sexta-feira, 14 de agosto de 2015

PNE e ideologia de gênero


Por Paul Medeiros Krause

“Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim.” Millôr Fernandes, que não prestou as melhores homenagens ao vernáculo nessa frase, bem se deu conta de como às vezes se compreende erradamente a democracia. O mesmo ocorre com a ideia de estado laico ou laicidade do Estado. O Estado é laico enquanto agasalha a minha religião ou ideologia particular, mas é confessional quando promove a religião ou ideologia particular do outro... Não deve ser assim. Precisamos ser minimamente objetivos. Na democracia, onde impera o pluralismo de ideias, não se impõem ideologias, religiões ou formas de pensar. O Estado não substitui as consciências, o intelecto humano. Estado laico é aquele que não adota qualquer religião ou ideologia oficial.

A ideologia de gênero, fundamentada em postulados marxistas unidos sobretudo à psicologia de Freud, sustenta que as diferenças de sexo são convenções. Que os papéis que homem e mulher desempenham são socialmente construídos, socialmente determinados. Segundo os teóricos da ideologia de gênero, a primeira opressão, a primeira exploração injusta do trabalho alheio, foi a do homem em relação à mulher, no patriarcado. Muitos autores de Direito de Família, que agora, ideologicamente, eles preferem chamar de “Direito das Famílias”, estão comprometidos com a cosmovisão marxista, com a interpretação marxista da história, e nem dissimulam isso, citando sem constrangimentos A origem da família, da propriedade privada e do estado, de Engels, por exemplo. Já tive a oportunidade de destacar isso no artigo: A moral burguesa como fonte dos ‘direitos sexuais’ e do novo conceito de ‘famílias’[1].

Segundo a ideologia de gênero, deve ser construída uma sociedade polimorficamente perversa, em que os indivíduos, ao arrepio da sua sexualidade biológica, podem e devem construir a sexualidade que quiserem. Fico a perguntar-me se os órgãos sexuais masculino e feminino, se a diferença existente entre os gametas, também são uma construção social, artificialmente criada por uma sociedade capitalista opressora... Do jeito que as coisas vão, daqui a pouco vão obrigar – por lei, decreto ou portaria – dois óvulos a gerarem uma criança ou dois espermatozoides a se fundirem...

Nem vou descer a detalhes sobre o absurdo que representa, sobre a violência que significa, expor crianças de tenra idade a essa patologia ideológica nas escolas, apresentada como se fosse algo neutro, acima do bem e do mal. Não vou deter-me aqui no abuso, no constrangimento moral, na confusão psicológica que representa a supressão dos banheiros femininos e masculinos nas escolas infantis. Não vou comentar o fato de crianças de oito a dez anos manusearem pênis de borracha em salas de aula. Há tantos críticos, e com toda razão!, do abuso sexual de crianças. Mas será que o abuso só se dá fisicamente, não pode ocorrer apenas na consciência, naquele núcleo mais íntimo da pessoa, sendo abusador o próprio Estado?

O poder descomunal do Estado pode ocorrer
nas consciências e com com o nosso pleno aval.
Não podemos esquecer-nos da força descomunal do Estado, a que um indivíduo jamais poderá resistir sozinho. Justamente em razão da desproporção de forças que há entre o Estado e o indivíduo, não pode aquele beneficiar uma ideologia particular, tornando-a obrigatória, colocando o súdito refém de uma peculiar visão de mundo, violando-lhe as convicções e a consciência, a liberdade de consciência e de crença, mormente quando se encontre na vulnerável condição de educando. A Constituição assegura a liberdade de consciência e de crença (art. 5.º, VI).

Ora, nossa Constituição não albergou, como ideologia oficial, o materialismo histórico. Pelo contrário, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil é o pluralismo político (art. 1.º, V). Nós não somos camundongos, não somos ratos de laboratório sujeitos a experimentos sociológicos. Nossas crianças não são cobaias das invencionices dos cientistas sociais.

Dispõe o art. 22, XXIV, da Constituição da República: “Compete privativamente à União legislar sobre: XXIV – diretrizes e bases da educação nacional”. O art. 24, IX, da Constituição complementa:“Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: IX – educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação”.Acrescenta o § 1.º do art. 24: “No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.”

O art. 214 da Lei Maior, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional n.º 59, de 11 de novembro de 2009, prescreve: 

“A lei [leia-se: lei federal, ou melhor, lei nacional] estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a: I – erradicação do analfabetismo; II – universalização do atendimento escolar; III – melhoria da qualidade do ensino; IV – formação para o trabalho; V – promoção humanística, científica e tecnológica do País; VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.”

Diz o art. 3.º da Constituição: 

“Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.”

Acrescenta o art. 5.º da Constituição: 

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

Diz mais o art. 226 da Constituição: 

“A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1.º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2.º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3.º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento. § 4.º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5.º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.”

Pergunta-se: em que momento a Constituição menciona gênero? Igualdade entre gêneros? Identidade de gênero? Só há menção a sexo, igualdade entre os sexos e entre homem e mulher. Não há nem sequer o reconhecimento da união estável entre pessoas de mesmo sexo. Observe-se que o art. 226, § 3.º, é original na Constituição, oriundo do Poder Constituinte Originário, não do Derivado, portanto, não pode ser considerado inconstitucional.

Portanto, o Plano Nacional da Educação (PNE), aprovado pela Lei n.º 13.005, de 25 de junho de 2014, já não poderia trazer nada a respeito da ideologia de gênero. A Constituição fala de sexo, não de gênero. O sexo biológico é um dado objetivo. Não foi inventado por nenhum teórico das ciências sociais. O PNE seria inconstitucional se agasalhasse a ideologia de gênero, pois a Constituição não permite ao Estado brasileiro comprometer-se com uma peculiar visão de mundo, utilizando-se de sua descomunal força para torná-la obrigatória, submetendo os brasileiros a um estupro intelectual, ao estupro das suas consciências. A família goza de especial proteção do Estado. O direito dos pais de educarem seus filhos em conformidade com as suas consciências e crenças não pode ser violado pelo Estado.

A citação seguinte deve levar-nos a refletir:

“Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram sendo preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores. Tudo isto não é senão raciocínio lógico e consequente.”[2]

Da mesma forma que o nazismo não nasceu nos ministérios de Berlim, mas em gabinetes de cientistas e filósofos, a ideologia de gênero não é invenção do Ministério da Educação (MEC). Não podemos permitir que as salas de aula das crianças brasileiras se tornem alvo de experiências sociológicas, de invencionices criativas, como se nossas crianças fossem cobaias dos teóricos da ideologia de gênero.

A distinção entre os sexos é um dado objetivo. É necessária inclusive para a conservação e perpetuação da espécie humana. Mas não é só isso. Ela é um dado da tradição. Aprendemo-la com os nossos pais e avós. E a verdadeira democracia dá ouvidos aos antepassados:

“A tradição pode ser definida como uma extensão dos direitos civis. Tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia dos que simplesmente por acaso estão andando por aí. Todos os democratas objetam a desqualificação pelo acidente do nascimento; a tradição objeta a desqualificação pelo acidente da morte. A democracia nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso criado; a tradição nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso pai." 

Eu, de qualquer modo, não consigo separar as duas ideias da democracia e da tradição; parece-me evidente que são a mesma ideia. Teremos os mortos nos nossos conselhos. Os antigos gregos votavam com pedras tumulares. É tudo muito regular e oficial, pois a maioria das pedras tumulares, como a maioria das cédulas de votação, é marcada com uma cruz.”[3]

Não podemos comportar-nos como adolescentes que acreditam nos colegas de rua e desprezam a opinião dos pais. Os teóricos da modernidade não podem simplesmente passar por cima das grandes tradições ocidentais.

Ilustrativo é o seguinte trecho de A descoberta do outro, do autor carioca Gustavo Corção:

“A opinião é uma atitude que o sujeito toma diante do objeto sem que o objeto importe. Não se mede pelo objeto, não tem proporção com ele. [...] Ter razão importa sem que o objeto importe. [...] [...] [...] O mecanismo da opinião pode ser descrito como uma interposição da vontade entre a inteligência e o objeto. A justa proporção com o objeto fica prejudicada, só podendo existir quando a inteligência está em livre confronto com o objeto, isto é, na contemplação. Gostaria de tornar bem clara a imensa gravidade desse problema e a importância vital do restabelecimento, na estrutura de nossa pessoa, desse respeito pelo objeto, dessa abertura para fora pela qual tanto a inteligência como a vontade, a boa vontade, aspiram à suma objetividade. O grande desvio do pensamento moderno tem origem nessa inversão interior, pela qual a vontade se arroga um direito de conquista onde somente à inteligência cabe o primado. Todos nós, mais ou menos europeus, estamos impregnados de idealismo filosófico até a medula dos ossos, estamos convencidos que nossa dignidade mais alta reside nesse subjetivismo obstinado que tenta reduzir todas as coisas do céu e da terra a meia dúzia de opiniões. Muita gente pensa que isso é grandeza e marca de caráter e que a personalidade humana se define por esse fechamento diante dos objetos e se engrandece por essa deformação interior. Diante dos objetos mais simples o homem liberal, que agasalha suas opiniões, que desconfia de tudo que não seja o morno recôncavo de sua interioridade, cai em guarda numa posição crispada; a vontade mete-se de permeio entre a porta dos sentidos e a inteligência, e como o seu caminho é mais curto, ou porque seja ela mais ágil, sua sugestão chega antes do conceito e gera o preconceito. A inteligência perde a liberdade e a vontade então convence o sujeito de que ele é um livre-pensador. É nessa questão nevrálgica da liberdade que a vontade mais se excita, e, no diálogo interior, clama que lhe pertence exclusivamente a decisão nessa matéria. Como na vida exterior vive sendo ofendida, esbarrando, chocando-se, atritando-se, a vontade procura se desforrar e volta-se para dentro. Volta-se contra o próprio sujeito, enrola-se no cerne nobre da pessoa e morde a inteligência. A liberdade psicológica e voluntariosa, nascida no conflito com as objetividades, substitui a liberdade ontológica que tem raiz na adequação entre a inteligência e o ser. O primado da inteligência é usurpado, e então, em vez do reto juízo, nasce a opinião. [...] O senso da objetividade, a que já me referi nos capítulos anteriores, é aquele pelo qual a inteligência tende para o objeto e tem consciência de sua responsabilidade primeira no juízo. A diminuição desse senso gera o subjetivismo, a reivindicação do direito de opinião, o liberalismo, o voluntarismo, e todas as correntes filosóficas idealistas que buscam no objeto uma ressonância apenas do sujeito. [...] E isso acontece porque a vontade interfere, mete-se entre o objeto e a inteligência, e procura se adequar à mobilidade, que é uma categoria proporcionada à sua essência. A atividade impera sobre a contemplação, o apetite domina o juízo, a opinião substitui a verdade.”[4]


Para concluir, os planos estaduais e municipais da educação, como visto, já não podem, como não poderia o plano nacional, albergar a ideologia de gênero, sob pena de inconstitucionalidade e deslavado autoritarismo. Acertadamente o Congresso Nacional, notadamente o Senado, extirpou sobredita ideologia do plano nacional. Espanta-me, pois, que o MEC, desrespeitando a Constituição e deliberação do Congresso Nacional, pressione de modo mais ou menos sutil estados e municípios a inseri-la em seus planos. No caso de estados e municípios, a inconstitucionalidade é ainda mais gritante: a União, no exercício da competência legislativa concorrente, edita normas gerais, de âmbito nacional. Não podem estados e municípios, ao editarem as normas suplementares, contrariar as normas nacionais baixadas pela União.

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[1] KRAUSE, Paul Medeiros. A moral burguesa como fonte dos ‘direitos sexuais’ e do novo conceito de ‘famílias’. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3613, 23 maio 2013. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/24515>. Aceso em: 30 jul. 2015.
[2] FRANKL, Viktor E. Sede de sentido. Introdução, tradução e notas de Henrique Elfes. 3. Ed. São Paulo: Quadrante, 2003. p. 45.
[3]  CHESTERTON, Gilbert K. Ortodoxia. Traduzido por Almiro Pisetta. São Paulo: Mundo Cristão, 2008. p. 80-1.
[4] CORÇÃO, Gustavo. A descoberta do outro. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1945. p. 80-1, 110-1.

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