segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Orígenes: A Tradição Apostólica como critério de fé


Por Sávio Laet de Barros Campos.

Biografia

Orígenes de Alexandria.
Orígenes nasceu no Egito, em Alexandria, pelo ano 185 da nossa era. Leônidas, seu pai, antes de morrer pela fé, educou-o e colocou-o na escola de Alexandria, onde Clemente lecionava. Com a morte do pai, o jovem Orígenes passou a sustentar a família lecionando. Na verdade, os bens dela haviam sido confiscados durante uma perseguição aos cristãos na região. Com a fuga de Clemente, também por causa da perseguição, Orígenes passou a ser o diretor da escola catequética, nomeado pelo Bispo Demétrio. Conta-se que o seu zelo de guardar a fé foi tão grande que, num gesto de destempero, castrou-se para não pecar contra a castidade. Discípulo do fundador da escola neoplatônica, Amônio de Sacas, que havia sido também mestre de Plotino, a partir do ano 218, começou a escrever e a dedicar-se exclusivamente à Teologia. Tornou-se sacerdote, tendo sido ordenado durante uma viagem que fizera à Palestina. Porém, Demétrio, Bispo de Alexandria, revogou a sua ordenação, pois Orígenes era eunuco. Nosso filósofo foi para Cesaréia, onde fundou uma nova escola e uma biblioteca. Tornou-se conhecido em todo o mundo antigo, sobretudo porque nos anos de magistério havia-se revelado um grande professor, que sabia cativar os seus alunos. Não cobrava para dar aulas e nem tinha outra intenção senão inflamar os seus alunos ao amor pela verdade e pelo cristianismo. Na perseguição de Décio, veio a falecer, vítima de muitas torturas. Tinha 70 anos, quando morreu, em Tiro.

Embora possa se reconhecer alguns erros graves
originários ou derivados de seus métodos,
facilmente podemos chamá-lo de um dos pais da teologia
Embora o seu método o tenha levado a erros de matéria grave, devemos reconhecer em Orígenes, além de cristão convicto, um dos pais da teologia. Antes de Agostinho, ninguém foi tão importante para a sistematização da doutrina cristã quanto ele. Segundo B. Altaner e A. Stuiber, Orígenes foi o maior sábio da antiguidade cristã. De acordo com Cayré, a obra mais importante de Orígenes, o De Principiis, já pode ser considerada uma espécie de suma aos moldes daquelas que teremos na escolástica. Conquanto não usasse a fórmula, a sua intenção não é outra senão a que foi expressa por Anselmo de Cantuária, séculos depois: fides quaerens intelectum. Entre os primeiros teólogos da Igreja, nenhum teve a obra mais exposta a controvérsias do que Orígenes.

No presente artigo, contemplaremos as concepções de Orígenes concernentes ao modo como pretendeu organizar a teologia a partir da Tradição. Mostraremos como ele divide as verdades de fé em verdades universalmente aceitas como certas e verdades que ainda encontram opositores no seio da própria Igreja cristã. Para estabelecer quais delas pertencem, de fato, ao corpo da Revelação, Orígenes propõe investigar, no bojo da pregação eclesiástica – que perdura intacta através de uma ordem de sucessão –, as que remontam à Tradição Apostólica. Em seguida, esforçar-nos-emos por tornar evidente o “método” de exegese que Orígenes propõe à outra fonte da Revelação, a saber, à Bíblia. Ele proporá, no que tange a esta, que se admitam, para os seus textos, dois sentidos: o literal e o alegórico, sendo que este último ele subdividirá em psíquico e pneumático. Tentaremos abordar a sua visão atinente à filosofia. Como ele aplica a esta o mesmo critério de seleção que ele cunhou no âmbito da teologia, criando, desta feita, no bojo da filosofia, uma espécie de cânon para os filósofos, no sentido de distinguir entre eles aqueles que podem ser parcialmente frequentados pelos cristãos e aqueles que os cristãos devem rejeitar inteiramente. Por fim, passaremos às considerações.

Passemos a considerar as relações estabelecidas pelo nosso filósofo entre fé e tradição.


Teólogo e sistemático: Fé e Tradição


Orígenes foi o primeiro grande teólogo cristão. Coube a ele o condão de forjar um “método”, que consistiu em fixar, num corpo organizado de doutrina, a teologia cristã.[1] O que o motivou nesta empresa de fôlego, foi a nítida percepção de que, mesmo entre os que creem em Cristo, há desacordos, inclusive em temas fundamentais.[2] Ora, Orígenes via nestes desacordos uma contradição, pois estava certo de que a verdade, que é una e na qual não pode haver contradição, pertencia, por direito, aos cristãos.[3]

Agora bem, para dar conta do se propôs, Orígenes começou por distinguir duas ordens de verdades: aquelas que devem ser universalmente aceitas por todos os cristãos como certas[4] e aquelas que continuam incertas e nas quais se encontra ainda espaço para a especulação, como, por exemplo, a questão problemática da origem da alma e seus desdobramentos.[5] Ora, o critério para sabermos se uma verdade é absolutamente certa, isto é, provinda da revelação divina, reside no fato de esta verdade ser ou não oriunda da Tradição Apostólica. E o critério para conseguirmos discernir se uma verdade procede ou não da própria Tradição é: a pregação da Igreja que, consignada na tradição eclesiástica, perdura segundo uma ordem de sucessão, que provém dos Apóstolos.[6]

Parte de 29 homilias escritas por Orígenes, encontradas em Munique.
As homilias eram uma das formas de Orígenes
propagar sua forma de fazer teologia, por assim dizer.
Algumas das verdades que Orígenes enumera como sendo procedentes da pregação apostólica, são: há um só Deus que criou todas as coisas a partir do nada e as ordenou; a alma é uma substância de virtude vital própria que, ao deixar este mundo, deve esperar ser recompensada ou castigada por Deus segundo as suas obras: com a vida eterna, se praticou o bem, ou com o opróbrio eterno, se praticou a iniquidade; a alma possui livre-arbítrio para escolher o seu próprio destino; o mundo, por ter sido criado, teve o seu começo no tempo e será destruído devido a sua corrupção, por ocasião da renovação de todas as coisas; as Divinas Escrituras possuem, além do sentido literal e histórico, um sentido espiritual.[7] Quanto às verdades que continuam ainda incertas, podemos destacar, dentre outras: a origem da alma, visto que não se sabe se ela procede do sêmen ou se tem outra origem e se esta outra origem se dá ou não por geração; tampouco se sabe se a alma é infundida no corpo ou não; enfim, se este mundo foi o primeiro de modo que não tenha sido precedido por nenhum outro mundo.[8]

Vemos em Orígenes uma teologia que começa pela escuta do que os pastores sempre pregaram. Uma teologia que se inicia do ouvir a pregação. Para o nosso autor, o labor teológico tem seu princípio naquilo que sempre foi de consenso entre os fiéis. Orígenes cria o seu “método” teológico a partir de uma atitude de fidelidade à pregação dos Apóstolos e varões apostólicos. Ele é tomado, antes de mais, pelo senso de guardar e de ensinar o que foi transmitido. Em sua obra, a teologia se origina da necessidade de se tomar consciência da existência de um fidei depositum que precisa ser recebido e conservado.




[1] BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 53: “Com a ajuda da especulação, Orígenes propõe-se a coordenar, os elementos seguros da tradição, num sistema doutrinário cristão.” 
[2] ORÍGENES. Tratado Sobre os Princípios. Trad. João Eduardo Pinto Basto Lupi. 1ª ed. São Paulo: 2012. Prefácio, 2: “Ora, uma vez que há muitos desacordos entre aqueles que professam a fé em Cristo, e que essas discordâncias não são só sobre questões secundárias, ou mesmo muito secundárias, mas também sobre questões importantes e às vezes de grande importância [...], por causa disso parece-nos necessário estabelecer em primeiro lugar sobre cada um desses assuntos uma diretriz certa e uma regra clara [...]”.
[3] Idem. Ibidem: “Muitos gregos e bárbaros prometiam a verdade e, contudo, a partir do momento em que acreditamos que Cristo é o Filho de Deus e reconhecemos que era preciso aprender com ele a verdade, renunciamos a procurá-la junto de todos eles, porque o que eles afirmam a esse respeito são apenas falsas opiniões; do mesmo modo, são numerosos aqueles que julgam compreender o que é de Cristo, mas muitos deles estão em desacordo com os seus predecessores [...]”.
[4] Idem. Ibidem. Prefácio, 3: “Eis, portanto, o que é preciso saber: quando os santos apóstolos pregaram a fé em Cristo, sobre todos os temas que consideraram necessários, transmitiram o ensinamento a todos os crentes de forma muito clara, e assim foi, mesmo para aqueles que não pareciam tão empenhados na busca do conhecimento divino [...]”.
[5] Idem. Ibidem. Prefácio, 5: “A origem da alma, porém, não está claramente definida na pregação apostólica: ou é transmitida pelo sêmen, uma vez que a sua própria existência racional, ou substância, está inserida nas sementes corporais, ou se tem outro início, e se esse princípio é geração ou não; ou se entra nos corpos vindo do exterior, ou não.”
[6] Idem. Ibidem. Prefácio, 2: “Porém, a pregação eclesiástica é preservada e transmitida desde os Apóstolos e seus sucessores, e subsiste até hoje nas Igrejas; por isso, só deve ser recebida como verdadeira aquela em que não há nenhuma discordância com a tradição eclesiástica e apostólica.”
[7] Idem. Ibidem. Prefácio, 4: “As questões que a pregação apostólica nos transmitiu de maneira clara são as seguintes: em primeiro lugar, que há um só Deus, que criou e ordenou todas as coisas e que, quando ainda nada existia, fez existir todas as coisas; que Deus, depois da criação e da fundação do mundo, foi o Deus de todos os justos [...]”. Idem. Ibidem. Prefácio, 5: “Depois dessas questões, vêm as da alma: dotada de inteligência e de vida próprias será tratada segundo os seus méritos depois que deixar este mundo: ou entrará na posse da vida eterna e herdará a felicidade, se seus atos assim lhe fizeram jus, ou então será entregue ao fogo eterno e aos seus suplícios, se aí a conduzir o peso dos seus crimes  [...]. A pregação eclesiástica também define que toda alma racional possui livre-arbítrio e vontade [...]. Portanto, é preciso entender que não estamos submetidos à necessidade a ponto de ser constrangidos de qualquer modo, mesmo quando não o queremos, a fazer o bem, ou o mal.” Idem. Ibidem. Prefácio, 7: “Há outro ponto da pregação eclesiástica: que este mundo foi criado e começou num tempo determinado, e que está destinado a desaparecer, em razão da sua corruptibilidade [...]”.
[8] Idem. Ibidem. Prefácio, 5: “A origem da alma, porém, não está claramente definida na pregação apostólica: ou é transmitida pelo sêmen, uma vez que a sua própria existência racional, ou substância, está inserida nas sementes corporais, ou se tem outro início, e se esse princípio é geração ou não; ou se entra nos corpos vindo do exterior, ou não.” Idem. Ibidem. Prefácio, 7: “Quanto a saber o que havia antes deste mundo, e o que haverá depois deste mundo, são poucos até agora o que chegaram a ter sobre isso uma ideia clara, porque a esse propósito não há uma doutrina explícita na pregação apostólica.”

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