma, a defesa própria ou de terceiros, etc. É por isso
que ela é a serva da teologia. Sem que se saiba o que é um feto, não se pode
discernir se ele merece ser protegido pelo mandamento de não matar. Até hoje
tem gente que mente que São Tomás teria sido a favor do aborto, pq ele dizia
que só após a animação do feto ele é um ser humano. Ora, o problema era de
filosofia natural (medicina, biologia, etc.): a animação é o que possibilita o
crescimento, e a filosofia natural do tempo dele achava que o feto só começava
a crescer na hora em que a gravidez se tornava perceptível (ou seja: não
haveria um momento em que fosse permitido abortar, de qqr jeito). Hoje sabemos
que a animação começa quando ocorre a concepção.
O que a Igreja
sempre pregou que se fizesse é a chamada "filosofia perene", ou seja,
um único corpus de conhecimento que vai sendo aumentado e melhorado com o
tempo, tendo como estrutura básica o ensinado por São Tomás, dirigido
basicamente à questão da quididade ("o que é isto?") e daí se
espalhando para outras coisas (por exemplo, pq dois corpos se atraem, como eles
se atraem, qual é a relação entre a atração, a massa e a distância, etc., como
o Newton fez ao fundar a física newtoniana, este ramo moderno da filosofia
natural, com seu livro "Princípios matemáticos da filosofia
natural").
Não se trata de
pegar São Tomás e estudá-lo como o pessoal da "filosofia" moderna faz
com seus autores, estudando cada sistema delirante de epistemologia (pq aquilo
não é filosofia, é má epistemologia) sem relação real com o mundo, sem tentar
descobrir a verdade das coisas, sim de agregar mais e mais a este corpus
magnífico, composto não só de São Tomás, mas de descobertas de milhares de
filósofos, inclusive alguns modernos (Ortega y Gasset, por exemplo, que era um
Heideggeriano - logo moderno -, contribuiu com importantes insights sobre o que
é ser humano, sobre a organização da sociedade, etc.).
São Tomás, que é
simplesmente o nome mais importante por ter uma obra vastíssima e profundíssima
e por ter aperfeiçoado o ferramental básico aristotélico, dizia que somos como
anões nos ombros de gigantes, sendo os gigantes a soma das descobertas de todos
os ancestrais. Bom, deste gigante S. Tomás é hoje o tronco, o centro da massa
corpórea, por assim dizer, em termos de importância, mas isso não quer dizer
nem que a filosofia comece com ele (Platão e Aristóteles seriam os pés, por
exemplo) nem que ela termine com ele. Agora mesmo há gente, por exemplo, usando
as descobertas da neurologia para aperfeiçoar a epistemologia tomista (que já
previa muito do que foi descoberto pelos neurologistas modernos, aliás).
Mas mesmo na
filosofia moderna (e em filmes, e em jornais, e no bate-papo do botequim) dá
para achar coisas boas, que possam passar a fazer parte da filosofia perene ao
serem encaixadas neste corpus preexistente. Quando se lê um autor de filosofia
moderno, ele deve ser lido em busca de coisas com que possa contribuir para a
filosofia perene, evitando a armadilha da filosofia moderna, que constrói
elaborados castelos de cartas autorreferentes, sem comunicação entre os
sistemas. Costumo dizer que filosofia moderna é uma forma de RPG, em que se
constrói mundinhos fechados, e é um perigo muito grande que alguém estude São
Tomás como os modernos estudam filosofia moderna.
Para saber mais
sobre este assunto, recomendo vivamente o livro de nosso bom Pe. Emílio, "Filosofias da Hora e Filosofia Perene".
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