quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

O estudo da Filosofia.

Por Carlos Ramalhete

Movido por um saudável entusiasmo com São Tomás de Aquino, há quem não entenda muito bem o que é a filosofia e para que ela serve, e assim corra o risco de cair numa idolatria pseudo-tomista.

Ora, ensina-nos o próprio São Tomás que "studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines senserint, sed qualiter se habeat veritas rerum" ("o estudo da filosofia não trata do que as pessoas pensaram, mas da verdade das coisas"; isso deveria ser tatuado no lado de dentro das pálpebras de quem quer que procure estudar filosofia).


Filosofia é um instrumento, é uma forma de organizar a razão... para entender o mundo de maneira correta. Ela não começa e nem acaba com S. Tomás, mesmo que ele nos tenha fornecido o arcabouço da melhor filosofia ao aprimorar o pensamento aristotélico. Não interessa o que São Tomás pensou; interessa a verdade do que ele pensou e como isso pode nos ajudar a perceber a verdade das coisas, que, isto sim, é o importante. Poderia não ter sido São Tomás a desenvolver este ferramental, que ele ia funcionar do mesmo jeito. São Tomás poderia ter dito uma besteira, e ela seria uma besteira do mesmo jeito. Mas o ensino filosófico dele é maravilhoso não por ser de um Doutor da Igreja (Doutores da Igreja não são necessariamente filósofos, e podem fazer má filosofia ou costurar meias mal; a teologia, não a filosofia, deles é o que faz com que a Igreja lhes tenha dado este título), sim por ser ótimo para perceber a verdade das coisas.

Isto significa que estudar São Tomás não é nem pode ser um fim em si; ao contrário, devemos estudar, e muito, São Tomás para que possamos usar o ferramental magnífico que ele desenvolveu para estudar o mundo. Aliás, para que estudemos corretamente Deus e o mundo. Não adianta rigorosamente nada estudar S. Tomás e não aplicar o estudado a tudo o que nos cerca; seria como comprar o melhor microscópio do mercado e nunca tirar a tampa da lente, contentando-se em ler e reler o manual, brincar com todos os controles, etc.

Filosofia é uma coisa, e teologia é outra. Aquela é a serva desta, porque sem o estudo daquela dificilmente se poderia entender corretamente esta (sem estudar metafísica não dá pra entender chongas de sacramentologia ou de cristologia, por exemplo). A Revelação, recebida, preservada e ensinada pela Igreja, é uma Verdade que não passa, e que podemos usar como parâmetro para julgar a verdade de outras coisas, de pensamentos teológicos, de algumas descobertas filosóficas que tocam a teologia, etc. Mas a filosofia não trata da Revelação; ela é um instrumento que nos ajuda a entender coisas reveladas, por ser um instrumento de compreensão de tudo.

O estudo da filosofia, assim, não serve para "inventar novidades", sim para entender, com o auxílio do ferramental filosófico (que, mais uma vez, não se limita a São Tomás), a verdade acerca do que nos cerca. E o que nos cerca pode perfeitamente bem não ter chongas a ver com a Revelação, e pode perfeitamente ser um problema inédito.

Por exemplo, são questões filosóficas as questões que hoje se colocam sobre o valor da vida (o que é um feto? É um ser humano? Faz parte da mãe? Está vivo?), sobre os limites da autoridade do Estado (ele pode inventar que dois barbados juntos são uma família? Ele pode desarmar os cidadãos? Ele pode proibir bebida/cigarro/gordura?), etc.

O que a filosofia tem a fazer é descobrir a verdade das coisas: descobrir o que é o Estado, descobrir o que é a vida, a família, o feto, o ser humano, a mãe, a comida, o cigarro, a bebida, a arma, a defesa própria ou de terceiros, etc. É por isso que ela é a serva da teologia. Sem que se saiba o que é um feto, não se pode discernir se ele merece ser protegido pelo mandamento de não matar. Até hoje tem gente que mente que São Tomás teria sido a favor do aborto, pq ele dizia que só após a animação do feto ele é um ser humano. Ora, o problema era de filosofia natural (medicina, biologia, etc.): a animação é o que possibilita o crescimento, e a filosofia natural do tempo dele achava que o feto só começava a crescer na hora em que a gravidez se tornava perceptível (ou seja: não haveria um momento em que fosse permitido abortar, de qqr jeito). Hoje sabemos que a animação começa quando ocorre a concepção.

O que a Igreja sempre pregou que se fizesse é a chamada "filosofia perene", ou seja, um único corpus de conhecimento que vai sendo aumentado e melhorado com o tempo, tendo como estrutura básica o ensinado por São Tomás, dirigido basicamente à questão da quididade ("o que é isto?") e daí se espalhando para outras coisas (por exemplo, pq dois corpos se atraem, como eles se atraem, qual é a relação entre a atração, a massa e a distância, etc., como o Newton fez ao fundar a física newtoniana, este ramo moderno da filosofia natural, com seu livro "Princípios matemáticos da filosofia natural").

Não se trata de pegar São Tomás e estudá-lo como o pessoal da "filosofia" moderna faz com seus autores, estudando cada sistema delirante de epistemologia (pq aquilo não é filosofia, é má epistemologia) sem relação real com o mundo, sem tentar descobrir a verdade das coisas, sim de agregar mais e mais a este corpus magnífico, composto não só de São Tomás, mas de descobertas de milhares de filósofos, inclusive alguns modernos (Ortega y Gasset, por exemplo, que era um Heideggeriano - logo moderno -, contribuiu com importantes insights sobre o que é ser humano, sobre a organização da sociedade, etc.).

São Tomás, que é simplesmente o nome mais importante por ter uma obra vastíssima e profundíssima e por ter aperfeiçoado o ferramental básico aristotélico, dizia que somos como anões nos ombros de gigantes, sendo os gigantes a soma das descobertas de todos os ancestrais. Bom, deste gigante S. Tomás é hoje o tronco, o centro da massa corpórea, por assim dizer, em termos de importância, mas isso não quer dizer nem que a filosofia comece com ele (Platão e Aristóteles seriam os pés, por exemplo) nem que ela termine com ele. Agora mesmo há gente, por exemplo, usando as descobertas da neurologia para aperfeiçoar a epistemologia tomista (que já previa muito do que foi descoberto pelos neurologistas modernos, aliás).

Mas mesmo na filosofia moderna (e em filmes, e em jornais, e no bate-papo do botequim) dá para achar coisas boas, que possam passar a fazer parte da filosofia perene ao serem encaixadas neste corpus preexistente. Quando se lê um autor de filosofia moderno, ele deve ser lido em busca de coisas com que possa contribuir para a filosofia perene, evitando a armadilha da filosofia moderna, que constrói elaborados castelos de cartas autorreferentes, sem comunicação entre os sistemas. Costumo dizer que filosofia moderna é uma forma de RPG, em que se constrói mundinhos fechados, e é um perigo muito grande que alguém estude São Tomás como os modernos estudam filosofia moderna.


Para saber mais sobre este assunto, recomendo vivamente o livro de nosso bom Pe. Emílio, "Filosofias da Hora e Filosofia Perene".

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