segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Uma breve reflexão nos parágrafos VII a XII do livro X do De Trinitate de Agostinho.

Uma breve reflexão acerca do “γνῶθι σεαυτόν” (gnõthi seaytón) nos parágrafos VII a XII do livro X do De Trinitate de Agostinho[1] e uma meditação sobre a sua aplicabilidade a nossa condição atual

Por Sávio Laet

Santo Agostinho, autor de De Trinitate.
A obra De Trinitate de Agostinho é dividida em três partes. São quinze livros. Como indica o próprio nome, ela pretende aproximar-se do mistério da Trindade. A primeira parte consiste numa demonstratio da Trindade baseada na auctoritas da Escritura (I-IV). A segunda parte consiste na defesa – baseada, desta feita, sobre a ratio – da legitimidade daquilo que dizemos acerca da Trindade. Trata-se também de um tratado sobre a “linguagem teológica” no que toca aos atributos divinos (V-VII). Na terceira parte, a Trindade – em sua unidade – é contemplada através da inteligência – em particular da mente humana –, desta sorte considerada como imagem de Deus (VIII-XV). É a tentativa de contemplar e compreender como a mens humana constitui uma imagem da Trindade.

Agora bem, dentro desta terceira parte, o livro X tem a sua autonomia. É o livro cujo tema é o conhecimento de si mesmo. Com efeito, se a mente é o lugar onde podemos ver um reflexo da Trindade, torna-se essencial conhecer o que a mente é. E se nós somos a nossa mente, isto significa que se torna essencial – para o conhecimento da Trindade – o “conhecimento de si mesmo”. O objetivo de Agostinho é mostrar que a “cogitatio” de si – da parte da mente – é temporária, parcial e sujeita a erro. Já a notitia acerca da própria mente – procedente da mente mesma – é perene, total e infalível. Ora, a seção do livro X – que vai do parágrafo VII ao parágrafo XII – concentra-se sobre o sentido do “projeto délfico”: como posso conhecer a mim mesmo? Isto é importante porque – se o homem é sua mente – a mente deve ter um conhecimento certo de si, a fim de que o homem viva segundo a sua natureza.

Mas, para Agostinho, conhecer-se e saber o que se é não é a mesma coisa. E saber o que se é, é saber que, na hierarquia dos seres – segundo o esquema neoplatônico – a mente não ocupa nem o vértice nem a base, mas o meio. No vértice está Deus; na base, o mundo dos corpos. Destarte, para a mente se comportar corretamente, deve saber que é superior aos corpos, mas inferior a Deus. Deve, pois, saber ocupar o seu lugar na realidade. Não se trata, propriamente, de adquirir um conhecimento do qual era privada, mas de retomar a “consciência” do que sempre soube e habitualmente se esquece. Para isso, importa que a mente corrija o modo pelo qual se tornou habituada a conhecer a si mesma.

A mente deve habituar-se a pensar-se adequadamente.
A proposta de Agostinho é que a mente – através do correto conhecimento de si mesma – saia do estado de “inconsciência” para o de “consciência” de si mesma e, assim, encontre um estilo de vida superior. Em outras palavras, a mente deve habituar-se a pensar-se adequadamente.

Com efeito, a causa do amor desordenado pelas coisas sensíveis reside no fato de a alma crer ser um corpo (materialismo). E para corrigir isso, ela deve acercar-se de si mesma não como se fosse ausente de si mesma, porque nada é mais presente à mente do que a própria mente. Deve, pois, aproximar-se de si mesma não mais se procurando nas suas “representações”, mas diretamente, e isto acarreta que a mente se destaque, distinguindo-se das imagens sensíveis que estão na sua memória, imagens estas que o mais das vezes ela toma por ela mesma.

De resto, não se trata de um conhecimento aditivo, mas subtrativo, isto é, a mente deve se subtrair às imagens que a povoam. Outrossim, não se resolve o problema dizendo que Agostinho opõe um dentro a um fora. Isto só barateia a questão. É mais do que isso, porque as imagens também estão dentro de nós. Trata-se, na verdade, de ir além do interior – que Agostinho identifica com a imaginação – para o íntimo, que ele chama de inteligência.

Alienados de nós mesmos.
Neste sentido, nós vivemos habitualmente fora de nós mesmos, alienados de nós mesmos, ausentes de nós mesmos, mesmo em nossa interioridade, mesmo em nossa vida interior. Daí a necessidade de uma metafísica da interioridade (ir além da própria interioridade), que nos coloque imediatamente frente a frente com nós mesmos – a sós com nós mesmos – e que redunde, por isso mesmo, no amor bem ordenado.

No entanto, importa entendermos ainda outro aspecto. Agostinho, por este itinerário, não chega ao “individualismo moderno”. Na verdade, antes de descobrir o indivíduo – não o “individualismo” – Agostinho descobre, como vimos, a verdadeira interioridade. E é precisamente nesta interioridade, cujo “superlativo” é a intimidade, que ele se encontra com a alteridade de Deus. Ora, é somente na relação com este TU, que o mesmo Agostinho pode afirmar o seu “eu”. Há, portanto, na interioridade agostiniana, um êxodo, um sair de si mesmo para se relacionar com Aquele que é maior do que nós: Deus. Trata-se, pois, de uma interioridade que culmina na transcendência. E isto se estende também às relações humanas. Com efeito, é apenas fazendo uma experiência interior do outro, isto é, uma experiência que "transgrida" os simulacros que temos dele, que nos tornamos capazes de estabelecer, com este outro, um diálogo de um “eu” com um “tu”. Destarte, cumpre acentuar, que a interioridade agostiniana não nos transforma em mônadas; antes, torna-nos seres relacionais. De fato, é partir desta “metafísica da interioridade” que Agostinho formula o seu conceito de “civitas Dei”, o qual é um conceito universal, visto que a "civitas" não é uma “pólis” que possa ser circunscrita no espaço e no tempo, mas um hábitat que é constituído por todos aqueles que fazem esta experiência, vale dizer, por todos aqueles que estejam abertos a experienciar dentro de si o Outro e os outros. Por conseguinte, é reformulando o ideal “cosmopolita” do seu tempo, que Agostinho funda o seu conceito de “civitas”.[2]

Mas, retornando ao início do nosso texto, na “prática”, qual é a causa de nos desintegrarmos?

Na extinta série Diálogos Impertinentes, num diálogo mediado pelo filósofo e professor Mário Sérgio Cortella, quando da discussão acerca da “A Moral”[3], dois pensadores de peso – Prof. Olavo de Carvalho e o Prof. Frei Carlos Josaphat – debateram a questão. Toda a conversação é uma aula, mas fiquemos apenas com um pequeno trecho que vai dos 37min: 18s até aos 41min: 16s. Trata-se de uma fala – que fala por si mesma – do filósofo Olavo de Carvalho. Como educador, o professor consegue ser autoexplicativo.

O que entendo é o seguinte. A absolutização da moral é um fenômeno que não nasceu na cristandade medieval. Os medievais eram antirracionalistas (não antirracionais) e, por isso mesmo, acreditavam que a figura deste mundo passa. O grande exemplo disso era a festa dos bufões, onde tudo era posto de cabeça para baixo, exatamente para evidenciar a transitoriedade da ordem presente. A moral endeusada é um fenômeno moderno e laico. E é a moral, concebida como substituta de Deus, que tem causado a maioria das nossas desordens, inclusive emocionais. Como ninguém aguenta ficar vigiando-se o tempo todo e como também ninguém consegue “produzir provas contra si mesmo”, é “natural” – numa sociedade que endeusa a moral e onde não há mais um Deus com quem se possa conversar e a quem se possa recorrer – projetar nos outros os próprios defeitos e, sem mais, desonerar-se de responsabilidades, responsabilizando os outros. Enfim: Summum jus, summa injuria! Parafraseando: o moralismo é a suma imoralidade.

Mudança de comportamento moral, uma tragédia esperada.
Ora, os ideólogos não demoraram a perceber que a absolutização da moral está na ordem do dia. Hoje, eles não procuram mais mudar ideias, mas sim comportamentos e, mudando o comportamento, conduzem as suas vítimas ao entorpecimento, ao desinteresse, à alienação e, a longo prazo, a ter vergonha de si mesmas. E, como a moral passa a ser a última instância – a instância inapelável – estas pessoas não aceitam fazer uma revisão das suas próprias condutas, não aceitam se policiar, porque também não tem para onde ir. O moralismo é o pecado sem perdão. Hoje não há mais lugar, por exemplo, para as Confissões de um Agostinho. Não existe mais arrependimento, porque não há mais esperança de redenção. Há muito remorso, isto sim. Perdão é coisa rara onde não existe remissão. Fazendo uma analogia com São Paulo: sem Deus, a lei só identifica o delito, para depois deixar a pessoa sozinha com os seus "demônios", sendo incapaz de exorcizá-los. Neste contexto, resta o conformismo, a fuga de si mesmo, a distração e a negação dos autênticos valores. É neste contexto, que a integração pessoal proposta por Sócrates e reproposta por Agostinho ganha todo sentido.

Não poderíamos encerrar esta pequena reflexão sem traçar um paralelo com o atual contexto do nosso país. Para tanto, valer-nos-emos de um trecho do Comentário de Tomás ao célebre livro V da Ética a Nicômaco de Aristóteles:

[...] Aristóteles comenta que essa dúvida será posteriormente esclarecida na Política, já que, no terceiro livro dessa obra (Ética), ele comenta que ser um homem simplesmente bom não se confunde com ser um cidadão bom, pois esses dois conceitos não são sempre a mesma coisa em todos os Estados e em todas as Constituições. Há Estados com leis não retas, nos quais alguém pode ser um bom cidadão, sem ser um bom homem. Mas, no Estado ótimo, não há bom cidadão que não seja também um bom homem.[4]

A partir do que dissemos ao longo deste texto e da passagem acima, meditemos um pouco sobre a nossa condição atual. Será que é um homem bom quem segue algumas das “leis” aprovadas recentemente neste país? Será que, no Brasil, ser um bom cidadão é ser um bom homem? Se não, como fica a integração da pessoa? Como fica a formação do caráter e a sociabilidade do indivíduo, uma vez que a política não é ética e a ética não se aplica à política? Devemos exigir, no contexto em que estamos, que os nossos educadores formem bons cidadãos ou não seria mais apropriado pedir a eles, antes de tudo, que formem bons homens, no caso, homens com consciência crítica? Mas será que as nossas instituições de ensino oferecem – ou ao menos pretendem oferecer – uma formação segundo a virtude? Não estarão elas atendendo a outros interesses, que visam somente a reproduzir o que está diante dos nossos olhos? Será que, no contexto em que vivemos, vale a pena confiar a educação ao Estado? Será que podemos confiar ao Estado, tal como ele se encontra, todas as nossas expectativas? Será que por aqui há alguma instituição com vínculos estatais capaz de contribuir, com correção, na integração pessoal do indivíduo? Será que alguma instituição governamental é suficientemente livre para formar – com retidão – a consciência moral de alguém?




[1] Este texto não é senão uma despretensiosa resenha e meditação sobre a fala do Prof. Giovanni Catapano dada em 28 de fevereiro de 2013, na Sala Rossini Caffè Pedrocchi, em Padova. Trata-se da terceira intervenção feita para a XVIII edição do projeto “Filosofia come terapia”. O evento é promovido pela seção de Padova da “Associazione Italiana di Cultura Classica”. Vide: CATAPANO, Giovanni. Giovanni Catapano legge Agostino. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=hZjLNBVgX3A>. Acesso em: 25/05/2014. 
[2] Vide a intervenção de Piero Coda, no seu diálogo com Umberto Galimberti: AGOSTINHO D’IPPONA: UNA EREDITÀ, UNA RISORSA: UMBERTO GALIMBERTI E PIERO CODA IN DIALOGO. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tHTJmT9WMe4&list=UU8vw0NdgiFyLGdjXCv1MQlQ>. Acesso em: 25/10/2014.
[3] DIÁLOGOS IMPERTINENTES. A Moral. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xllUdBZOU7Q> . Acesso em: 30/09/2014. 
[4] TOMÁS DE AQUINO. Da Justiça. Trad. Tiago Tondinelli. Rev. Silvia Elizabeth da Silva. São Paulo: Vide Editorial, 2012. Lição III. p. 35.

Um comentário:

  1. Muito boa reflexão! Há tempos venho tentando entender o que acontece na sociedade atual, no entorpecimento que se vê na sociedade (generalizado) e este texto trouxe uma base para explicar este fenômeno.

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