Por Sávio Laet de Barros Campos.
Biografia
Orígenes de Alexandria. |
Orígenes nasceu no Egito, em
Alexandria, pelo ano 185 da nossa era. Leônidas, seu pai, antes de morrer pela
fé, educou-o e colocou-o na escola de Alexandria, onde Clemente lecionava. Com
a morte do pai, o jovem Orígenes passou a sustentar a família lecionando. Na verdade, os bens
dela haviam sido confiscados durante uma perseguição aos cristãos na
região. Com a fuga de Clemente, também por causa da perseguição, Orígenes
passou a ser o diretor da escola catequética, nomeado pelo Bispo Demétrio.
Conta-se que o seu zelo de guardar a fé foi tão grande que, num gesto de
destempero, castrou-se para não pecar contra a castidade. Discípulo do fundador
da escola neoplatônica, Amônio de Sacas, que havia sido também mestre de
Plotino, a partir do ano 218, começou a escrever e a dedicar-se exclusivamente
à Teologia. Tornou-se sacerdote, tendo sido ordenado durante uma viagem que
fizera à Palestina. Porém, Demétrio, Bispo de Alexandria, revogou a sua
ordenação, pois Orígenes era eunuco. Nosso filósofo foi para Cesaréia, onde
fundou uma nova escola e uma biblioteca. Tornou-se conhecido em todo o mundo
antigo, sobretudo porque nos anos de magistério havia-se revelado um grande
professor, que sabia cativar os seus alunos. Não cobrava para dar aulas e nem
tinha outra intenção senão inflamar os seus alunos ao amor pela verdade e pelo
cristianismo. Na perseguição de Décio, veio a falecer, vítima de muitas
torturas. Tinha 70 anos, quando morreu, em Tiro.
Embora possa se reconhecer alguns erros graves originários ou derivados de seus métodos, facilmente podemos chamá-lo de um dos pais da teologia |
Embora o seu método o tenha
levado a erros de matéria grave, devemos reconhecer em Orígenes, além de
cristão convicto, um dos pais da teologia. Antes de Agostinho, ninguém foi tão
importante para a sistematização da doutrina cristã quanto ele. Segundo B.
Altaner e A. Stuiber, Orígenes foi o maior sábio da antiguidade cristã. De acordo
com Cayré, a obra mais importante de Orígenes, o De Principiis, já pode ser considerada uma espécie de suma aos moldes daquelas que teremos na
escolástica. Conquanto não usasse a fórmula, a sua intenção não é outra senão a
que foi expressa por Anselmo de Cantuária, séculos depois: fides quaerens intelectum. Entre os primeiros teólogos da Igreja,
nenhum teve a obra mais exposta a controvérsias do que Orígenes.
No presente artigo,
contemplaremos as concepções de Orígenes concernentes ao modo como pretendeu
organizar a teologia a partir da Tradição. Mostraremos como ele divide as
verdades de fé em verdades universalmente aceitas como certas e verdades que
ainda encontram opositores no seio da própria Igreja cristã. Para estabelecer
quais delas pertencem, de fato, ao corpo da Revelação, Orígenes propõe
investigar, no bojo da pregação
eclesiástica – que perdura intacta através de uma ordem de sucessão –, as que remontam à Tradição Apostólica. Em seguida, esforçar-nos-emos por tornar
evidente o “método” de exegese que Orígenes propõe à outra fonte da Revelação,
a saber, à Bíblia. Ele proporá, no que tange a esta, que se admitam, para os
seus textos, dois sentidos: o literal
e o alegórico, sendo que este último
ele subdividirá em psíquico e pneumático. Tentaremos abordar a sua
visão atinente à filosofia. Como ele aplica a esta o mesmo critério de seleção que ele cunhou no âmbito da teologia, criando,
desta feita, no bojo da filosofia, uma espécie de cânon para os filósofos, no
sentido de distinguir entre eles aqueles que podem ser parcialmente
frequentados pelos cristãos e aqueles que os cristãos devem rejeitar
inteiramente. Por fim, passaremos às considerações.
Passemos a considerar as relações
estabelecidas pelo nosso filósofo entre fé e tradição.
Teólogo e sistemático: Fé e
Tradição
Orígenes foi o primeiro grande
teólogo cristão. Coube a ele o condão de forjar um “método”, que consistiu em
fixar, num corpo organizado de doutrina, a teologia cristã.[1]
O que o motivou nesta empresa de fôlego, foi a nítida percepção de que, mesmo
entre os que creem em Cristo, há desacordos, inclusive em temas fundamentais.[2]
Ora, Orígenes via nestes desacordos uma contradição, pois estava certo de que a
verdade, que é una e na qual não pode haver contradição, pertencia, por
direito, aos cristãos.[3]
Agora bem, para dar conta do se
propôs, Orígenes começou por distinguir
duas ordens de verdades: aquelas que devem ser universalmente aceitas por
todos os cristãos como certas[4]
e aquelas que continuam incertas e nas quais se encontra ainda espaço para a
especulação, como, por exemplo, a questão problemática da origem da alma e seus desdobramentos.[5]
Ora, o critério para sabermos se uma verdade é absolutamente certa, isto é,
provinda da revelação divina, reside no fato de esta verdade ser ou não oriunda
da Tradição Apostólica. E o critério
para conseguirmos discernir se uma verdade procede ou não da própria Tradição é: a pregação da Igreja que, consignada na tradição eclesiástica, perdura segundo uma ordem de sucessão, que provém dos Apóstolos.[6]
Parte de 29 homilias escritas por Orígenes, encontradas em Munique. As homilias eram uma das formas de Orígenes propagar sua forma de fazer teologia, por assim dizer. |
Algumas das verdades que Orígenes
enumera como sendo procedentes da pregação
apostólica, são: há um só Deus que criou todas as coisas a partir do nada e
as ordenou; a alma é uma substância de virtude vital própria que, ao deixar
este mundo, deve esperar ser recompensada ou castigada por Deus segundo as suas
obras: com a vida eterna, se praticou o bem, ou com o opróbrio eterno, se
praticou a iniquidade; a alma possui livre-arbítrio para escolher o seu próprio
destino; o mundo, por ter sido criado, teve o seu começo no tempo e será
destruído devido a sua corrupção, por ocasião da renovação de todas as coisas;
as Divinas Escrituras possuem, além do sentido
literal e histórico, um sentido espiritual.[7]
Quanto às verdades que continuam ainda incertas, podemos destacar, dentre
outras: a origem da alma, visto que não se sabe se ela procede do sêmen ou se
tem outra origem e se esta outra origem se dá ou não por geração; tampouco se
sabe se a alma é infundida no corpo ou não; enfim, se este mundo foi o primeiro
de modo que não tenha sido precedido por nenhum outro mundo.[8]
Vemos em Orígenes uma teologia
que começa pela escuta do que os pastores sempre pregaram. Uma teologia que se
inicia do ouvir a pregação. Para o nosso autor, o labor teológico tem seu
princípio naquilo que sempre foi de consenso entre os fiéis. Orígenes cria o
seu “método” teológico a partir de uma atitude de fidelidade à pregação dos
Apóstolos e varões apostólicos. Ele é tomado, antes de mais, pelo senso de
guardar e de ensinar o que foi transmitido. Em sua obra, a teologia se origina da
necessidade de se tomar consciência da existência de um fidei depositum
que precisa ser recebido e conservado.
[1]
BOEHNER, Philotheus, GILSON, Etienne. História da
Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7a ed.
Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 53: “Com a ajuda da
especulação, Orígenes propõe-se a coordenar, os elementos seguros da tradição,
num sistema doutrinário cristão.”
[2] ORÍGENES. Tratado Sobre os Princípios.
Trad. João Eduardo Pinto Basto
Lupi. 1ª ed. São Paulo: 2012. Prefácio, 2: “Ora, uma vez que há muitos
desacordos entre aqueles que professam a fé em Cristo, e que essas
discordâncias não são só sobre questões secundárias, ou mesmo muito
secundárias, mas também sobre questões importantes e às vezes de grande
importância [...], por causa disso parece-nos necessário estabelecer em
primeiro lugar sobre cada um desses assuntos uma diretriz certa e uma regra
clara [...]”.
[3] Idem. Ibidem: “Muitos gregos e bárbaros prometiam a verdade e, contudo, a
partir do momento em que acreditamos que Cristo é o Filho de Deus e
reconhecemos que era preciso aprender com ele a verdade, renunciamos a
procurá-la junto de todos eles, porque o que eles afirmam a esse respeito são
apenas falsas opiniões; do mesmo modo, são numerosos aqueles que julgam
compreender o que é de Cristo, mas muitos deles estão em desacordo com os seus
predecessores [...]”.
[4] Idem. Ibidem. Prefácio, 3: “Eis, portanto, o que é preciso saber: quando
os santos apóstolos pregaram a fé em Cristo, sobre todos os temas que
consideraram necessários, transmitiram o ensinamento a todos os crentes de
forma muito clara, e assim foi, mesmo para aqueles que não pareciam tão
empenhados na busca do conhecimento divino [...]”.
[5] Idem. Ibidem. Prefácio, 5: “A origem da alma, porém, não está claramente
definida na pregação apostólica: ou é transmitida pelo sêmen, uma vez que a sua
própria existência racional, ou substância, está inserida nas sementes
corporais, ou se tem outro início, e se esse princípio é geração ou não; ou se
entra nos corpos vindo do exterior, ou não.”
[6] Idem. Ibidem. Prefácio, 2: “Porém, a pregação eclesiástica é preservada e
transmitida desde os Apóstolos e seus sucessores, e subsiste até hoje nas
Igrejas; por isso, só deve ser recebida como verdadeira aquela em que não há nenhuma
discordância com a tradição eclesiástica e apostólica.”
[7] Idem. Ibidem. Prefácio, 4: “As questões
que a pregação apostólica nos transmitiu de maneira clara são as seguintes: em
primeiro lugar, que há um só Deus, que criou e ordenou todas as coisas e que,
quando ainda nada existia, fez existir todas as coisas; que Deus, depois da
criação e da fundação do mundo, foi o Deus de todos os justos
[...]”. Idem. Ibidem. Prefácio, 5: “Depois dessas questões, vêm
as da alma: dotada de inteligência e de vida próprias será tratada segundo os
seus méritos depois que deixar este mundo: ou entrará na posse da vida eterna e
herdará a felicidade, se seus atos assim lhe fizeram jus, ou então será
entregue ao fogo eterno e aos seus suplícios, se aí a conduzir o peso dos seus
crimes [...]. A pregação eclesiástica
também define que toda alma racional possui livre-arbítrio e vontade [...].
Portanto, é preciso entender que não estamos submetidos à necessidade a ponto
de ser constrangidos de qualquer modo, mesmo quando não o queremos, a fazer o
bem, ou o mal.” Idem. Ibidem. Prefácio, 7: “Há outro ponto da
pregação eclesiástica: que este mundo foi criado e começou num tempo
determinado, e que está destinado a desaparecer, em razão da sua
corruptibilidade [...]”.
[8] Idem. Ibidem. Prefácio, 5: “A origem da alma,
porém, não está claramente definida na pregação apostólica: ou é transmitida
pelo sêmen, uma vez que a sua própria existência racional, ou substância, está
inserida nas sementes corporais, ou se tem outro início, e se esse princípio é
geração ou não; ou se entra nos corpos vindo do exterior, ou não.” Idem.
Ibidem. Prefácio, 7: “Quanto a saber o que havia antes deste mundo, e o
que haverá depois deste mundo, são poucos até agora o que chegaram a ter sobre
isso uma ideia clara, porque a esse propósito não há uma doutrina explícita na
pregação apostólica.”
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